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A floresta virgem

Um encontro na floresta.
Um encontro na floresta.

O sapo. – O caranguejo. – Meu primeiro dia no interior da mata. – Os índios. – O negro fugitivo. – O boi vendido duas vezes. – O Pulex penetrans. – A aranha caranguejeira. – Uma emigração de formigas. – A festa de São Benedito. – Incêndio na floresta. – O croqui incômodo. – A surucucu. – Morte de um índio. – Tribos indígenas da província. – Uma noite na mata. – O gato selvagem. – As onças. – Regresso ao Rio.

Sem poder pintar índios, preferi pintar paisagens. Esperava, com muita impaciência, que fizesse sol, tanto mais que aos meus estudos de história natural havia acrescentado o das orquídeas, essas plantas parasitas que esperava levar comigo para a Europa. Queria também colecionar mariscos terrestres, mas nenhum desses desejos estava conseguindo satisfazer. Começara, no entanto, um segundo quadro. O tema era um naturalista às voltas com os resultados de suas explorações. Assim que cessava a chuva, voltava a caminhar pelas redondezas escolhendo algumas flores, únicas coisas que podia pintar enquanto esperava algo melhor. Uma tarde, regressando de unia dessas excursões, trazia, segundo meu hábito, algumas flores para o trabalho do dia seguinte. Dessa vez eu tinha ido bem longe. A chuva me pegara de surpresa, e a trilha já se transformara numa torrente; a água me chegava ao meio das pernas e, como sempre, estava descalço. A noite caía rapidamente, porque nesses países tropicais não há crepúsculo, o dia claro é logo seguido, sem transição, pela noite. Saltando de pedra em pedra para não me atolar no meio dos detritos de toda espécie que as águas arrastavam, pisei de repente em alguma coisa viscosa e mole; era um desses sapos enormes chamados pelos índios de sapo-boi.[ 18 ] Já um pouco familiarizado com esses achados, joguei sobre ele o meu casaco, depois coloquei o pé em cima e, apesar da sua resistência, consegui amarrar-lhe as patas traseiras; uma vez preso, foi fácil segurá-lo, suspendendo-o no ar para evitar mordida. Os índios, depois do trabalho, estavam descansando à porta da choça; foi um momento de grande prazer que o sapo proporcionou a todo mundo, e a fúria dele atingia o mais alto grau de paroxismo, porque, uma vez colocado no chão, pulou em cima de mim, abrindo a bocarra formidável e berrando como um cachorro. Queria conservar intacto um bicho tão interessante, mas não sabia como matá-lo sem causar estrago; para resolver o meu problema, o feitor, que tinha tomado parte na alegria provocada pelas graças do meu sapo, empregou o meio mais simples possível: quebrou-lhe a cabeça com uma pedra. Tive vontade de esmurrá-lo; o infeliz acabou com o meu bicho. No entanto, com muito esforço, consegui devolvê-lo à sua forma primitiva; hoje faz parte de minhas coleções.

A chuva tinha cessado; havia ainda um resto de dia e, tendo posto o sapo a salvo das formigas, fui ver o que estava fazendo um grupo de índios num cercado onde guardavam bois. Meu anfitrião comprara recentemente mais algumas reses, e os índios estavam ocupados serrando-lhes os chifres, para impedi-Ias de se ferirem entre si. Fiquei admirado com o processo que empregavam: era apenas um cordel que fazia as vezes de serra e a ponta do chifre caía. Desde então vi repetir-se várias vezes essa operação, e confesso que dificilmente acreditaria em sua eficácia, se outra pessoa me contasse o caso.

Outro encontro.
Outro encontro.

