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A capela do Moreira

A exemplo do quadro de Vítor Meireles, reproduzido no verso das “abobrinhas” de mil cruzeiros e que procurando representar a primeira missa celebrada no Brasil, representou, na verdade, a segunda, não ocorreu ao pintor Levino Fânzeres inspiração semelhante, para fazer uma tela da primeira missa celebrada em sua terra natal. Se ele tentasse a reconstituição, mesmo recorrendo ao auxílio do seu pai, Salvador de Araújo, antigo morador do Cachoeiro, encontraria grandes tropeços e lacunas nos documentos.

Trabalho menos embaraçoso para a palheta do mestre seria um quadro da primeira igreja de Cachoeiro. Creio mesmo que pudesse ser ajudado por algum daguerreótipo, pois até janeiro de 1885 o templo ainda se encontrava de pé, muito embora ameaçasse desabar em ruínas.

Em relatório datado de 2 de outubro de 1854 o presidente da Província, Dr. Sebastião Machado Nunes, escrevia: “…Encontrando nesses fazendeiros boas disposições para edificarem à sua custa, uma capela no lugar em que achavam os caxoeiros [sic] e começa o rio Itapemirim a ser navegável, nomeei uma comissão para este fim, cedendo nesta ocasião os cidadãos Exmos. Barão de Itapemirim, Pedro Dias do Prado e Inácio Loiola e Silva, uma porção de terreno que ali possuem para edificação e patrimônio da futura capela…”

A cessão para patrimônio da freguesia compunha-se de uma área de trinta braças de frente por cinqüenta de fundos. Mas, a Freguesia de São Pedro do Cachoeiro seria criada somente dois anos depois. O seu primeiro vigário provisionado, Padre Francisco de Assis Pereira Gomes, chegou ao povoado em 1859 e pouco demorou, apenas dois anos, retirando-se para Minas. Por encontrar-se sempre doente, celebrava os serviços religiosos na sua residência, em condições de melhor conforto do que na casa “muito ordinária”, para tal destinada.

O Barão de Itapemirim, com o propósito de abastecer as suas fazendas dos utensílios, material de lavoura, roupas e suprimento diverso e guardar os seus produtos, construíra no porto Bahia-e-Minas um armazém, e cedera um dos cômodos para capela, à qual doou um cálice, patena e colherinha de prata e uns ornamentos incompletos e surrados, pertencentes ao antigo Aldeamento Imperial Afonsino.

O pequeno oratório e imagens eram cedidos pelo alferes Inácio de Loiola e Silva e pelo fazendeiro Pedro Teixeira Duarte. Não dispunha de livros de registros, nem possuía uma imagem do padroeiro São Pedro. Essa dificuldade perdurou até o ano de 1868, sendo remediada com uma imagem de pouco mais de um palmo, emprestada por um paroquiano. Noutra dependência do armazém, dois portugueses santeiros modelavam, no gesso, imagens para barganhas e mascateações.

Tendo alguns populares profanado a capela, deram motivo ao seu fim, com tumultuoso processo.

Como não havia padres residentes no povoado, até fins de 1857, as missas, os casamentos e batizados se celebravam em altares particulares, por visitadores. Assim é que vinha do Aldeamento Imperial Afonsino o capuchinho italiano Frei Bento de Gênova e da Vila de Itapemirim o padre João Felipe Primeiro, vigário encomendado daquela Freguesia desde o ano de 1855.

Na sua gestão como presidente da Província (1860), escrevia o Dr. Pedro Leão Veloso: “…Os pequenos recursos da Província me não permitiram fazer melhorar o estado em que se acham as matrizes, algumas das quais apresentam bem triste espetáculo; havendo paróquias que não as têm, como a de São Pedro do Cachoeiro, onde vi que é sumamente indecente a casa em que se celebram os ofícios divinos.”

