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A Baixa de Matias, Ordenança do Conde dos Arcos, vice-rei do Rio de Janeiro

Folha de rosto da segunda edição.
Folha de rosto da segunda edição.

Texto da orelha

A primeira novela de mistério escrita no Brasil? Sim, talvez este “romance histórico-jurídico”, como o classificou o autor, possa ser assim definido e lido. Pois na verdade toda a trama, no início caracteristicamente picaresca, a partir da metade do livro se concentra na solução do mistério do duplo assassinato da rua dos Ferradores.

Novela de mistério, não novela de detetive. Não há, em A baixa de Matias, a figura de um detetive que, refletindo sobre o enigma, pudesse chegar ao esclarecimento final e definitivo do caso. Se Azambuja Susano leu Poe, não quis imitá-lo criando um êmulo de Auguste Dupin. Aqui é Matias a figura central da narrativa, a vítima das circunstâncias: da mesma forma que o enredam na tragédia, quase levando-o a pagar por um crime que não cometeu, as circunstâncias acabam levando autoridades e juízes a solucionar o mistério e absolver Matias de qualquer participação no assassinato. Ou seja, uma perspectiva que fala muito mais à tradição do romance picaresco do que à do romance policial.

Seja como for, pelos seus aspectos picarescos e de mistério, pela galeria de personagens que nela circulam, pelo tesouro de linguagem bem coloquial, bem popular, com que foi escrita, A baixa de Matias, esta novela curiosa e pitoresca, que ora se reedita, merece ser lida e estudada pelos interessados na formação da literatura brasileira.

Introdução

Luís da Silva Alves d’Azambuja Suzano nasceu no Rio de Janeiro em 1791 e morreu em Vitória, Espírito Santo, em 1873.

Fez seus estudos no seminário de São Joaquim, mas não seguiu a carreira sacerdotal, preferindo ingressar no serviço público, empregando-se no Ministério da Fazenda. Nomeado secretário da Junta de Governo Provisória que assumiu a direção da província do Espírito Santo em 1822, radicou-se a partir de então em Vitória, onde residiu, por mais de 50 anos, até sua morte. Participou ativamente da vida política, administrativa e cultural da província, tendo sido deputado provincial, gramático, professor de humanidades (docente competentíssimo, segundo Afonso Cláudio), funcionário público (inclusive diretor da Instrução Pública) e advogado. Pedro II o fez oficial da Ordem da Rosa e cavaleiro da Ordem de Cristo.

Entre os trabalhos que publicou contam-se vários textos didáticos de língua portuguesa (Compêndio de ortografia, 1826; Silabário para ensinar a ler a língua portuguesa, 1848; Compêndio de gramática portuguesa para uso das escolas primárias, 1851); textos forenses (Digesto brasileiro ou extrato e comentário das ordenações e leis extravagantes etc., 1845; Código das leis e regulamentos orfanológicos, 1847; Repertório das leis, regulamentos e ordens da Fazenda, 1853; Guia do processo policial e criminal, 1859), e até um Compêndio ou arte de agricultura, de 1834, e um texto de Princípios de aritmética mercantil, para se ensinarem nas escolas primárias, de 1860.

Atribui-se também a ele uma tradução em prosa do Orlando Furioso, de Ariosto, que teria publicado em 1833, em quatro volumes, segundo Sacramento Blake (apud Basílio de Magalhães: 1939), mas que Afonso Cláudio (1912) dá como texto inédito. Inéditas ficaram traduções das Odes de Anacreonte e da Apologética de Tertuliano. Sua tradução de uma seleta latina foi editada em 1843.

Sua produção literária própria reduz-se a três novelas: Um roubo na Pavuna, publicado no Rio em 1843, de que foi impossível, até agora, localizar um exemplar, O capitão Silvestre e frei Veloso ou a plantação de café no Rio de Janeiro, publicado no Rio em 1847, reeditado por Basílio de Magalhães como apêndice a seu livro sobre o café, e este A baixa de Matias, ordenança do conde dos Arcos, vice-rei do Rio de Janeiro, publicado no Rio por Eduardo e Henrique Laemmert em 1858. Na segunda edição, ilustrada, de 1859, se baseia a presente edição, resultado de convênio entre o Instituto Nacional do Livro e a Universidade Federal do Espírito Santo.

* * *

Azambuja Suzano gostava de dar subtítulos por assim dizer classificatórios a seus trabalhos de ficção. Assim, a Um roubo na Pavuna classificou de “romance histórico”; de “romance brasileiro” a Capitão Silvestre e frei Veloso; e, finalmente, de “romance histórico-jurídico” a esta sua novela de longo título — A baixa de Matias, ordenança do conde dos Arcos, vice-rei do Rio de Janeiro — e de breve extensão.

Histórico, é claro, devido à participação, nele, como personagem aliás um tanto libertino e leviano, de D. Marcos de Noronha e Brito, oitavo conde dos Arcos e, na época, vice-rei do Rio de Janeiro. Histórico, também, pela referência feita à chegada de D. João VI ao Brasil, acontecimento que vai ter influência sobre o destino de Matias, e pela participação, rápida e discreta, do próprio D. João VI na novela.

Jurídico, por outro lado, devido à trama da novela, que a partir do duplo assassinato da rua dos Ferradores descamba para um enredo típico de história policial, inclusive com a instalação de um inquérito que por pouco, aliás, não redunda em grave erro judiciário.

Em termos estruturais, a novela pode ser dividida em duas partes distintas.

A primeira parte, que é aliás quase toda narrada em flashback, refere a sequência de apuros e situações embaraçosas em que Matias, o herói, se vê inocentemente envolvido, culminando com sua desgraça perante o conde dos Arcos, que o degreda para um destacamento fora da cidade. Essas situações se caracterizam por um grande efeito cômico, sobretudo no caso do rapto, por engano, da velha mãe de Anacleta por um tenente arrebatadamente apaixonado pela filha. Além disso, a estrutura dessa primeira parte abre espaço para a interpolação de duas narrativas vicárias, uma delas de sabor erótico, muito bem recebida dos ouvintes (“Gargalhadas e mais gargalhadas aplaudiram, interromperam e concluíram esta história.”), e a outra de intenções moralizantes, que não teve sobre eles o mesmo efeito (“não agradou àquela rapaziada garrida a moralidade deste caso”).

O duplo assassinato, no qual Matias, com sua costumeira má estrela, se vê envolvido tão inocentemente como nos episódios anteriores, pode ser considerado como o marco divisório entre as duas partes da novela. A partir daí se processa uma sensível mudança de atmosfera, cessando as situações cômicas bem ao estilo picaresco para dar lugar a toda uma intrincada trama de mistério. Da prisão de Matias até o esclarecimento definitivo do caso podem-se enumerar sete episódios diferentes que acabam formando um denso enigma a ser desvendado somente no final da novela. Com um certo grau de engenhosidade, Suzano consegue controlar cada episódio de forma que, ao mesmo tempo, o mistério se aclare por um lado e se anuvie por outro. Tudo se desenrola, assim, no melhor espírito do romance policial. As pessoas não são quem parecem ser, os mortos nem sempre estão realmente mortos, as coisas nunca acontecem como parecem ter acontecido. Mas tudo se aclara, afinal, e a novela termina com uma citação de Ariosto (muito apropriada em se tratando de um tradutor do Orlando Furioso).

A par de ser uma história de leitura fácil, pelos lances picarescos da primeira parte e pelo denso enigma da segunda, A baixa de Matias tem um mérito especial que é o da linguagem. A linguagem da novela é muito solta, essencialmente coloquial, cheia de termos e expressões tiradas diretamente da boca do povo, muitas delas nem mesmo consignadas nos dicionários da época. É de se supor que o leitor saboreará todo esse rico vocabulário popular, que abrange, por exemplo, termos como gico, chibanças, bobenta, babau, tetéía, coisíssíma nenhuma, arenga, gaiatão, bicho (o diabo), farofa, fogo de palha, etc.

O texto da presente edição se baseia no texto da edição (a segunda) de 1859, da qual foram extraídas também as ilustrações que, aliás, parecem ter sido escolhidas aleatoriamente para a edição, porque nem sempre representam adequadamente o texto.

A ortografia foi atualizada, e acrescentadas notas de rodapé para esclarecer eventuais dúvidas vocabulares.

Esclareça-se, por fim, que este livro constitui, paralelamente, o volume 7 da Coleção Resgate, do Instituto Nacional do Livro, e o volume 31 da Coleção Letras Capixabas, da Fundação Ceciliano Abel de Almeida.

Reinaldo Santos Neves
Editoria
Fundação Ceciliano Abel de Almeida

Bibliografia consultada:

CLÁUDIO, Afonso. Historia da litteratura espirto-santense. Porto, 1912.

MAGALHÃES, Basílio de. O café na história, no folclore e nas belas-artes. 2a ed. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1939.

* * *

I

ra Matias um soldado moço, bem apessoado, que à gentileza do seu figurino marcial atraía os olhos da Vênus mais esquiva. Moço, gentil, e de uma vivacidade sangüínea, não podia deixar de namorar: mas se sua audácia o inclina a uma Vênus em verdade formosa, e digna de um mancebo que se aventura aos laços da gentileza, mesquinha sorte o persegue, e seu mau fado o não deixa felicitar-se. Nem pois é sempre o atrevimento impulso da fortuna.