Tinham-me falado muitas vezes, no Brasil, de uma cobra terrível, o maior dos trigonocéfalos, conhecida pelo nome de surucucu e, quando manifestei ao meu anfitrião o desejo de matar uma, seus cabelos, acho, ficaram arrepiados. “Deus te livre de encontrar uma, é morte certa, porque o monstro não tem somente um ferrão na boca, mas tem outro ainda na cauda!” Repetia, assim, uma coisa que todos os índios afirmavam com convicção. Eu tinha certeza, pois, exceto quanto ao ferrão da cauda, que essa cobra era muito perigosa, possuía dentes com veneno e nunca fugia, confiando em sua força prodigiosa e na do veneno que verte à mais leve mordida. Um dia, eu estava observando alguns pássaros; enfiado até os joelhos no mato de um campo, percebi subitamente uma cabeça e dois olhos chamejantes voltados para mim. Como verdadeiro citadino da Europa, ainda sentia uma espécie de pavor só de ver um réptil, por menor que fosse. Pior ainda, depois que ouvi dizer que a surucucu ataca tudo o que passa ao seu alcance. Por isso, recuando precipitadamente, comecei a pôr uma distância razoável entre mim e o animal. Achando-me mais ou menos em segurança, pus-me a pensar se devia abandonar de vez o local ou tentar caçá-la. Esta segunda alternativa era arriscada; tinham-me prevenido de que se, por desgraça, a pessoa errasse o golpe, a cobra, de sua parte, não errava o dela. Decidindo-me, coloquei duas balas no fuzil. A cabeça tinha sumido, mas algumas ondulações no mato mais alto me revelavam a presença dela. Depois de olhar para trás para assegurar-me do caminho a tomar em caso de fuga, voltei a ver, de repente, a enorme cabeça do réptil, e atirei. Difícil era saber se ela tinha morrido; podia estar apenas ferida. Nada se mexia; esperei pelo menos quinze minutos antes de aproximar-me, e foi só depois de recarregar meu fuzil que, enfim, me decidi de verdade a conhecer com que inimigo estava lidando. Decididamente eu era corajoso; de, uma feita, um boneco tinha tombado com meus tiros,[ 19 ] e hoje eu acabava de matar nada menos que um caranguejo! Mas o que fazia esse caranguejo num campo, longe do rio, e por que trazia um pedaço de cipó na pata? Com um pouco de raciocínio, expliquei logo o fenômeno. Os índios tinham pescado na véspera uma enorme quantidade de caranguejos e, de acordo com seus hábitos, tinham-nos amarrado pelas puãs. Esse provavelmente tinha escapado no caminho e não sabia o que fazer de sua liberdade quando o encontrei: ninguém escapa ao seu destino! Compreende-se que não tive muita pressa de me vangloriar dessa nova proeza.

Há mais de dois meses eu vinha querendo penetrar no interior da floresta, que ainda não conhecia, sendo impedido por uma grande quantidade de água estagnada que, não tendo escoamento, formava um pequeno lago que só deveria secar aos poucos, quando parassem as chuvas.

Até então, o que eu tinha visto, exceto no primeiro dia em que subira o rio, não era muito interessante; faltava-me alguma coisa.

Chegou, enfim, o dia em que pude continuar minhas excursões; fizera provisões para a jornada. O livro de croquis, o chumbo, a pólvora, tudo estava em bom estado, até mesmo os frascos para guardar os insetos. O alforje estava repleto de tudo o que podia ser necessário. Pus-me a caminho antes do nascer do sol. As águas tinham baixado consideravelmente, e só me cobriam até metade da coxa. Pela primeira vez, dez meses depois de deixar Paris, eu via realizar-se por completo o que tinha sonhado.

No começo deste relato, fiz uma comparação entre a coragem necessária para deixar as pessoas que nos são caras e aquela para enfrentar os perigos naturais de certas viagens; por isso me sentia muito mais só nas ruas de Paris do que no meio dessas florestas sem saída, sem caminhos abertos, onde podia a cada passo ter um encontro desagradável, onde tinha mil chances de me perder para sempre.

Primeira excursão numa floresta virgem.
Primeira excursão numa floresta virgem.

É difícil exprimir o que sentia então; parece-me que era um misto de admiração, de espanto, talvez de tristeza. Como me sentia pequenino diante dessas árvores gigantescas que datam das primeiras eras do mundo! Gostaria de pintar tudo o que via e não podia começar nada. Desgraçadamente, devo dizê-lo, os mosquitos me devoravam: reinam como senhores nessas matas que mal deixam penetrar alguns raios de sol até o chão, que a sombra espessa conserva atentamente úmido.

Por aí nunca passa uma criatura humana; é necessário abrir caminho a golpes de facão. Se se pára um minuto, logo se é atacado de todos os lados.

Desse primeiro dia de minhas grandes excursões nas florestas do Novo Mundo guardarei por muito tempo a lembrança. Ouço ainda o grito dos papagaios empoleirados nos galhos mais altos, assim como o dos tucanos. Vejo ainda rastejar por entre o mato esse belo réptil decorado com o mais brilhante vermelhão, que é a cobra coral, e que provoca a morte com tanta precisão quanto a víbora e a cascavel. Sempre cortando cipós, sempre ganhando terreno, não passo a passo, mas polegada a polegada, cheguei a uma espécie de clareira. Uma dúzia de árvores partidas, sem dúvida pela tempestade, davam passagem ao sol. Insetos voejavam sobre essas flores imensas que se encontram a cada passo; fiz uma bela coleta, apesar dos mosquitos. Mas o mesmo não ocorreu com um belo pássaro que eu estava a ponto de alvejar, que já via dentro do meu alforje, pois, no exato momento em que o tinha em mira, um terrível mosquito entrou no meu olho, e quando me livrei dele o pássaro tinha ido embora.