No segundo semestre de sessenta, chegava, como terceiro vigário encomendado da Freguesia, o Padre Manoel Leite Sampaio e Melo, o qual se apressou a dar ciência, em relatório ao Presidente do Espírito Santo, Dr. José F. da Costa Pereira, do recebimento de um conto e quinhentos mil réis, quantia autorizada em 1859 pelo Presidente antecessor, Dr. Souza Carvalho, para edificação da Matriz. Constituiu, desde logo, uma comissão composta de três membros, os dois paroquianos jurados: Manoel José de Araújo Machado, negociante de maior escala do lugar; Tenente Sabino José Coelho e ele, vigário, como tesoureiro. Logo depois, a Assembléia Provincial concedeu uma segunda ajuda, de um conto de réis. Outros devotos, nas redondezas, se incumbiram de arrecadar esmolas “…e já não temos dado começo à obra — declarava o vigário Sampaio — por causa das enchentes do rio que priva-nos a tirar pedras”.

No fim do primeiro semestre de 1861 ele se mostrava animado com a importância de um conto e cem mil réis que arrecadara dos paroquianos; reclamava do pequeno rendimento da Fábrica, isto é, da Paróquia, porque não enterravam os mortos no cemitério da Freguesia que, por sinal, nem ao menos era cercado…

“Capelas, igrejas, Ordens Terceiras e Irmandades, não há — declarava ele, e acrescentava: — Oratórios com licença, um somente que é do Comendador Werneck.”

Decidido a construir a igreja de madeira, em alicerces de pedra, subindo a tocar o assoalho, o vigário Sampaio meteu mãos à obra, providenciando o material da construção. A 1º de abril de 1862 já tinha tiradas cem toras, em madeiras de lei, as quais se encontravam lavradas e estavam prontos os esteios, os baldrames, reservadas trinta e três toras de vinte e cinco palmos para assoalho e forro. Na serraria do Major Urbano Rodrigues Souto, fazenda Safra, tinha onze dúzias de tábuas serradas e dezoito toras de cedro, destinadas ao forro da capela mor e altares. A enchente, imprevista, daquele ano, que ficou registrada nos anais da história como uma das mais devastadoras, levou as madeiras, água abaixo. Outro motivo de contrariedades, que obrigou o vigário a paralisar os trabalhos, foi a puxada das madeiras, tratada com um paroquiano que alugou sua boiada a treze mil réis diários, trabalho das seis às onze da manhã. Depois de fazer o transporte de vinte e nove paus, eis que exigia mais três mil réis diários, com o que não concordou o vigário Sampaio, julgando preferível comprar uma boiada para aquele serviço.

Em fevereiro de 1863, ele ainda não estava em condições de dispensar o cômodo do então finado Barão de Itapemirim. Os ornamentos incompletos o obrigavam a recorrer, com freqüência, à Vila de Itapemirim, com grandes dificuldades, visto distar sete léguas. Ele escrevia à Cúria: “Livros, não os havia, agora tem porque os trouxe da Corte.”

Nesse ínterim, enquanto se debatia com os problemas das madeiras, para iniciar a construção da Matriz, o fazendeiro português Antônio Francisco Moreira contratava obreiros, seus patrícios, para a ereção duma capela no lado Norte, com um patrimônio de cem braças de terreno em quadro, começando na extremidade superior da sua casa, medido desse ponto para cima, e fazendo testada ao rio Itapemirim. Limitava-se, pelos demais lados, com a propriedade do citado fazendeiro.