Era Anacleta a Vênus a quem amava; e residia esta beleza na rua dos Ferradores[ * ] da cidade do Rio de Janeiro, em companhia de sua anciona mãe, viúva de um antigo oficial do regimento de Moura. Algumas relações tinha Matias nesta casa: e a estas relações, no começo passageiras, deu incremento a sua qualidade de ordenança do vice-rei D. Marcos de Noronha, conde dos Arcos.

Tendo este galhardo Marialva[ 1 ] um dia visto de passagem a bela Anacleta, não pôde deixar de ferir-se nas setas que esses olhos encantadores lhe vibraram, afiadas no rebolo[ 2 ] da meiguice: e desde logo planeja um combate, em que devia conquistá-la, servindo-lhe Matias umas vezes de vedete,[ 3 ] e outras de retaguarda.

Cautelosos, disfarçados, incógnitos eram os seus assaltos, e sempre apoiados pelas trevas da noite, como convinha a um fidalgo, que se peja de ser preso nas indiscretas redes de amor. Só grossa noite os faz entrar, e raras vezes esperam que um segundo galo matutino lhes advirta a retirada.

Lisonjeava-se nestas correrias[ 4 ] o conde de ser o único conquistador, quando outros o seguiam, e atiravam à mesma brecha: não eram pois dois meses ainda passados, quando o conde despreza aquela casa, e degreda o pobre Matias para o destacamento da ponte do ltaguaí, com ordem de não ser rendido, nem vir à cidade. Que fizeste, Matias! qual a causa deste infortúnio!… Ó Anacleta! Anacleta! quantos males vêm ao mundo desse rosto de esfinge que a natureza deu ao teu sexo!

Retirado lá para as raízes da serra de Santa Cruz, sofria o infeliz Matias taciturno o seu degredo, sem jamais revelar uma só palavra do mistério que guardava em seu coração. Debalde uma e outra vez os seus camaradas o interrogavam com diversas conjecturas, com diversos crimes que lhe imputavam. — Nada é como pensais — apenas ele dizia.

Desprezada entretanto do conde a bela Anacleta, e ignorando o destino de Matias, procurada de muitos, solicitada e combatida de diversos, era o feitiço dos velhos, e a perdição dos mancebos. Um provérbio de escândalo era o seu comportamento; e nem havia alcunha, por mais ridículo, que não lhe aplicassem. Rede de ilusões, tinha sempre à roda de si, como encantados, um numeroso bando de protervos.[ 5 ] Toda a cidade a conhecia pelo nome célebre de Anacleta Redinha,[ 6 ] e mil desordens, acontecidas em sua casa, propagavam esta celebridade.

II

m sucesso inesperado e grandioso da ordem dos altos destinos da Providência foi a chegada, de Lisboa ao Rio de Janeiro, d’el-rei D. João VI. Borbulha por toda parte uma alegria festival. O conde que já nem se lembrava de Matias, não cuida então mais do que em fazer esquecer ao monarca as saudades da sua corte e todo o Rio de Janeiro, o campo de Santa Ana principalmente, era um vastíssimo teatro, em que se multiplicavam cenas de alegria de um povo leal e hospitaleiro, todo preocupado em festejar o seu soberano.

Um ano, contudo, assim se passa ainda, sem que alguém se lembrasse de revogar a ordem que afastava da cidade o infeliz Matias; então este moço, um dia recordando os seus desares,[ 7 ] sente n’alma um vivo morso[ 8 ] da saudade; e com um suspiro, todo chamas, dirige ao sargento, comandante do destacamento, que o conservava o seguinte:

— Meu sargento, o conde dos Arcos já não governa: já não pode ter observância a sua ordem, para que não saia daqui. Dê-me licença, eu lhe peço, para ir à cidade ver minha família, minha mãe, somente por três dias: um para ir, outro para estar lá, outro para voltar. Agora tudo são festas, as ordens estão relaxadas, eu não posso fazer falta em dois ou três dias.

O sargento era já outro no comando do destacamento, e não sabia da ordem do conde dos Arcos; portanto perguntou:

— E que ordem é essa do conde dos Arcos?

— Há um ano e meio (diz o soldado) o conde me mandou para aqui com ordem de não ir à cidade. Mas bem vê, meu sargento, que as cousas estão mudadas, o conde já não governa, agora quem manda é o nosso general, e as ordens do conde já não valem.

— No caderno (torna o sargento) está uma nota que diz: — o soldado Matias não sairá para fora do destacamento sem segunda ordem. Mas não é do vice-rei, é do nosso coronel. Mas por que razão o vice-rei deu essa ordem? Conforme a causa, talvez ela ainda esteja em todo o seu vigor: e eu não posso ir contra as ordens.

— Ah! meu sargento, eu nunca disse a ninguém o que agora vou dizer-lhe:

“Eu era o camarada às ordens do conde; servia-o dentro do palácio, acompanhava-o, quando ele me chamava para ir com ele a alguma parte, e ia levar os seus recados onde ele me mandava.

Algumas noites o acompanhei à casa da viúva do capitão Ferrolho, cuja filha Anacleta é a moça mais bela e graciosa que há na cidade. Ah! quem diz Anacleta, diz amor e beleza, e não há mais comparação que fazer. Morava na rua dos Ferradores, ao pé do campo dos Ciganos. O conde queria-lhe muito bem: e a velha nem queria, nem deixava de querer que a moça lhe correspondesse. Era um gosto ver como o conde se desfazia com lisonjarias e agrados, quando oferecia à menina um docinho ao tomar do chá.

Em certa ocasião, estando com folga, e supondo que o conde lá não fosse nessa noite, pedi a Anacleta que se empenhasse com ele para me dar a minha baixa. Ria-se Anacleta, zombando comigo; mas por fim prometia-me a sua proteção, quando bateu o conde na porta… Ouvindo o sinal conhecido, D. Ana corre a abrir a porta, e eu entrando na alcova, escondo-me debaixo da cama.

Entra o conde, recebe-o Anacleta nos braços, e reinaram entre ambos as finezas e os agrados.

— Quero descansar, diz o conde — e foi deitar-se na cama, em que eu estava debaixo, encolhido como uma trouxa, e com o coração tão pequenino como um dez réis. Chegou-se a ele Anacleta, e entre conversas falou-lhe no negócio da minha baixa.

— Isso há de ser com o vice-rei (diz o conde).

— Pois, maninho,[ 9 ] não é V.Exa. mesmo o vice-rei?

— Não. Eu sou D. Marcos de Noronha.

— Oh! e quem é o vice-rei?

— Lá em palácio o achareis. Aqui nos vossos braços sou um simples fidalgo que vos ama. Só nesta qualidade poderei servir-vos: como vice-rei será somente o que for justo, e ordenado por el-rei nosso senhor.

A velha que isto ouvia, acudiu dizendo:

— Pois se o vice-rei não é a pessoa que vem à minha casa, deve D. Marcos de Noronha retirar-se. Menina, levanta-te!

Ergue-se a moça, e também D. Marcos, rindo-se, e como quem queria agarrá-la; mas ela fugiu-lhe.

Então D. Marcos, ou por perceber algum movimento que eu fizesse debaixo da cama, estendendo-me para espreitar o que se passava com a fuga de Anacleta; ou porque me entrevira pelas costas quando entrou, e eu me escondi; erguendo o guarda-cama, diz com espanto — Que é isto aqui!… Ó homem, não durma em baixo da cama que tem muita pulga. Saia cá para fora, deite-se em cima.

Com o temor, eu nem respondia, nem me movia, afetando que com efeito ressonava, dormindo, como ele dizia. Até que o conde, pegando-me por um braço, me arrastou para fora. Conhecendo-me, disse — Aqui é que vens dormir, e debaixo da cama?

De repente assoçobrado[ 10 ] dei-lhe esta resposta:

— Senhor, vim saber da saúde da senhora para responder amanhã quando V. Exa. me perguntasse, e ouvindo bater na porta escondi-me.

— E no mesmo instante adormeceste, que ressonavas como um porco, quando eu te chamei que saísses para fora. É a segunda que me fazes, patife. E a Sra. Anacleta passe bem; que eu não amo a uma infiel.

Dizendo isto, tomou o seu capote, e foi-se embora. No dia seguinte mandou-me para este destacamento, com ordem de não ser rendido.”

Admirava-se, e ria-se o sargento, ao mesmo tempo que o soldado acionava[ 11 ] e contorcia-se, narrando este caso.

III

om efeito, assim não foi falta de serviço (diz o sargento); mas a ordem há de se cumprir, enquanto o nosso comandante não der outra. Mas o conde disse que era a segunda que lhe fazias: qual foi a primeira?

— Ora, meu sargento, se não me dá a licença que lhe peço, escuso-me de lhe dizer mais nada.

— Não: dize-me; que talvez então eu te dê a licença.

— Pois bem; mas depois não me falte à palavra.

— Não: não falto.

Dada esta segurança, continuou Matias.