Tendo-me esquecido, durante a caça aos insetos, de tomar as precauções necessárias para me orientar no caminho, senti por alguns instantes um terrível aperto no coração. Perder-se nessas matas fechadas é correr mil riscos de morte. Procurando bem, achei, felizmente, não apenas o ponto por onde penetrara na clareira, mas também, alguns passos mais à frente, uma trilha já em parte escondida pela vegetação, podendo depois, com ajuda do sol, continuar a orientar-me. Reservara o dia para a caça de aventura. Estava armado com um bom facão, fio de um lado, serra do outro; tinha balas bem preparadas, para o caso de um mau imprevisto, porque, se na América não se encontram leões nem tigres, os jaguares, os ursos e as onças são em grande número.

Andei muito tempo, escoltado sempre pelos meus inimigos, os mosquitos, sem poder decidir-me, por causa deles, a fazer o menor croqui. É preciso viver a situação para entender o quanto essa luta incessante paralisa todas as faculdades. Cheguei, depois de uma descida muito rápida, até um curso d’água, em que fui logo matar a sede e lavar pés e mãos. Essa água, correndo sob as árvores e sempre à sombra, era, no entanto, quase morna. Mareava, pelo que soube mais tarde, o limite das terras concedidas pelo governo a uma pequena tribo indígena, os puris. Naquele momento eu me encontrava no território deles. Vi algumas plantações de mamona, laranja, limão, e também roças de mandioca.

Permitam-me um parêntese para explicar o que é e como se prepara a raiz de mandioca para obter o alimento que, em toda a América do Sul, substitui o pão não só das classes pobres mas também das mais elevadas. Essa raiz tem grande semelhança com a beterraba; mergulham-na por vários dias na água, depois cozinham-na num forno que, entre os índios, é apenas uma vasilha de ferro com a forma de um prato; ao sair do forno, esmagam-na numa espécie de pilão, feito, o mais das vezes, de um tronco de árvore, depois levam-na uma segunda vez ao forno até transformá-la numa farinha grosseira; come-se geralmente seca, mas os gulosos misturam-na com banha de porco. Faz-se também com a mandioca a tapioca e o amido.

Quando apareci na vizinhança das choças, as mulheres e as crianças fugiram a toda pressa; os homens, mais corajosos, se mantiveram firmes, mas pareciam espantados de me ver procurar e pegar insetos, coisa até então inusitada entre eles. Não notei, aliás, nada de hostil em seu modo de examinar-me; muito pelo contrário, vendo que, aproveitando a trégua que me davam os mosquitos, comecei a pegar algumas laranjas caídas no chão para almoçar, dois dos índios vieram até mim, armados com uma vara comprida, e derrubaram uma meia dúzia das laranjas mais bonitas, que me ofereceram com a maior gentileza do mundo. A refeição era bem-vinda. Tão logo me sentei debaixo das laranjeiras, meus dois novos amigos ousaram aproximar-se ainda mais. Minha faca de caça, meus frascos cheios de insetos, meu canivete de muitas lâminas os intrigavam muito.

Já era tarde; o sol já cumprira dois terços de sua trajetória, e era longo o caminho de volta ao acampamento. Voltei à floresta onde, apesar das trilhas e das marcas que fizera para orientar-me, tive dificuldade em encontrar o caminho. Matei aqui e ali alguns pássaros e um lindo macaquinho. Andando sempre, procurava também o que houvesse de mais interessante para pintar nos dias seguintes.