A 7 de junho de 1861 os operários davam início à construção e a terminavam em maio de 1863. Tinha sessenta palmos de comprimento por vinte e sete de largura. Ao lado, Moreira construiu um pequeno cemitério, com doze braças de fundo e dez de frente, igualmente bem acabado, todo murado em pedra e cal, tendo um portão de ferro muito reforçado, “de gosto moderno”, e no centro uma cruz de madeira. A capela, “pequena mais bem construída”, “com pouca ou nenhuma arquitetura”, estava “decentemente preparada”. O frontispício sustentava duas torres cobertas de zinco. De pouca altura mas que “dava-lhe alguma elegância”, cada torre tinha um sino, “proporcionado à altura do campanário”. O interior fora pintado, inclusive o forro, pelo artífice Quintino Tomás Barbosa Souto. Havia um só altar; dois nichos laterais; duas imagens, perfeitíssimas: Nossa Senhora da Conceição e São João Batista. No meio, o Sacrário, que não era dourado por dentro. Havia, ainda, seis castiçais de madeira e crucifixo dourados. A sacristia guardava uma boa cômoda com oito gavetões, sendo quatro pequenos. Neles se fechavam os pobres paramentos, com a lembrança do Barão de Itapemirim: cálice, patena, colherinha de prata e missal.

Por ocasião da visita à Freguesia (junho de 1863), do cônego José Joaquim Pereira da Silva, vigário geral provisor do bispado do Rio de Janeiro e visitador geral da Província do Espírito Santo, o fazendeiro Antônio Francisco Moreira, que construíra às suas únicas expensas aquele templo, e sua mulher, D. Maria Caetana Moreira, resolveram doá-lo, por escritura, à Província, para servir de Matriz, enquanto não a houvesse. E fizeram um duplo presente: capela e cemitério, avaliados em dezoito contos de réis, pelo vigário do Itapemirim, uma das testemunhas da doação, assinada no cartório de Joaquim José de Paiva Gonçalves.

Pelos seus predicados, o doador era digno de obter alguma distinção do Governo, mas esperou em vão, até a manhã do dia 30 de outubro de 1877, quando um seu escravo o esfaqueou mortalmente. Rodolfo, preto Mina, um bilontra que usava chapéu de lebre cor de vinho, se intitulava forro e tinha o costume de pedir moças brancas em casamento, havia dias que andava fugido. Chegando, capturado, à fazenda, como Moreira o reprimisse, com algumas vergalhadas, ele matou o fazendeiro.

Mas, voltemos à capela, dedicada ao Espírito Santo: por muitos anos ela ficou servindo à Paróquia, enquanto o vigário Sampaio se mostrava desestimulado com os percalços e poucos rendimentos da sua Freguesia. Em relatórios, ele reclamava insistentemente contra a existência de oito a nove cemitérios, pequenos, mal cercados de achas, onde se sepultava sem os sufrágios da religião e sem os obituários nos livros inexistentes. “…Alguns paroquianos têm pedido-me para benzer cemitérios, cuja autorização tenho — relatava em 1865 — e bem assim para abolir os que achar necessário, mas de acordo com a autoridade do lugar, só benzi um que é do Ilmo. Sr. Joaquim Vieira Machado da Cunha, sendo murado de pedra e cal e este é o único que cumpre seus deveres…”

Doze anos decorridos do seu oficialato, ainda reclamava contra a irregularidade dos campos santos das fazendas: exíguos, mal cercados, precariíssimos. Além do que havia no Cachoeiro e do mencionado, da fazenda Prata, distante cinco a seis léguas, existiam: o da fazenda do Centro (no Castelo), de Manoel Fernandes Moura; o da fazenda Santa Teresa, de Manoel José da Silva Braga; o da fazenda Areão, dos herdeiros de Antônio da Silva Pinheiro. Na fazenda Duas Barras, de Pedro Dias do Prado, havia um que não destoava dos demais, pelo péssimo estado. Existiam outros dois: na fazenda Entre-Morros (São João do Muqui), de João Pedro Vieira Machado, e na fazenda de Felipe Leal da Conceição, no São Felipe.

Justiça se faça: se os fazendeiros sepultavam os escravos e pessoas da família nos cemitérios das suas fazendas, não era com a intenção de burlar os rendimentos da “Fábrica”, mas devido às distâncias em que se situavam do Cachoeiro.