“O tenente Aurélio não sabia do conde, e namorava apaixonadamente a Anacleta, a qual vaidosa e volúvel, como são de ordinário as moças presumidas de formosas, recebia e respondia aos seus agrados com mais leviandades do que juízo; porém, contudo, não lhe dava entrada com receio do conde.

Um dia perguntou-me o tenente, quem governava aquela casa? Eu lhe disse que ninguém, e que eu ia ali pela amizade que tinham aquelas senhoras com uma tia minha, e por causa de seus objetos de costuras. Tantos apertos, promessas, e conveniências me deu o tenente, que eu o levei à casa de minha tia, para aí começar umas relações de amizade, e pudesse depois passar a ter entrevistas mais próximas com Anacleta, sem a vigilância de D. Ana, que Anacleta zombando com ele, dizia-lhe ser o obstáculo para o deixar entrar em casa.

Travadas estas relações, propõe-me o tenente um roubo[ 12 ] de Anacleta, convidando-a eu, da parte de minha tia, para ir de noite à nossa casa ver uma noiva, nossa parenta, que viera da roça, e ia casar-se na Sé; e quando Anacleta fosse para a casa de minha tia, ele a arrebataria na rua. Dava-me para isto uma boa espórtula,[ 13 ] eu queria ganhá-la… Anacleta não recusaria muito esta aventura por uma noite, e havendo segredo: e se entretanto o conde… Deus tudo arrumaria!…

Enfim, eu queria ganhar o dinheiro, e armou-se a gambérria.[ 14 ] Veio uma cadeirinha da parte de minha tia, buscar Anacleta para ir ver o casamento. Porém, enquanto esta se ataviava, eis chega o conde. Uma cadeirinha na porta!… Anacleta ataviando-se!… Que é isto? onde vais? pergunta.

— A parte nenhuma. É minha mãe que vai à casa de Matias ver a prima dele que vai casar-se na Sé.

— Oh! isso é bom, diz o conde. Eu também hei de ir ver, cá escondido debaixo de meu capote, que tal é a noiva.

A repentina desculpa de Anacleta pôs em tal aperto e embaraço a D. Ana, sua mãe, que esta por não deixar a filha em coses,[ 15 ] fez o dito certo, tomou a sua capona, e meteu-se na cadeirinha.

Meia hora depois, saiu também o conde, e foi à Sé, como tinha dito.

Porta fechada: tudo às escuras (ninguém por ali, senão alguma quitandeira do mendubi,[ 16 ] com sua lanterna de papel).

Esperou: deu volta à roda da igreja; e nem sombra aparece de casamento.

Pergunta enfim a uma quitandeira: Não viu nada? Vem por minha casa, e vê tudo em silêncio, sem mais gente do que a minha pobre mãe e sua escrava, rezando ambas o terço, adiante do oratório.

Desenganado, volta para casa de D. Ana, e aí acha esta boa senhora referindo o que lhe aconteceu.

Que tendo saído na cadeirinha, os pretos a foram levando, e um vulto acompanhava, até uma casa lá em outra rua, onde o vulto mandou parar a cadeirinha no corredor, e abraçando-se com ela, triste velha, semeou-lhe beijos tantos e tão ardentes nas enrugadas faces e nas mãos, com que ela assustada se defendia, que se não fora o estar de susto fria como uma couve, decerto faria arder-lhe em chamas a medula dos carunchados ossos. — Vem, minha Anarda, aos braços do teu Aurélio (lhe dizia): seja este momento o dia mais ditoso da minha vida! Sê minha; porque eu sou teu, minha espada, minha banda,[ 17 ] minha existência, tudo sacrifico a teus pés; tudo para mim é nada, se um terno agrado teu não faz feliz a esta vida, que te consagro.

D. Ana admirada, embasbacada, nem pôde responder, e deixa conduzir-se maquinalmente para o interior da casa.

Aí sentada em um canapé, assim mesmo envolta em sua capona que o tenente lhe aguardava, como um trajo de disfarce que ela houvera tomado, para vir a encobertas à sua casa; continua o tenente a render-lhe os mais carinhosos afetos: louva-lhe a cautela de vir encoberta e disfarçada; mas que enfim ali estava em segurança, sem ninguém que os visse, pois que até o seu camarada ele tinha mandado para longe.

D. Ana deitando então para as costas a capona que tinha por cima da cabeça, mostrou-se quem era, com seus cabelos brancos, e disse-lhe — Vm. está louco, Sr. Tenente. Tudo isso que me tem dito, costumam os homens estudar para seduzirem as mulheres, e infelizes daquelas que se fiam nesses fingidos excessos de amor, que têm tanta consistência como o fogo de palha. Pois para Vm. casar comigo, era preciso um excesso tão ardiloso; o casamento fingido de uma moça da roça; o roubar-me de minha casa, para então na sua, vir declarar-me a sua pretensão, com tanta surpresa, de um modo tão insolente, que estou toda incomodada, e nem posso falar? Sou viúva de um capitão: e posto que Vm. ainda não chegou à patente do meu defunto marido, contudo, se como homem de honra me tivesse pedido a mão, eu não lhe negaria, porque de tenente a capitão é pouca a diferença, e Vm. depressa alcançaria este posto: eu tenho meios de obter-lho. Mas enfim eu lhe perdoo esta leviandade como de moço, e que o meu defunto também as teve, e também era bem namorado. Sei que o cura da Sé nos espera: vamos: o que vale é que a noite está chuvosa e nos desculpa de cerimônias. E quem são os nossos padrinhos? já lá estão?

Logo que o tenente conheceu D. Ana, ficou como estatelado, ou ferido de um raio, e depois enquanto ela falava, titubeava ele, passeando pela sala, atônito, como buscando desaparecer-lhe; mas enfim quando ela acabou de falar, perguntando-lhe quem eram os seus padrinhos do casamento, ele, recobrando o espírito, respondeu-lhe, fingindo um ar de riso:

— Não foi para casar, nem por desmérito algum da vossa honestidade que vos fiz vir à minha casa. Foi porque tendo-vos eu feito tantas e tão respeitosas visitas, nunca nem mandastes aqui saber da minha saúde. Meus camaradas apostavam que não havíeis de vir à minha casa, pelo vosso costume de desprezar patentes inferiores à do vosso marido. Afirmei-lhes que hoje estariam comigo minhas manas, e vós vínheis vê-Ias, e por isso vos mandei a cadeirinha para vos trazer. Foi uma leviandade, um despropósito, como vós dizeis: eu confesso, e vós tendes bastante generosidade para me perdoar. A esta hora, e por causa dos chuviscos, já não vem hoje aqui ninguém: eu vos acompanho com a cadeirinha, do mesmo modo que viestes. Que esteja avisado e à nossa espera o padre cura da Sé, é falso: vós sabeis que o militar não pode casar sem licença: eu não podia portanto dar semelhante passo de repente, e menos trazer-vos aqui para isso.

Outros discursos se trocaram, de enfado da parte de D. Ana, que lhe disse que este ardil era um meio traiçoeiro e indigno de um oficial, que pretendeu roubar-lhe a sua filha, a qual escapou por um acaso que fez com que ela D. Ana viesse em lugar de Anacleta; e o tenente balbuciando sempre, soçobrado entre os afetos da sua paixão, e a vergonha do seu engano, desfazia-se em satisfações e desculpas, até que D. Ana erguendo-se com ar digno da viúva de um capitão, tomou a sua capona e saiu, dizendo-lhe — És um indigno, que desonras essa banda.

Recolhida à sua casa, referida D. Ana o acontecido… e eis entra o conde, quando ela contava que o tenente inventara aquela farsa para obrigá-la a fazer-lhe uma visita… Com a entrada do conde suspendeu ela a narração, e o conde mal percebeu este incidente, tendo contudo ouvido algumas palavras que lhe deram suspeitas. E como D. Ana se calasse, disse ele — Não esperava eu que as senhoras me pregassem esta peça: foi uma graça muito sem graça. Podia a senhora ir fazer a sua visita, que não tinha de que me dar satisfação, mas não iludir minha curiosidade, que eu certamente não teria, se não acreditasse a Sra. Anacleta, que por esta vez foi muito indiscreta. Se por garridice[ 18 ] me noticiou no princípio esse casamento, devera, quando eu saía a vê-lo, desenganar-me e não deixar-me ir a um engano tão insulso.

Como assim se mostrasse enfadado, Anacleta, abraçando-o lisonjeiramente, lhe disse que também ela não sabia que pregavam a sua mãe esse logro, e cria que era verdadeiro o convite para ela ir servir de madrinha desse casamento.

D. Ana, mais esperta, tomou a palavra: e contou o caso de maneira que ela tinha na realidade ido à casa de minha tia, mas que estando o tempo com ameaças de chuva, e morando a noiva perto da Igreja de S. Domingos, fora a esta igreja o cura, que também mora aí perto, fazer o casamento, e quando ela chegou à casa de minha tia já o casamento estava feito, e deram-lhe a satisfação, de que por causa da chuva não esperavam que ela se incomodasse: e disto é que ela, mal satisfeita, se queixava quando o conde entrou.