Ao chegar a casa, soube que um negro, a quem eu dera na véspera um casaco impermeável, aproveitara a oportunidade, independentemente de qualquer outra razão, para escapulir, deixando muito desapontado o senhor X… Não se consolava com essa perda, ainda mais que o fugitivo se fizera gordo e forte, de magro e doente que era, quando o tinham comprado baratíssimo, quase a preço de banana. Essa fuga representava um prejuízo de alguns milhares de francos. Meu hospedeiro escreveu inúmeras cartas e despachou todos os criados à cata desse homem, ingrato o bastante para fugir de quem o havia engordado. Eu fazia votos, bem baixinho, para que as buscas não dessem em nada, mas, um dia, quando já os julgava realizados, vi o pobre diabo trazido de volta por um índio e um mulato, com as mãos enfiadas em algemas de ferro. O negro sabia, contudo, que cometera um grave delito: a pobre cabeça se inclinava, lágrimas lhe corriam pelas mãos, que cruzara ao peito. Eu aguardava com ansiedade o que se ia ordenar, preparando-me para intervir se a punição fosse severa demais. Felizmente o culpado se lembrou a tempo de um costume que permite ao dono ser indulgente sem se rebaixar em sua dignidade. Assim recorreu ele à clemência do feitor, que, por isso, se tornou seu fiador, pedindo perdão para o seu pupilo, que ficava, por algum tempo, em dívida com ele. O negro foi condenado apenas a receber na mão alguns bolos de palmatória,[ 20 ] espécie de férula destinada aos pequenos castigos domésticos. Nessa casa, todo dia algum pequeno incidente vinha romper a monotonia de minha vida interior; nisso os animais desempenhavam quase sempre o papel principal: era um rato que roera os sapatos, um cachorro que comera o jantar, um porco que derrubara a panela; galinhas indiscretas, que, entrando e rodopiando em cima dos móveis, quebravam os objetos frágeis quando perseguidas; enfim, diversas gerações de gatos de ambos os sexos, que, depois de fazer toda espécie de delito durante o dia, se soltavam de noite nos telhados, fazendo um barulhão capaz de acordar um morto. À volta da choça, os três porcos se compraziam em vir grunhir, o que me era muito desagradável, sobretudo quando se instalavam na frente da minha porta. Eu tinha achado uma espécie de porrete de pau-ferro que comecei a utilizar oportunamente em cima do grupo; os porcos, fugindo, acordavam os bois adormecidos, que, por sua vez, debandavam, levados por um terror pânico, derrubando tudo o que achavam à sua passagem; então os cachorros misturavam seus latidos aos grunhidos e mugidos. O senhor X…. pensando que a choça estava sendo atacada por hordas selvagens, punha prudentemente a cabeça à janela, escondido pela cortina. Como não me convinha aparecer no meio de semelhante confusão, na qual havia desempenhado papel tão destacado, voltava a deitar-me bem depressa, decidido a não me levantar para coisa alguma. Mas no dia seguinte viam-me manifestar um interesse muito natural pelo relato dessas aventuras noturnas. Os bois estavam destinados a desempenhar importantes papéis em minhas impressões de viagem; assim, um dia, tendo meu hospedeiro comprado uma dúzia deles, que despachou para o interior, um dos bois comeu uma planta venenosa e morreu ao cabo de algumas horas. Os índios trouxeram a carcaça numa canoa e, chegados em terra, diante da casa, esfolaram o animal e jogaram a cabeça num matagal. O dono da casa estava ausente; mas a mulata, espécie de contramestra, mandou pôr num barril, que pouco antes continha vinho, pedaços da carne, da qual se tinham retirado os ossos de uma maneira capaz de embrulhar qualquer estômago, e tão bem preparados que em menos de dois dias os vermes tomaram conta da carne toda; uma semana depois, davam-me de comer dela ainda.

Como se tratava de fazer economia e como meu hospedeiro vivia me falando do alto custo dos víveres, a mulata se absteve de me informar a causa da morte do boi. Durante quarenta e oito horas, todos os outros bois, reunidos perto da cabeça sangrenta, soltavam noite e dia gritos de lamento aos quais se vinham misturar os rugidos das onças; depois acorreram centenas de abutres negros chamados urubus.[ 21 ] Estranhos contrastes, no meio dessa natureza tão rica, tão brilhante! Era sob as laranjeiras em flor que me escondia para atirar nessas aves horríveis que se disputavam os restos de um boi do qual eu mesmo me alimentava, sem suspeitar, todavia, do modo como morrera.

No entanto, ao cabo de três dias, apesar do molho de pimenta com que temperavam o defunto, eu começava a sentir necessidade de outra comida. Inútil dizer que, voltando o meu anfitrião à casa, não provou ele desse prato, especial apenas para os hóspedes.

Eu acreditava que nada mais teria a ver com bois, mortos ou vivos: enganava-me, porque, se meu hospedeiro tinha perdido um, acabava de comprar outro em Santa Cruz. No dia em que deviam entregá-lo, os filhos do vendedor, trazendo o dinheiro recebido, vieram sozinhos pedir desculpas pelo pai, que, a contragosto, se vira forçado a ceder o animal a outra pessoa. Meu anfitrião ficou muito contrariado com essa notícia; o outro comprador era sua sombra negra, seu pesadelo; era, dizia-me todo dia, um homem sem fé nem lei. Como, afinal, eu não tinha razão nenhuma para pensar o contrário, esqueci, nessa circunstância, as minhas próprias mágoas, e aconselhei o senhor X… a levar vigorosamente o caso adiante, propondo-me, inclusive, a acompanhá-lo. Havia algum mérito em minha proposta, porque as feridas que trazia nos pés não me permitiam calçar sapatos. Tive de prender as esporas por cima da carne viva; carregamos cuidadosamente as pistolas e partimos. No caminho, passando perto de uma choça, cães assustaram o meu cavalo: ele empinou totalmente e, recuando um passo, deu com um cepo que o derrubou de costas. Em menos de um segundo vi o lance e compreendi o perigo: felizmente eu tinha estado na Lapônia! Eis uma coisa que deve parecer estranha: regozijar-se alguém de ter estado na Lapônia por causa de um cavalo que empina nas florestas do Brasil, dando-lhe tempo de ver que ele vai esmagá-lo em sua queda; no entanto, nada mais pertinente. Um dia meu cavalo atolou numa turfeira e, ao se debater, me derrubou; uma de suas patas prendeu minha mão esquerda e íamos afundar juntos quando meu pessoal veio socorrer-nos e, com ajuda de varas e de um mastro que servia para erguer minha tenda, conseguiram nos pôr de pé, num estado lamentável, entretanto. A partir daí, com medo de me ver enterrado vivo, ao menor tropeção da montaria eu levantava prontamente a perna e, seja na água, seja num bosque, seja em cima de pedras, deixava-me escorregar mansamente, mais ou menos como um saco de trigo mal amarrado: esse gesto se repetira trezentas ou quatrocentas vezes num raio de cem léguas.