No ano de 1867, o vigário Sampaio comunicava ao Presidente da Província: “A obra da igreja há muito que está parada e os paroquianos dizem que por ora nada podem fazer, mas se a Província decretasse uma quantia que junta com o material existente, se pudesse fazer a obra, mediante uma quota deles, afirmaram que fariam algum sacrifício.” No ano seguinte, o mesmo vigário dava conta das dificuldades da capela do fazendeiro Moreira, dizendo que as intenções em realizar obra duradoura, a despeito do dinheiro que não fora poupado, malograram-se, pois os obreiros, não conhecendo madeiras, escolheram as piores, que eram atacadas pelo cupim. Tais eram as avarias duma parede, que ela ameaçava cair. E o assoalho já fora remendado. Quatro anos depois, o mesmo informante dizia que a capela estava muito arruinada, “em tal estado que não vale a pena consertar-se”. Mencionava outra grave causa: local mal escolhido para edificação, baixo, sujeito a invasão das enchentes. Em 1867, as águas subiram à altura da parede, lado posterior, deixando marca de dois palmos e meio de altura; naquele ano (1872), se elevaram a um palmo e meio. Das quatro portas que tinha a capela, somente uma estava fechando; as demais, tinham saído do prumo, sendo que uma das paredes laterais também mostrava sérias avarias.

A essa altura dos acontecimentos, o bondoso vigário sergipano que também trouxera a sua progenitora, D. Josefa Pastora do Amor Divino, para residir no Cachoeiro, se mostrava bastante interessado em suas terras no Itabira, confrontantes com a propriedade do então falecido Capitão Sabino José Coelho, onde havia formado cafezais, roças, pastagens, árvores frutíferas, com casa de fazenda, um administrador e escravaria. Desejoso de expandir-se, adquiriu as terras vizinhas, do casal José Benedito de Jesus e D. Emiliana Lima de Jesus.

Nos dias 25 e 26 de janeiro de 1875, o rio Itapemirim voltou a inundar a vila do Cachoeiro; enchente que superava as dos anos anteriores, causando novos danos à capela do Moreira, a qual ficou precisando de um pequeno reparo numa parede e de consertos no assoalho, sendo a quantia de seiscentos mil réis, arrecadada entre os paroquianos, para tal fim destinada.

Três anos decorridos, e se tornou péssimo o estado de conservação da capela: paredes abatidas demais; a principal, e a do poente, se não fossem reparadas com urgência, ruiriam em poucos meses.

Mais quatro anos, e o pequeno templo reduziu-se a completa ruína. Então, o vigário Sampaio transferiu as imagens para a capela do Senhor dos Passos, construída pelo Capitão Francisco de Souza Monteiro, para uso da sua família.

Só em janeiro de 1885 é que a Câmara Municipal tomou a deliberação de fazer demolir aquela primeira capela, onde se devotava o Divino Espírito Santo, e vender os materiais aproveitados das ruínas em concorrência pública. E a 31 de maio desse ano, noticiava O Cachoeirano que “o lugar vago que deixou a velha matriz desta vila com a sua demolição deu ao largo um aspecto magnífico. É, sem contestação alguma, o mais espaçoso e aplainado largo que existe em Cachoeiro.” Sugeria, o jornal, que a Câmara resguardasse o terreno para um futuro jardim público, o que, infelizmente, não foi feito.

Naquela área seria erguida, em 1912, pelo governo de Jerônimo Monteiro, a fábrica de cimento Monte Líbano, importada da Alemanha, para só produzir em 1929 o cimento que, na época, foi considerado, para orgulho dos capixabas, o melhor do Brasil.

[In Crônicas de Cachoeiro. Rio de Janeiro: Gelsa, 1966. Reprodução autorizada pela família.]

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Levy Rocha nasceu em 14 de merco de 1916, em São Felipe, então distrito de São João do Muqui. Graduado em Farmácia, residiu em Cachoeiro de Itapemirim e no Rio de Janeiro, interessando pela história de seu Estado natal. Publicou vários livros. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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