Esta desculpa foi daquelas que se diz — repente de mulher; que ninguém como elas sabe ter. — O conde tinha ido à Sé e à casa de minha mãe: porém D. Ana trocou-lhe com a igreja de S. Domingos e a casa de minha tia, e como com efeito se dizia que a noiva era minha prima, era bem crível que a casa de Matias, que no princípio Anacleta disse ao conde, fosse a casa de minha tia, e não a de minha mãe. Pareceu assim a coisa consertada, e o conde sossegado.

Mas o conde era vivo como azougue. Reparou nos trajos em que D. Ana saiu de repente, para ir ser madrinha de um casamento na Sé; nos trajos que Anacleta estava tomando, quando ele entrou em casa; e nas palavras que ouviu quando voltou, dizendo D. Ana que o tenente inventara aquela farsa para obrigá-la a ir fazer-lhe uma visita. Isto e a indicação da minha casa onde era a cena com outro caso já de antes acontecido, deu-lhe grandes suspeitas de mim, de modo que depois não me chamava senão Dr. Calote e Pedro Malasartes. E quem sabe se ele não mandou saber se nesse dia houvera algum casamento em S. Domingos!… O homem era dos diabos! e creio mesmo que ele até desconfiou que as senhoras queriam vê-lo fora de casa para receberem outra visita.”

IV

uem pregava então (diz o sargento) os calotes ao conde com Anacleta? era o tenente ou eras tu? Por que te meteste debaixo da cama?

— Eu?… Foi porque não queria que ele me visse lá nessa ocasião, e desconfiasse que Anacleta queria mais bem a mim do que a ele. Depois que eu apanhasse baixa, então sim, fugia com ela para uma roça, onde ele não soubesse de nós.

— Sim! por isso estás pagando. Não te dou licença, não: manda pedir ao nosso coronel.

— Ora, meu sargento, não diga isso. Você me prometeu se eu lhe contasse estes casos que me daria a licença. Ah! deixe-me ir à cidade, que então lá eu falarei a uma pessoa para pedir ao nosso coronel. Sim, meu sargento?

— Mas qual foi o outro caso que disseste, que já de antes fizera o conde desconfiar de ti?

— Esse foi porque… Bem sabe que havia umas casas de sortes que vendiam uns papelinhos enrolados que a gente comprava, e abria, e se achava alguma sorte, ia receber; mas por acaso saía alguma bagatela: tudo, tudo sempre era branco, branco e nada de sorte.

“Um dia nos ajuntamos na guarda do palácio uns poucos: eu fui com uma meia dobra[ 19 ] a uma casa de sortes, na rua dos Ourives, comprar sortes, dizendo que o conde é que mandava para brincar com umas moças. Era noite de São João. O dono da casa, que me conhecia por ordenança do conde, temendo que se tudo saísse branco o vice-rei se zangaria, porque aquilo era uma ladroeira, e mandaria proibir, como já tinha feito a outra casa da travessa da Alfândega, meteu nos papelinhos uns prêmios, que depois eu fui buscar, dizendo que o conde e as moças estavam muito contentes; que o diabo sempre ajuda aos seus; porque se fosse um pobre não saía nada. O homem comeu a osga,[ 20 ] e ainda me disse — É fortuna de cada um, meu amigo. — E entregou-me um par de castiçais, uma salva, um par de esporas e um talher, tudo de prata.

Guardamos tudo para no outro dia se vender e repartir o dinheiro. Mas no outro dia veio logo cedo o homem perguntar-me quem tinha ficado com a salva? porque tinha havido engano de outro número, e não era o número da que ele deu. Eu que não queria descobrir a cousa, disse que tinha ido para a casa da senhora… que depois eu iria buscar. Foi lá o homem destroçar a salva: porque a que ele me deu não era de prata. A senhora… afligiu-se; porque não sabia de nada. Houve uma arenga,[ 21 ] chega o negócio aos ouvidos do conde, sou perguntado, e não tive remédio senão confessar-lhe o caso, e mostrar-lhe os prêmios da sorte.

O fidalgo, em vez de castigar-nos, gostou da ojeriza[ 22 ] e riu-se muito, dizendo — Bem feito para esses ladrões não estarem enganando o povo. Porém tu, meu Calote (disse ele fitando em mim os olhos), vê não me caias debaixo da espada.

Bem vê, meu sargento, que o conde não era mau, nem tinha razão de perseguir-me. Foi uma zanga, ou sua tanta ou quanta desconfiança de me achar escondido debaixo da cama; por de repente não me lembrar de esconder-me em outra parte. Porém isso está passado: ele não governa mais, e até nem se lembra mais de mim. Deixe-me ir à cidade, que eu vou e venho logo: não faço falta: vou ver uma pessoa que fale por mim ao nosso coronel.

— Pois vai. Eu tenho de mandar a parte semanal ao coronel: mandarei por ti, fazendo que não sei dessa ordem do conde dos Arcos. Mas não te demores: não me deixes mal.

— Não, meu sargento: dou-lhe minha palavra que vou e venho já.

V

altando de contente, parte Matias para a cidade, dizendo ora uma, ora outra vez pelo caminho — Ó Anacleta, se te vejo, minha alma voa extasiada ao empírio[ 23 ] do prazer! Correi sapatos meus, correi, vamos depressa.

Poucas léguas andadas do caminho, tolda-se o ar, some-se o sol. Cai a chuva em fios derretidos do céu à terra, rolam nos ares hórridos trovões entre vagos relâmpagos: o Viegas, o Bangu, Piraquara, Farias, os rios todos que atravessam a estrada de Santa Cruz até à cidade, erguiam-se soberbos e empolados, intimidando com clamorosos ameaços os mais afoitos viajantes. Presságio triste, aviso de mau agouro… Matias, porém, não retrocede: como a lontra, ou ururau[ 24 ] destemido, ele nada e atravessa um, e depois outro, e outro, esses monstros de água, e chega depois de trindades,[ 25 ] estancado de forças, molhado e carregado de lamas, à Venda Grande, ainda em jejum, sem ter comido nada todo o dia. Tanto pode amor, alento do coração.

Menos que o descanso pede Matias alimento, e mal apenas come, quer seguir o seu caminho: porém camaradas que aí acha, o detêm: a chuva continua, o escuro é medonho, e nem o animam suas forças muito abatidas. Aqui pois pernoita, enxuga ao fogo a sua farda, e enquanto passam as horas para a manhã, entretém-se a caterva[ 26 ] soldadesca referindo-se uns aos outros jocosas anedotas contra mulheres. Um gaiatão se faz compreender deste modo:

“Eu gostava de uma certa menina, minha vizinha; mas a dengosa, por mais que eu me afinasse,[ 27 ] sempre ela, dura aos meus afetos, me desprezava. Um dia, indo eu à casa dela, achei-a muito triste, e disse-me que era infeliz, pois que não a procurava pessoa que a tomasse por sua conta e a sustentasse. Então estando perto o dia da véspera de S. João, em que na minha terra costumam as cambonas[ 28 ] ir de noite à beira do rio ou do mato tomar fortuna, e tirar sortes, plantando dentes de alhos, ramos de alecrim ou de arruda, ou deitando ovos partidos dentro d’água, para de manhã verem o sinal de boa ou má ventura que produzam, lembrei-me de armar-lhe este laço. Chiquinha, (disse-lhe eu) vou ensinar-te uma cousa que se usa em Pernambuco, e que eu só ensinei a uma pessoa, porque lhe queria muito bem, e ela tomou ventura, e está hoje bem arranjada. Quem me ensinou logo me disse que eu não ensinasse a todos; mas ensino-te agora também a ti, para que conheças como te amo com todo o meu afeto, e desejo que sejas fortunosa.

Fiz pausa, como quem escrupulizava[ 29 ] de lhe dizer o segredo; e depois que ela me pediu muito que lhe dissesse, continuei: — Na véspera de S. João, vai, assim que ouvires cantar o primeiro galo, para a beira de algum mato ou algum rio, e aí te assenta e assobia três vezes. No tom do assobio é que está o chiste:[ 30 ] e toma bem sentido. Ensinei-lhe o tom do assobio de saciparerê;[ 31 ] e continuei: — Assobiando assim três vezes, e tendo ânimo tomas ventura, e hás de ter fortuna; mas se tiveres medo, então não tomas ventura e perdes tudo. Quando assobiares o Bicho[ 32 ] há de vir pulando, berrando, e fazendo estripulias; hás de cuidar que ele te puxa por um braço ou por uma perna, ou que te arranca os cabelos: mas deixa, ou não tenhas medo; que ele não faz nada, é mentira tudo, é farofa[ 33 ] para ver se a gente tem ânimo, e tendo ânimo ele bate uma palmada (que é só o que é verdadeiro) e vai-se embora, e está dada a ventura. Se quiseres fazer assim, verás como tens fortuna.

Ficou a moça encasquetada[ 34 ] e na véspera de S. João eu estive à espreita; e quando ela saiu de casa acompanhei-a de longe, que ela me não visse. Quando ela chegou ao pé do rio, que era perto, e em um recanto, onde as lavadeiras costumam ir lavar a roupa, assentou-se, e depois assobiou no tom que eu lhe ensinei. Pelo tom do assobio eu conheci o lugar onde ela estava, e fui-me chegando devagar, e esperei que ela assobiasse outra vez. Então lhe respondi com um grugru como de peru, e rodando com o meu capote, pulei por cima dela e dei-lhe com o braço, como com asa de peru para a derribar. Cobriu ela a cabeça e cara com a baeta,[ 35 ] e com as mãos ambas tapando os olhos, e eu abraçando-a, tombei-a para um lado e para outro, e por fim a iludi, e retirei-me outra vez gruando[ 36 ] como peru.