Há pelo menos dez dias que eu vinha andando assim em terra firme quando cheguei ao lugar onde a terra acaba, em que esteve Regnard, segundo contou em belos versos latinos. Chama-se a esse tipo de impropriedade licença poética; declino, pois, minha incompetência e, como sempre, nas coisas que não entendo, tomo o partido de me abster. Assim, meus estudos lapões de queda de cavalo não me foram propriamente inúteis no Brasil. No caso em apreço, fiz um movimento tão brusco que o cavalo, ao invés de me quebrar o peito caindo em cheio em cima de mim, não me causou mais do que leve contusão no estômago; é verdade que também torci o pé doente. Apesar disso, montei de novo.

Fomos primeiro à casa do mulato, a fim de saber como e por que, depois de receber dinheiro pelo boi, logo em seguida fizera negócio com outra pessoa. O pobre homem estava atrapalhado; parece que o outro comprador se tinha apresentado muito tempo antes, e insistia que o mulato estava comprometido com ele. Enfim, a coisa toda estava muito complicada; não havia mais nada a fazer se não ir à casa do novo dono do boi e, de acordo com a resposta dele, correr ao animal inocente e quebrar-lhe a cabeça, com o risco de o usurpador quebrar a nossa depois. Ao chegar perto da casa, meu anfitrião teve a desagradável surpresa de ver todos os criados negros e índios sentados diante da porta, e o patrão de pé, com os braços cruzados, esperando o adversário. Este apeou do cavalo, coisa que não pude fazer. É impossível repetir aqui todos os insultos de todo tipo que meu anfitrião teve de suportar: que ele era um ladrão, um caluniador, um homem perigoso, que ele tinha querido denegrir o orador lançando contra ele os boatos mais odiosos.

Achei, então, que devia intervir e, estendendo o braço com muita majestade, fiz ouvir, no meio de um silêncio solene, estas palavras, que Sancho Pança não teria desaprovado:

— Há alguns instantes venho ouvindo atentamente todas as queixas dirigidas contra o meu anfitrião; já as mesmas queixas me tinham sido feitas por ele contra este que agora o ataca. O que acontece neste momento me prova que todo este mal-entendido provém de diferentes intrigas feitas junto a um e a outro e adornadas, segundo o costume, de uma porção de comentários. Vamos, senhores, apertem as mãos e prometam que o primeiro que ouvir qualquer história irá lealmente, na mesma hora, à procura do outro. Quanto ao boi, vamos matá-lo e salgá-lo, e ele será dividido para a felicidade de ambos.

Meu discurso foi traduzido e uma torrente de aplausos foi minha recompensa: o homem branco falara bem.

O bom tempo tinha voltado. O sol esbanjava calor; o vento começava a soprar cada dia mais fresco por volta das oito horas da manhã. Várias vezes eu já havia pintado na floresta, com a qual me ia familiarizando, sem perder nada da minha admiração. Já conhecia o tronco de tal árvore, tais plantas que me propunha copiar. Levava meu almoço comigo, e uma parte do dia passava à sombra, sempre incomodado pelos mosquitos, sempre protegendo meu almoço das formigas. Tinha acrescentado as orquídeas às minhas coleções; uma vez trouxe um número tão grande delas que fiquei estafado. Eu me dizia, todo dia, que decididamente não voltaria mais à mata: é penoso trabalhar sendo devorado pelos insetos. Mas depois, quando ouvia cantar o galo, levantava-me e saía. De regresso, costumava passar uma hora no mais delicioso regato que existe no mundo: areja finíssima, árvores copadas, flores pendentes de todos os lados! Como era sempre de tarde que eu voltava da mata, o sol ia declinando e eu podia, depois do banho, descansar ou caçar insetos. Na impossibilidade de pintar índios ou de fotografar, na falta de pessoas que me carregassem a bagagem, eu descontava o tempo perdido pintando paisagens. Depois, quando me cansava desse exercício, executado sem interrupção desde bem antes do nascer do sol, sentava-me para desenhar folhas. Variedade é o que não faltava e, para atestar a veracidade do meu lápis, eu punha essas mesmas folhas num herbário, precaução que pude apreciar mais tarde, quando, de volta à França, quis pintar em grande escala uma floresta virgem.