E que fatalidade! Bem se diz que o diabo não perde vaza.[ 37 ] Logo no dia seguinte entrou-lhe em casa um homem, gostou dela, e levou-a para daí seis léguas, a uma vila onde lhe dava bem bom tratamento. Eu não sabia para onde ela tinha ido; mas indo a essa vila, ao passar-lhe pela porta ela chamou-me, e com toda a alegria contou-me o bem que sucedeu com o meu conselho, e fez-me seus oferecimentos de gratidão, para mandar lavar e engomar a minha roupa, e tudo o que eu precisasse da sua casa.

Era tempo de quaresma: e então pensando eu no caso, confessei ao padre; e este me aconselhou que fosse desenganar essa mulher, para que não estivesse crendo que se sujeitara ao diabo. Quando eu fui à casa dela dar-lhe essa explicação, ela me recebeu com a alegria costumada, cada vez que eu lá ia, e foi-me logo oferecendo um pratinho de doce para eu beber água. Mas, quando depois de comer o doce, eu lhe fiz a narração do caso, de que ia desenganá-la, a mulher pondo as mãos nas ilhargas, e um pezinho adiante de outro, gritou com toda a força que era mentira, que eu queria abaixá-la, e tirar-lhe a sua ventura: chamou-me de negro, cachorro, cachorrão, e gritou — Aqui d’el-rei! contra mim.

O homem dela, que estava na praia defronte da casa com escravos guardando umas cargas, ouvindo os gritos, perguntou — Que é isso lá? — É este desavergonhado que vem atacar-me — respondeu ela.

Eu ainda fiquei parado, querendo explicar, e dar satisfação; mas o homem corre à casa, e foi botando a mão a uma espingarda que tinha no canto. Então pulo fora e corro; e ele atrás de mim gritando — Espera, ladrão, espera, que eu te ensino. — Valeu-me, que a espingarda, parece que estava descarregada; porque ele seguiu-me uma légua, e não deu o tiro. Corri como um veado, e vim-me embora, deixei roupa e tudo, e nunca mais lá tornei. Lá se avenha a diaba com o seu diabo.”

VI

argalhadas e mais gargalhadas aplaudiram, interromperam, e concluíram esta história. Outras tais se referiram; e Matias, cuidando de enxugar a sua roupa, concorria apenas com o seu riso para aquele entretenimento. Enfim, instado, deu também o seu contingente.[ 38 ]

“Uma pobre mulher (disse ele) tinha duas filhas, com quem vivia no melhor recato e honestidade, fazendo todo o esforço dos seus mesquinhos meios para passarem a vida. Uma noite, andando de ronda, paramos para descansar casualmente na porta desta família e ouvi dentro estas vozes: Deixemos disso, mamãe: essas que andam pelo mundo, bem boa vida que passam; como Rosinha: tem quem lhe dê boa mantilha de seda, boas rendas, sapatos, toucados, passeia, vai às festas, chiba[ 39 ] muito bem, e mamãe e nós trabalhando de dia e de noite, nunca chega nem para comprar um lenço de bioco.[ 40 ] Eu não ponho mais mão nos bolos; ninguém compra, ficam gicos[ 41 ] e a gente com o seu trabalho perdido. Tomara que me apareça um homem, que eu aceito: hei de passar muito melhor. A boa mãe benzia-se, dizendo — Jesus, e meu S. José! Deus nos livre disso, meninas, não digais semelhantes palavras: antes sofrer a pobreza, antes passar mil necessidades, do que a gente ter um nome tão feito de prostituta. Andem essas embora com os seus regalos; não tenho inveja delas: tenho visto muitas nessas chibanças[ 42 ] não durarem muito tempo, e morrerem cobertas de moléstias, e de bichos, de pancadas, e de muitos dissabores que elas sofrem: porque os homens só lhes dão merecimento enquanto elas têm sua saúde: assim que lhes dá qualquer defluxo logo dizem, que é tísica, é bobenta,[ 43 ] e fogem dela.

Nós vamos vivendo com a graça de Deus. O mundo é o engano dessas que nele se fiam. Vosso pai morreu, vos deixando pequeninas, e Deus nos tem amparado, e há de amparar, livres da vergonha do mundo. Não é desdouro o ser pobre, e mais vale pobreza com honra, do que riqueza com vergonha e escárnio do povo. Não, minhas filhas, não me desonreis a mim e a vosso pai, que foi homem de tanto brio e estimação.

A estes bons conselhos da mãe opunham as filhas as razões de não terem com que chibar entre as outras, e enfim de viverem como se estivessem mortas, vendo correrem sem vida os dias da sua mocidade. A mãe teimava nos bons conselhos; mas as filhas não queriam estar por nada.

Tendo ouvido esta conversa, fomos continuando a ronda, e, no outro dia, eu contei a um sujeito o que escutei, e a casa onde era. O sujeito meteu-se logo de amizade na casa, eu também, e fizemos nossos gastos e diligências; mas nada aproveitamos; porque a velha era tão vigilante, que nem saía de ao pé de nós quando lá íamos, e nem queria que as filhas recebessem de nós coisa alguma; era preciso, para elas aceitarem, usarmos de meios indiretos e sorrateiros. Nós dizíamos que — dádivas quebrantam penhas — e que a moça em aceitando qualquer coisa está vencida; mas ficamos com a despesa e nada conseguimos. O que fizemos foi aplainar os estrepes[ 44 ]para outro que depois meteu-se lá, e em breve orates[ 45 ] fugiu com uma, e sumiram-se. Portanto, meus amigos, quem se fia ou espera dessas bonecas de armador é babau.[ 46 ]


— Babau és tu, Matias, que te meteste em frota sem bandeira para outros triunfarem (diz um forasteiro que também aí estava recolhido da chuva, e ouvia esta história). Eu sei desse caso, e o que sucedeu a essas moças. O sujeito que levou a Aninha, não a possuiu nem dois anos; porque não podendo sustentar a fantasia dessa boneca de vaidades e desperdícios, que queria quantas rendas, quantas cassas,[ 47 ] quantas chitas, quantas modas e tetéias[ 48 ] via, fugiu ela com outro, andou por Macacu, Maricá, e por fim veio para a cidade, encheu-se de lepra e morreu lázara[ 49 ] no hospital. A Rita conservou-se em casa com a mãe, como uma heroína, moça sempre e formosa, como era e ainda é. A mãe adoeceu gravemente de um pleuris: a boa filha fez tudo o que podia para a saúde de sua mãe: vendeu tudo quanto tinha, e não tendo mais coisíssima nenhuma de que pudesse valer-se, lembrou-se de ir vender seus cabelos, que eram tão lindos, a um cabeleireiro da rua detrás do Hospício; e como lhe custava a sair de casa, deixando a mãe só, quis ensaiar a ocasião de, ao passar, pedir uma esmola em uma casa, onde com muito pejo se resolveu a entrar, e indignada saiu, repelindo avultada oferta, que um perverso vendo-a tão linda, lascivamente lhe ofereceu. O cabeleireiro ajustando por um preço ínfimo a compra dos cabelos, toma a tesoura para os cortar; mas suspende-se, vendo-a entregar-lhe a cabeça soluçando, lavada de lágrimas.

Estava aí um homem de figura respeitável, que vendo-a chorar lhe disse — Moça, então chora? Como quer vender os cabelos sem se cortarem?

— Não é por cortar os cabelos (respondeu ela), é porque este dinheiro nem chega para pagar na botica o remédio para minha mãe, que está doente… Nem pôde bem dizer isto, sufocada pelo pranto.

O virtuoso homem comoveu-se, e tirando da bolsa, deu-lhe, para que não vendesse os cabelos. Porém seguiu-a para observá-la.

A casa onde morava, era com efeito a caverna da miséria, sem mobília mais do que um leito imundo em que jazia a pobre doente, esqueleto de ossos. Doeu n’alma do bom homem tão doloroso espetáculo: acrescentou a esmola que tinha dado à moça, e retirou-se para tornar no outro dia. No dia seguinte chegou a tempo, que viu a doente expirar nos braços da filha, a quem muito lhe custou a confortar, para que não expirasse também. Este homem, que era um abastado negociante, fez as despesas do enterro da defunta, mandou limpar e mobiliar a casa, e proveu a mantença da moça, a qual continuou os mesmos trabalhos e economias a que estava acostumada, usando todos os meios de não ser pesada ao seu benfeitor.

Algum tempo depois começaram em combates a sedução armada da riqueza, e ladeada dos benefícios que tinha feito, contra a virtude oprimida da necessidade e da gratidão. “Sei quanto vos devo (dizia a moça): sem os vossos benefícios eu teria morrido junto, senão antes de minha mãe. Não vos sou ingrata; fazei de mim vossa criada, vossa escrava; servir-vos-ei até o extremo da vida que vos devo; mas não queirais que me esqueça do que devo a meu pai, à minha mãe, a mim mesma, e a Deus, que é Senhor de nós todos.”

Não pôde o honrado homem resistir ao poder de tanta virtude e beleza: casou-se com Ritinha. Vivem abastados da fortuna, e Deus tem sempre abençoado a sua união.

Assim é certo que o amor do luxo é o pior vício da mulher: rendem-se, perdem-se por qualquer objeto de fantasia. E pelo contrário a economia é a mais preciosa das suas virtudes. A mulher econômica se contenta com o que lhe é só necessário, poupa demasias, evita supérfluos, e assim vence as ilusórias carências da moda, e nas necessidades, acha no seu bom juízo o remédio conveniente.

VII

 ão agradou àquela rapaziada garrida a moralidade deste caso; e menos a Matias, que ficou mudo, pesaroso de ter sido causa do mau sucesso da Aninha; e dizia consigo: “Deus me perdoe, e não venha eu ainda a ter alguma desgraça por essa causa.” Deram taciturnos tréguas ao sono: e de manhã despontando na alvorada um dia prazenteiro, segue Matias, frouxo e transnoitado,[ 50 ] ao quartel do seu coronel, a quem entrega a parte que trazia.

— Recolha-se já para o seu destacamento — é a resposta que recebeu. Oh! raio de amor que fulminas um pobre amante! foras antes o de um trovão que acabasse logo com esta vítima da tua tirania!

O sargento, querendo antecipar a desculpa de ter mandado aquele soldado à cidade, deu na parte ao coronel a idéia que o recordou da ordem contra Matias, e foi causa de ser este infeliz tão rudemente despedido. Descoroçoado ficou o triste, que viera com tantas esperanças; lembrando da sua promessa ao sargento e intimado agora pelo coronel para se recolher logo e logo ao destacamento, escasso é o tempo que lhe resta para ir visitar sua mãe, e menos ainda para ir ver sua amada. Voa portanto à sua mãe primeiramente, e dela sabe que é morta D. Ana e que Anacleta desprezada do conde, era a Laís, ou Messalina,[ 51 ] do Rio de Janeiro. Esta notícia porém, se por um lado o contrista, por outro o esperanceia[ 52 ] de poder facilmente conseguir algum favor dessa sua dissoluta namorada. Mas quanto são muitas vezes falíveis os cálculos dos amantes!

Depois de alguns disfarces perante sua mãe, que o demorou com alguns arranjos de coisas que ele precisava para levar, despede-se como de partida para o seu destacamento. Corre porém, à casa de Anacleta. Era já bem fraca a luz da tarde, que à pressa se recuava cedendo às trevas da noite.

Não lhe fez Anacleta a recepção que ele se lisonjeava de merecer; antes, como quem esperava àquela hora outros mais avezados[ 53 ] e proveitosos visitadores, apenas lhe demonstra um sorriso choco e diz-lhe, que além de estar muito incomodada de enxaqueca, não tarda a ir ali um oficial do seu regimento, e bom seria que se retirasse. Cruel advertência, duro repúdio para um amante tão afadigado e saudoso!

Debalde ensaia Matias ainda algumas manobras da tática dos amantes; — meia volta à direita, e dobrado marcha, — foi o seu mais útil recurso.

Notou-se a entrada de Matias na casa de Anacleta; mas ninguém o viu sair; porque o infeliz, urgido pelo coronel ao cumprimento da sua promessa ao sargento, e intimidado da advertência de Anacleta sobre a chegada do oficial do seu regimento, esgueirou-se diligente pelas sombras, quebrou o canto[ 54 ] e safou-se correndo pela estrada para chegar no outro dia a Itaguaí.

Lá pela meia noite, noticia-se uma desordem em casa de Anacleta. Acodem: vêem-se estendidos mortos no chão um frade e a mesma Anacleta.

— Que escândalo! (dizem) um frade a esta hora em casa desta prostituta.

Cuida-se no enterro de ambos, que de madrugada são levados à sepultura na igreja mais próxima, a fim de não se divulgar o escândalo.

— É Frei Manoel de…, esmoler, que costuma andar fora do convento pedindo esmolas, e não poucas vezes entrava nesta casa. Mas quem foi o assassino? É o que todos conjeturaram, e cada um pretende adivinhar.

— Entrou perto da noite um soldado nesta casa, diz um.

— Sim, foi Matias do conde (diz outro); eu vi quando ele entrou, e assim a modo de disfarce, à boca da noite.

— Esse está de muito tempo fora, destacado em ltaguaí, mesmo por causa desta moça.

— Andou ontem aqui; veio disfarçado, a vingar-se do que esta moça contou dele ao conde dos Arcos, por ele a ter solicitado na ocasião em que o conde mandou saber da saúde de D. Ana, viúva do capitão Ferrolho, que era a mãe dessa assassinada.

— Que malvado! como guardou a vingança até agora!

Por estas conjecturas e indícios que os indiscretos e maliciosos apaixonados inculcavam, é sem mais ponderações nem exame pronunciado Matias como autor daqueles assassínios. Manda-se vir preso do destacamento a este infeliz, entra em conselho de guerra, e faz-lhe carga o sargento, referindo o esforço que ele fez para que o deixasse vir à cidade nesse dia, e o que por então lhe contou. Oh! como nos induz a funestíssimos erros a ignorância e a malícia!

Enquanto o processo se preparava, escreve Matias ao conde dos Arcos nestes termos:

“Muito nobre senhor conde.

Assassinaram a Sra. Anacleta, filha do capitão Ferrolho; e me imputam este crime em vingança de ter-me V. Exa. degredado para sempre, para o destacamento de Itaguaí, por ela se ter queixado de que eu a solicitei na ocasião em que V. Exa. me mandou levar um ofício à viúva do mesmo capitão, mãe da dita senhora. Rogo a V. Exa. queira valer-me com o seu nobre testemunho, narrando o que há de verdade a este respeito, para eu apresentar no conselho de guerra a que estou respondendo. Não tenho a dar outra defesa senão o que V. Exa. disser, e o que for da consciência dos meus juízes.

Sou de V. Exa.

O soldado do regimento de Moura que serviu de ordenança de V. Exa.
Matias José da Rocha.”

O advogado, defensor de Matias, foi quem ditou esta carta, mesmo perante o conselho de guerra, pedindo tempo para esperar a resposta. No dia seguinte respondeu o conde:

“Meu bom Matias.

Sinto muito a desventura de Anacleta de que agora sei pela tua carta. Nem mais me lembrava do teu destacamento, que não podia ser, nem era minha intenção, senão pelo tempo ordinário dos destacamentos, como se costumava; e se outra cousa se entendeu, já o devera ter o teu coronel remediado; pois que essa ordem nem eu a dei por escrito, nem podia ter esse efeito de perpétuo degredo. Quanto à causa: nenhuma queixa me fez nunca de ti essa senhora, nem pessoa alguma, antes para te desviar de importunos pedidos que a teu rogo ela me fazia para te dar baixa; e eu entender que assim mostravas má vontade de servir-me. Se és inocente não temas; eu solicitarei para ti o favor que a justiça permitir. É isto o que me lembra a teu respeito, em referência ao que me expões, e que neste momento pode prestar-te o

Conde dos Arcos.”

VIII

em contudo, esta carta, nem a ingênua narração que Matias fez da sua vinda à cidade e à casa de Anacleta, e da nenhuma demora que aí teve, pela frieza com que foi recebido, e logo despedido, puderam valer-lhe no conselho de guerra. Condenaram-no a ser fuzilado. Dizia porém a sentença, que o conselho implorava a favor do réu a clemência real.

D. Rodrigo de Souza Coutinho, ministro da guerra, ou prevenido pelo conde dos Arcos, ou mesmo por efeito de sua retidão e justiça, quando viu tal sentença implorada, quis em nome de El-rei saber qual a causa da imploração, e perguntou a um dos vogais[ 55 ] do conselho. “Não se disse isso: eu não me lembro: respondeu o vogal.” Outro diz o mesmo, e acrescenta, que como o auditor não leu a sentença depois de lavrada, e só deu para assinar-se, não se advertiu nessa cláusula, que talvez ele escreveu por entender que era praxe.

Vem o auditor e declara sob permissão real, que escreveu essa cláusula, mesmo para ter ocasião de lhe ser permitido chegar-se ao trono, e informar a EI-rei que o soldado era inocente. Quando pois ele auditor saía de casa para ir ao conselho de guerra, seu irmão lhe dissera: “Mano, veja se pode livrar o soldado, porque é inocente; fui eu quem matou o frade e a moça.” E não tendo ele auditor outro meio; porque o declarar isto no conselho seria denunciar seu irmão, buscou por meio daquela cláusula poder fazer a Sua Majestade esta confidência.

Tomou El-rei em consideração este caso, e mandou ir à sua presença o irmão do auditor. Este depôs com juramento na real presença, que entrando ele em casa de Anacleta, achou lá o mencionado frade, o qual desdenhando-o, deixou-se ficar sempre na mesma posição. Por fim travaram-se de palavras: e investindo para ele o frade com uma faca, ele foi mais ligeiro em esperá-lo com a sua, e o feriu. Caiu o frade: e gritando a moça contra ele, que matara, voltou ele o ferro contra ela, que também caíra, e ele correu pela porta fora com fortuna de ninguém o ver; e por isso quando se acharam os dois mortos, não se sabendo quem os matara, imputou-se ao soldado, o qual, sim, tinha lá entrado, mas saído muito tempo antes.