Operação desagradável.
Operação desagradável.

Enquanto eu aproveitava o retorno do tempo bom, meu hospedeiro teve a ideia de ampliar a casa. Era natural, ainda mais que essa reforma só tinha inconveniente para mim, pois, para unir o telhado novo com o antigo, que recobria, exatamente, o meu alojamento, era preciso retirá-lo antes. Mas substituíram o meu telhado por um couro de boi, que deixava passar por tudo que é lado o vento, a chuva e, pior ainda, todos os insetos, atraídos pela vela que eu, aliás, usava moderadamente para não ser indiscreto. Como me levantava de madrugada, só ficava acordado de noite para submeter-me a uma operação bem dolorosa. Operação desagradável.Existe no Brasil um inseto infinitamente pequeno: o pulex penetrans ou bicho-de-pé,[ 22 ] espécie de pulga imperceptível que se introduz debaixo das unhas dos pés, nos dedos e algumas vezes em outras partes do pé; uma vez introduzida, em geral bem profundamente, na carne, põe ovos aos milhões numa bolsa que vai aumentando cada vez mais. Se a pessoa o deixa vingar na ferida, distúrbios gravíssimos sobrevêm.

Afirmam-me que um sábio, pretendendo levar para a Europa uma amostra desses insetos com os ovos, não quis retirá-los e morreu durante a travessia. Minha choça era, como disse, muito suja; toda noite me deitava no colchão e deixava examinarem-me os pés com um alfinete e um canivete, a fim de retirarem habilmente o abscesso todo: se se arrebenta, os ovos ficam na carne. Um dia, entediado com essa operação, não quis mais me submeter a ela. No dia seguinte, acharam onze ninhos no dedo grande do meu pé direito. É fácil entender o efeito que produzem esses buracos, nos quais penetram mais facilmente outros flagelos do mesmo gênero, e que é preciso alargar toda vez que se tira dali um novo inseto. Enquanto me dissecavam por baixo, todos os tipos de insetos, atraídos pela vela através da abertura no telhado, vinham agir sobre o resto da minha pessoa de modo a me deixar quase louco. Eu estava, acima dos quadris, de cada lado, com a pele toda avermelhada das mordidas de um inseto tão pequeno que só se pode ver ao microscópio: chama-se maruí.[ 23 ] Muitas vezes eu achava, por todo canto, um bicho horrível, primo do pulex, chamado carrapato, que vivia às minhas custas e engordava à beça, ora na barriga da perna, ora em outro lugar. Os piolhos de galinha, também muito desagradáveis, havia aos montes. Além das feridas nos pés, os mosquitos me haviam provocado inchação dos olhos e no nariz: um dia, tendo roçado casualmente um ninho de vespas, todo o enxame em fúria se lançou sobre mim, e, como eu tivesse rapado a cabeça, foi aí que elas atacaram primeiro.

Isso quanto aos seres nocivos; havia também os curiosos, os visitantes inofensivos. Primeiramente, milhares de coleópteros chamados brocas,[ 24 ] que atacam tudo, furando com as mandíbulas até mesmo a madeira, tanto que fizeram um buraco num barril, derramando-se o vinho. Esses bichos se abatem em massa sobre os objetos brilhantes e, sendo atraídos pela luz que me iluminava a operação nos pés, era preciso pegá-los aos punhados e atirá-los fora. Os besouros e as mariposas noturnas me visitavam aos montes. Devo citar algo bastante curioso: as baratas, as terríveis baratas, com sua casca mole, suas grandes antenas, cobriam as paredes da minha choça ao cair da noite. Um dia pintei uma flor vermelha e um pássaro de papo também vermelho; no dia seguinte, essa cor havia desaparecido. Consertei o estrago. O fato se repetiu. Não sabendo a quem culpar, pendurei meu quadro e, apagando a vela, fiquei à espera; ouvindo um barulhinho do lado do quadro, acendi rapidamente a vela e reconheci as baratas. Eu nem precisava desse último feito para dedicar-lhes ódio mortal. Como não sou químico, foi-me impossível entender por que esse bicho, o meu bicho negro, atacava só a cor vermelha. Quando a operação nos pés acabava e a vela era apagada, normalmente os visitantes iam embora, exceto os mosquitos. Desde que o couro de boi passou a proteger-me o catre, toda noite eu era despertado por ratos, que, roíam esse manjar um pouco duro; se eu fazia barulho, eles fugiam para voltar depois. Tive uma idéia feliz, e ao porrete, reservado para os porcos, meus vizinhos, amarrei meu bastão de paisagista com ponta de ferro para combater os ratos; quando eles estavam encarniçados em cima do meu teto, o bastão levantava o couro no ar com todos os convivas. A pessoa precisa se distrair um pouco se não consegue dormir, e essa brincadeira, aliada ao exercício do porrete, me fazia esquecer as mordidas daqueles inimigos que eu não podia contrariar tanto.