Esta sincera confissão e o exame do processo, o qual com efeito apenas dava longe suspeita contra o soldado, justificaram que em verdade era inocente o infeliz Matias, e El-rei o mandou em paz para o seu destacamento, anulando por um decreto a sentença do conselho de guerra, por ser írrita, injusta e carecida de prova.

Ora ainda assombrado e pensativo, ora saltando de contente, ia Matias pela estrada de S. Cristóvão parabolando[ 56 ] a sua sorte, quando encontra o mesmíssimo frade esmoler Fr. Manoel de…, que se dizia morto em casa de Anacleta, e enterrado juntamente com ela; o qual vinha se recolhendo das esmolas para a cidade. Pára, olha para ele todo espantado, e grita “Aqui de El-rei! que este é o diabo, saído lá do inferno! Frade maldito, por tua causa escapei de ser fuzilado! Este diabo fingiu-se de morto para me acusar à falsa fé. — Está doido, está doido! (grita o frade) prendam-no. Aqui de El-rei! acudam-me, ele quer matar-me.” Atracam-se; e qual de baixo, qual de cima, vão ambos ao chão, rolando, esmurrando-se, lutando um com o outro.

Acode gente, o frade e o soldado vão ambos presos. Chega de novo este caso à notícia do ministro e de EI-rei. O frade está vivo, e talvez também a moça. Isto é um enredo[ 57 ] que armaram contra o pobre Matias, por ódio de outros enredos fabricados no tempo do conde dos Arcos. Mostra-se El-rei agastado, e faz proceder a novas e sérias indagações.

Mentiria o irmão do auditor? Mentiriam os que enterraram a moça e o frade? Será um trama que urdiram para alcançarem da bondade de El-rei o perdão do soldado? Mas se nem o frade, nem a moça morreram, para que todo este fingimento, um processo, um conselho de guerra, uma sentença de morte contra o pobre soldado, e por fim a confissão do delito, feita por um terceiro perante o príncipe, para que este desviasse do soldado a espada da justiça? Por que razão se fez esta afetação, quando bastava o criminoso guardar silêncio, e proteger pela falta de prova a inocência do soldado? Eis o que muitos perguntavam, e ninguém sabia atinar e responder. É preso o irmão do auditor, porque pelo menos mentiu perante El-rei. Que diabólico enredo!

Visto que não é este o frade, então qual seria? Pergunte-se no convento. O guardião responde, que nenhum dos seus lhe falta. Seja algum forasteiro chegado do ultramar, que ainda não dera entrada no convento!… E chegou, e logo encartou-se[ 58 ] em casa de Anacleta?…

Nesta ondulação de conjunturas renovam-se as inquirições e a devassa. Nada se pôde saber. Até que uma mulher, já um tanto idosa, que morava defronte da casa de Anacleta, informa ao juiz do crime que nessa casa costumava entrar algumas vezes, fora de horas, um frade noviço, ainda sem coroa nem de Evangelho, nem de Epístola, o qual além do hábito ia embuçado de capote. Foi este frade que matou a moça: porque quando o outro homem que depois entrou, investiu para ele e lhe deu a facada, o frade caiu; e gritando no mesmo tempo a moça — Aqui de EI-rei o homem a empurrou em cima do frade e fugiu para a rua. Então o frade deu uma facada na barriga da moça, a qual gritou Ai que me matas! — O frade quando lhe deu, ia a erguer-se; mas nas ânsias da morte tornou a cair, e morreram ambos um ao pé do outro no chão. Isto ela viu, porque morando defronte, estava enxergando as coisas dentro da casa pelos buracos da rótula,[ 59 ] com a claridade das luzes que estavam dentro.

Tomado este depoimento, e inquirido também o irmão do auditor sobre algumas circunstâncias, estatura e feições do frade, abriram-se suspeitas de um certo Juca, filho de um negociante, o qual também era dos assinantes da casa, e nela já tinha levantado ou sido cúmplice de uma desordem.

Guiado o juiz por esses fios, e indagando a respeito do tal moço Juca, descobriu então de um mulato alfaiate escravo da casa, que o senhor moço, tendo sido repreendido pelo pai, por causa da desordem que aconteceu em casa daquela moça, e que o havia de degradar para a Índia, se lhe constasse que punha lá o pé nessa casa; o moço, para se disfarçar e não ser conhecido, comprara um hábito franciscano, e de noite, cobrindo a cabeça com o capuz, e embuçado de capote, é como ia fazer a sua visita; que há mais de dois meses saíra assim disfarçado, e sumiu-se, e ninguém em casa sabia dele; alguns diziam que ele tinha fugido para outra terra por causa do senhor velho que o aperreava muito; mas que ele, informante, supunha que o tinham matado em casa da moça; porque na derradeira noite que ele saiu e não voltou mais, se disse que lá tinham morto um frade corista, que se enterrou em segredo na Lampadosa, para não se falar nisso, que era uma coisa feia para o convento.

IX

sclarecido assim o caso, levaram a El-rei estas informações, que por si mesmas acusavam a leveza[ 60 ] e imprudência dos juízes. A estes mandou El-rei chamar todos, tanto aos que procederam na devassa, como os que no conselho sentenciaram o pobre soldado, e os repreendeu muito pelo mau serviço que lhe faziam, e pela falta de ponderação e boa consciência em negócio desta natureza, não se tendo feito com a devida circunspecção o exame e reconhecimento dos cadáveres; para bem se reconhecer quem eram; e não se refletindo na frivolidade das provas, que nem indícios eram, e só meras conjecturas maliciosas e infundadas contra o suposto réu.

Foi outra vez solto Matias, com grande regozijo seu, e dos seus camaradas (que aplaudiram o seu arrojo contra o frade), e dispensado de tornar para o destacamento. Mas quando mais satisfeito e galhofeiro estava, narrando aos seus camaradas estas aventuras, eis novos embaraços se lhe suscitam. Estará ele excomungado por ter dado no frade?

O provincial franciscano, vendo desenvolvido este enredo, com triunfo dos seus capuchinhos, que assim ficaram limpos de toda a nódoa e escândalo que se quis atribuir-lhes, quer levar ao apuro o bom conceito e veneração aos seus confrades, a quem comumente os seculares caluniam por mera desafeição. Acusa de excomungado a Matias, queixando-se ao general Montaury.

D. João VI era assaz ortodoxo e religioso, e os seus cortesãos afetavam, por agradar-lhe, um hipócrita e severo escrúpulo. A excomunhão por ofensa a um sacerdote é caso gravíssimo nos cânones sagrados. Matias espancou e lutou com o frade, na estrada pública de S. Cristóvão; sem remissão é preso incomunicável, e, por um novo conselho de guerra é entregue às varas e açoites eclesiásticos, depois de severos jejuns e penitências expiatórias.

E tendo assim satisfeito à Divina Sentença — Noli tangere chistas meos[ 61 ] — é depois condenado a seis anos de faxina no quartel.

Enquanto isto se passa, aparece na cidade o moço Juca, que há sete meses fora enterrado com Anacleta na Lampadosa!

O negociante, seu pai, era falecido há quinze dias.

Maior perturbação se infiltra no ânimo do juiz. Prende-se o Juca; e levado à presença dos juízes é interrogado. Juca, atemorizado de saber-se que ele fora o matador de Anacleta, nega tudo o que se dizia dele; e refere, que tendo ido a certo negócio a uma fazenda fora da cidade, lá adoecera de uma perna que levara tempo a curar; e disso dera notícia em uma carta a seu pai; que depois que ficou bem ainda se demorou algum tempo, em convalescença e divertimento; e agora viera para a cidade por saber que seu pai era falecido.

Com esta declaração, o negócio, que parecia de todo explanado e elucidado, tornou-se inteiramente tenebroso, recaindo em todas as confusões do princípio.

Inquiriu-se de novo o mulato alfaiate, a mulher velha da vizinhança, e o irmão do auditor. Este sustentou perante o Juca, ter sido este mesmo, quem vestido de frade o atacara; referindo mais algumas circunstâncias que não tinha dito nos primeiros depoimentos. Juca negou tudo obstinadamente; mas bem conhecia-se a sua perturbação, à vista do que o confrontante lhe referiu, e tanto, que até desconcertado negou ter conhecimento algum de Anacleta; que o que dizia o alfaiate fora passado com outra, não com esta mulher.

X

 pensamento do juiz se achava em torturas, quando se lembra de perguntar em que fazenda o Juca estivera doente, como este disse. Juca referiu-se à fazenda de Pamplona, vinte e seis léguas longe da cidade. Mandou-se chamar à pressa e em segredo este fazendeiro; e entretanto manda-se também vir debaixo de vara o sacristão da Lampadosa. Era um velho barbeiro.

— Em que dia (perguntou-lhe o juiz) enterraste um frade e uma freira que foram mortos de noite em uma casa da rua dos Ferradores?

Pela pergunta da freira, que o juiz fez astutamente, a fim de que pela resposta, ele fosse encaminhando outras perguntas, até chegar ao fim de descobrir quem fora o frade enterrado; perturbou-se assustadamente o sacristão, porque sabendo que o frade não era frade, e sim um moço ardiloso, cuidou que também a mulher seria alguma freira, seduzida de seu convento pelo mesmo ardiloso; e que, pelo que se passou com ele sacristão, tinha de pagar na cadeia a descoberta deste mistério. Depois de hesitar um pouco, respondeu:

— Em março, levaram, ao romper do dia, à Lampadosa, dois corpos para se enterrarem; um ia de hábito franciscano, e o outro amortalhado em uma colcha de cetim azul-claro, meia ensangüentada. Deixei os corpos na igreja e fui chamar o coveiro; quando voltei, achei o corpo vestido de hábito em pé na porta que entra para a sacristia; encaminhei-me a ele com um tanto de receio, e ele me disse com um modo de riso: “Eu não estava morto; fiquei como morto para me livrar do ladrão que matou essa pobre mulher, e também quis me matar com uma facada, que me deu aqui por baixo do braço. Tome isto (uma dobra), deixe-me ficar aqui escondido até eu ir para casa.” Escondeu-se detrás do altar. Enterrou-se a mulher; depois eu fui à botica, trouxe um vidrinho de bálsamo de Riga; curei a ferida do sujeito e apertei com um lenço. Era uma ferida resvalada do peito para baixo do braço, e pouco profunda. Ele ficou na igreja até de noite, e de noite foi-se embora, tendo mudado de roupa que eu lhe emprestei, cuidando que fazia obra de caridade ao nosso próximo.

— E quem era esse frade?

— Não era frade. Era um moço sem coroa, nem cercilho;[ 62 ] e não o conheço, porque nunca o vi senão essa vez.

— E se o vires agora, hás de conhecê-lo?

— Pode ser. E se ele tiver a ferida debaixo do braço…

— E a freira, quem era?

— Não sei se era freira. O que diziam, é que era uma moça que morava na rua dos Ferradores.

— E se a vires agora, hás de conhecê-la?

Estremeceu o sacristão, e respondeu: “Se ela está enterrada há tanto tempo, como hei de vê-la?”

Também o frade estava enterrado e apareceu vivo; assim a freira pode estar viva.

— Essa!… é impossível. Eu não reparei bem nela, não a conheço; só se mostrarem amortalhada na mesma colcha de seda azul.

Tendo o juiz findado este interrogatório, mandou vir o Juca. Este apresenta-se; e conhecendo o sacristão, ia fazer-lhe um sinal, para que se calasse, quando o sacristão foi dizendo: “Era o senhor mesmo.”

Então Juca, ouvindo o sacristão, que perante ele referiu o mesmo que já tinha dito; e tendo também sido conhecido pelo irmão do auditor, convenceu-se, e confessou que ferira Anacleta, supondo que era o seu agressor; porque quando este lhe dera, ele caiu, e indo erguer-se, estonteado da dor, caía Anacleta sobre ele, e cuidando ele ser o mesmo seu agressor que o queria acabar de assassinar, então a ferira; mas gritando ela contra ele, então conhecera, com grande pesar seu, o seu engano, ainda quis ver se podia dar-lhe algum socorro; mas o seu braço estava esmorecido, e vindo de dentro da casa às carreiras uma escrava a ver a bulha, e saindo para a rua a chamar gente, ele se deixara estar deitado no chão, para que vissem que não era ele o agressor, pois que também estava mortalmente ferido. Os que entraram o supuseram morto, e cuidaram em levá-los à sepultura. Na Lampadosa, não vendo ele ninguém na igreja, se erguera e fora para a sacristia, e depois pedira ao sacristão o socorro, como este havia exposto.

Assim sabidos todos os pormenores deste célebre acontecimento, foi o Juca remetido para a cadeia, donde tinha de responder em processo, pela morte de Anacleta. Matias, que ainda purgava os seus pecados, recebe inesperadamente a notícia de que estava com baixa. O conde dos Arcos, condoído dos seus infortúnios, lha havia solicitado.

Ainda vive, satisfeito de medíocre fortuna, adquirida pelo seu trabalho, em uma terra herdada dos seus avós; nunca esquece, antes recorda com quem lhe pergunta esta história, na qual contudo troca o nome da heroína que faz nela a principal figura.

Ecco il jiudicio human com’spesso erra![ 63 ] ARIOSTO, Orl. Furioso.

[Reprodução da terceira edição publicada pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida / Ufes (Vitória) e Instituto Nacional do Livro (Brasília), em 1988, Coleção Resgate, v. 7.]

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NOTAS

[ * ] Hoje da Alfândega.
[ 1 ] Bom cavaleiro. O marquês de Marialva (1711-1791) tornou-se famoso como excelente cavaleiro, tendo inclusive estabelecido regras de cavalgar à gineta (Aurélio Buarque de Hollanda).
[ 2 ] Pedra redonda em que se amolam facas, navalhas, etc.
[ 3 ] Guarda avançada.
[ 4 ] Assaltos repentinos de inimigos.
[ 5 ] Insolentes, desaforados.
[ 6 ] O que dá idéia de sua natureza enganosa.
[ 7 ] Infortúnios, desgraças.
[ 8 ] Mordedura.
[ 9 ] “Expressão carinhosa, irmão; usam dela os que o são, e os cunhados, os amantes, e casados.” (Moraes)
[ 10 ] Perturbado.
[ 11 ] Gesticulava.
[ 12 ] Rapto.
[ 13 ] Gorjeta.
[ 14 ] Trapaça.
[ 15 ] Em apuros.
[ 16 ] Amendoim.
[ 17 ] Cinta dos oficiais do exército.
[ 18 ] Brincadeira.
[ 19 ] Moeda da época, no valor de 6$400 réis.
[ 20 ] Espécie de lagartixa venenosa. Fig.: Logro. (Moraes). Comer a osga seria cair no logro.
[ 21 ] Discussão. Termo vulgar, segundo Moraes.
[ 22 ] Que sentido atribuiria Susano aqui à palavra ojeriza? Certamente não se aplica aqui o sentido dicionarizado de má vontade, aversão.
[ 23 ] Morada dos deuses.
[ 24 ] Jacaré-de-papo-amarelo.
[ 25 ] Ave-marias, ou seja, seis horas da tarde.
[ 26 ] Multidão.
[ 27 ] Apurasse, esmerasse.
[ 28 ] O termo não foi encontrado nos dicionários consultados.
[ 29 ] Sentia escrúpulos.
[ 30 ] Segredo, ou seja, macete.
[ 31 ] Aqui deve tratar-se da ave cuculiforme (Tapera naevia L.).
[ 32 ] O diabo.
[ 33 ] Fanfarrice.
[ 34 ] Persuadida.
[ 35 ] Tecido felpudo de lã. No caso, um capuz ou toucado feito desse tecido.
[ 36 ] Termo não dicionarizado. O mesmo que gluglulejando.
[ 37 ] “Conjunto de cartas jogadas pelos parceiros em cada lance ou vez, e que são recolhidas pelo ganhador.” (Aurélio Buarque de Hollanda). O sentido da expressão é, portanto: o diabo não perde nenhuma cartada.
[ 38 ] Cota, contribuição.
[ 39 ] Exibe-se.
[ 40 ] Lenço para cobrir o rosto.
[ 41 ] Engelhados.
[ 42 ] Exbições.
[ 43 ] Termo não dicionarizado.
[ 44 ] Abrolhos, espinhos. Fig.: dificuldades.
[ 45 ] Aqui terá o sentido de em breve tempo, no tempo de duração de uma oração.
[ 46 ] Tolo, basbaque.
[ 47 ] Tecido muito fino, de linho ou algodão.
[ 48 ] Enfeites.
[ 49 ] Leprosa.
[ 50 ] Tresnoitado, maldormido.
[ 51 ] Laís foi uma célebre cortesã grega, que viveu no século XVIII a.C. Messalina, imperatriz romana, mulher de Cláudio, deixou fama de grande devassidão.
[ 52 ] Dá esperança. Forma não dicionarizada do verbo esperançar.
[ 53 ] Acostumados.
[ 54 ] Virou a esquina.
[ 55 ] Membros do conselho.
[ 56 ] Meditando.
[ 57 ] Intriga.
[ 58 ] Abancou-se.
[ 59 ] Gelosia, ou seja, grade de fasquias de madeira cruzadas intervaladamente, que ocupa o vão de uma janela. (Aurélio Buarque de Hollanda).
[ 60 ] Leviandade.
[ 61 ] Como traduzir o termo chistos nessa frase? Terá Suzano pretendido fazer uma brincadeira ou trocadilho?
[ 62 ] Tonsura.
[ 63 ] Eis como erra freqüentemente a razão humana. Em italiano no original.

Azambuja Susano nasceu a 20 de agosto de 1791 no Rio de Janeiro, onde cursou as aulas do seminário de S. Joaquim com o intuito de ser padre, faleceu a 16 de agosto de 1873 na província do Espírito Santo, onde foi membro e secretário da junta provisória, antes de serem as províncias administradas por presidentes nomeados pelo governo geral. Produziu várias obras. (Para obter mais informações sobre o autor clique aqui)

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