Certa manhã em que a chuva me deixara preguiçoso, eu estava em cima do colchão, meio adormecido, meio desperto; um bicho horrível me fez saltar de pé, arrancando-me desse far niente a que raramente me entregava: uma caranguejeira estava perto de mim. Essa aranha, de nove a dez polegadas de largura, peluda no corpo todo, é provida de duas presas cuja picada provoca febre durante vários dias; ela vigia e come passarinhos; o nojo não me impediu, no entanto, de acrescentá-la às minhas coleções. Também com o escorpião eu já havia travado conhecimento.

Presságios de uma invasão de formigas.
Presságios de uma invasão de formigas.

Um dia eu estava pintando um tronco de árvore que os cipós envolviam como arcos de barril. O volume deles era bem mais grosso que a árvore que, parecendo enorme a princípio, não era, no entanto, na realidade mais do que um caule frágil em comparação com as parasitas de que era presa. De outra vez, entregue ao trabalho, comecei a ver insetos e lagartixas passando perto de mim e se movendo na mesma direção; lá atrás ouvia gritos de aves que se aproximavam imperceptivelmente. Meu primeiro pensamento foi terminar logo meu estudo, pois só podia ser uma tempestade que estava se formando e, como tinha cerca de uma légua para caminhar, preparava-me para sair dali, quando, subitamente, me vi envolvido dos pés à cabeça por uma legião de formigas. Só tive tempo de me levantar, derrubando tudo o que continha minha caixa de cores, e de fugir em desabalada carreira, fazendo todos os esforços possíveis para me livrar de minhas inimigas. Quanto aos objetos que largara no chão, nem sonhar em procurá-los. Numa faixa de dez metros de largura aproximadamente, e tão juntinhas que não se via uma polegada do chão, miríades de formigas de correição avançavam sem se deterem diante de nenhum obstáculo, transpondo cipós, plantas, as mais altas arvores. Aves de todo tipo, sobretudo pegas, seguiam as emigrantes, voando de galho em galho, e se alimentavam às custas delas. Eu gostaria muito de pegar meu fuzil, esquecido na precipitação; mas era impossível, porque por três horas seguidas não se poderia achar um só lugar onde pôr o pé. Finalmente, aos poucos, foram se abrindo, na massa emigrante, pequenos espaços em que me atrevi a pisar, evitando pôr o outro pé ao lado: eu teria sido atacado de novo. Levei algumas picadas, porque havia insetos por todo o fuzil e, regressando aos pulos num pé só, como na ida, pus-me de novo fora do alcance delas. Eu tinha matado algumas aves e, quando o exército inumerável de formigas deixou a passagem livre, de minha caça só restavam os ossos: tudo o que nela se podia comer fora devorado, até mesmo as penas. Voltando à choça, vi que um outro exército tinha entrado no meu quarto para só deixá-lo depois de proceder do mesmo modo que o que me tinha perturbado o trabalho de maneira tão intempestiva. Esse exército era bem menos numeroso que o primeiro, e também, como ali só havia aves conservadas, o sabão arsenical não constituíra nenhum atrativo para ele. Minhas coleções, felizmente, não tentaram as formigas. O mesmo não se dera comigo. Eu fora picado em vários lugares, o que exasperou meu sistema nervoso, já bastante irritado por meus combates noturnos e, em vez de dormir, pus-me de emboscada, armado com o porrete, disposto a exterminar tudo, quando ouvi ao longe um barulho confuso; tocavam alguma coisa como um tambor cuja membrana estivesse molhada. Que poderia significar semelhante barulho nessas solidões? Fiquei acordado quase a noite inteira. De manhã fiquei sabendo que era a festa de São Benedito, muito venerado entre os índios A festa de São Benedito numa aldeia indígena.. Eles se preparam para a festa com seis meses de antecedência e guardam a lembrança dela seis meses depois. A partir do momento em que começa a tocar, o tambor não pára nem de noite nem de dia. No dia da festa, fui com meu hospedeiro me divertir vendo a cerimônia, que se realizava numa pequena aldeia chamada, creio, Destacamento. Em cada cabana em que entrávamos, estavam bebendo cauim e cachaça; não cantavam, gritavam. Os homens, sentados, tinham entre as pernas seu tambor primitivo; pequeno tronco de árvore oco recoberto somente numa extremidade com um pedaço de couro de boi; outros esfregavam com um pequeno bastão um instrumento feito de um pedaço de bambu denteado de cima até em baixo. Ao som dessa algazarra, as mulheres mais velhas dançavam devotamente um horrível cancan que certamente nossos virtuosos agentes de polícia teriam desaprovado.

A festa de São Benedito numa aldeia indígena.
A festa de São Benedito numa aldeia indígena.

Depois de se dançar muito, beber muito e gritar muito numa cabana, passava-se a outra para recomeçar a mesma algazarra.

Numa das cabanas dei prova de imensa coragem, bebendo direto de urna cabaça cheia de cauim, cortesia inspirada apenas pelo desejo de me tornar popular e de fazer mais tarde alguns retratos. No entanto, não ignorava a maneira de se preparar essa bebida. Sabia que as velhas (pois são sempre elas que exercem as funções importantes) mastigavam raízes de mandioca antes de lançá-las numa panela; sabia que elas cuspiam uma após a outra no recipiente e depois deixavam fermentar o todo. O amor pela arte levava a melhor sobre o nojo. Dessa cabana muito hospitaleira fui para outra; nesta não havia mulheres; um índio estava cantando uma canção doce e monótona, acompanhando-se ao violão: ele tinha um encanto muito especial. Fui sentar-me à frente dele, e fiquei abismado quando me vi como tema de suas improvisações, cujo refrão era:

Su Biá ao sertão guerea
Matar passarinhos
Su Biá ao sertão
E também Surucucu.[ 25 ]

Todos os ouvintes ficaram encantados vendo-me rir às gargalhadas com essa cantoria em minha honra, apesar de suas pequenas imperfeições.

Finalmente chegou o momento aguardado por todos: dois personagens importantes apareceram no local. O primeiro, um índio alto recoberto com uma longa blusa branca, imitando remotamente a sobrepeliz de um coroinha de igreja, segurava com uma das mãos um guarda-chuva vermelho, enfeitado com flores amarelas; na outra mão carregava uma caixa, já segura por um velho xale com franjas, colocado à maneira de boldrié. Na caixa estava São Benedito, que, não sei por quê, é negro. Essa caixa também tinha flores; além disso, também se destinava a receber as oferendas. O segundo personagem, digno de pertencer ao antigo exército de Soulouque,[ 26 ] estava vestido com uma roupa militar de chita-da-índia azul-celeste, com gola e paramento igualmente de chita-da-índia imitando damasco vermelho; suas pequenas dragonas de ouro caíam para trás como as do general La Fayette; em sua cabeça alteava-se um chapéu de pontas, assombroso em comprimento e altura, encimado por um penacho outrora verde, tendo como distintivo uma etiqueta com três cerejas do mais vivo vermelho no centro. Esse segundo personagem é o capitão. Para ser digno desse posto, é preciso ter na barriga da perna uma força superior à de todo mundo na aldeia, porque o capitão não deve parar de dançar durante toda a cerimônia. Ele abriu então o passo dançando, segurando com graça diante de si, perpendicularmente, uma pequena baliza, que a princípio tomei por uma vela. O bedel e o santo, um levando o outro, seguiam com o guarda-chuva ao vento, à maneira de pálio; os músicos, em duas fileiras, vinham logo em seguida; à volta do santo, as velhas devotas dançavam o cancan. De longe em longe, viam-se cabeças jovens e bonitas olharem, escondidas por trás das janelas e das portas. O grupo parava em frente da cabana de cada convidado do banquete; o capitão, sempre dançando, entrava e dava a volta pelo interior da casa. Com a música continuando sempre, gritava-se muito e depois passava-se à choça de outro convidado; finalmente, entraram na igreja, onde havia arranjos de palmeira feitos pelos decoradores do lugar; cabaças contendo banha estavam dispostas à maneira de lampiões. A mesa estava posta diante do altar; haviam prudentemente colocado por cima lençóis costurados uns nos outros, sem dúvida por causa das aranhas e outros bichos nocivos. Fecharam São Benedito na caixa, depois de terem retirado dela as oferendas, e fomos embora.

A caminho, arquitetei na cabeça um quadro dessa festa grotesca. Para executá-lo, porém, eu tinha de conseguir muitos detalhes, e como consegui-los sem a ajuda do meu anfitrião?

Dessa vez ele pareceu interessar-se pelo projeto e prometeu-me fazer o possível para que se realizasse. De fato, me emprestou mais um de seus índios; digo um de seus índios porque é costume, na província do Espírito Santo, pegá-los jovens, quando, ainda sujeitos a uma administração, eles são com crianças abandonadas; toma-se a responsabilidade de educá-los, devendo-se mantê-los até certa idade, não como escravos, mas na qualidade de servidores. Passado o primeiro momento e fornecido generosamente o primeiro modelo, repetiu-se o acontecido com o quadro anterior; os detalhes, como o guarda-chuva vermelho, os tambores, o casacão, o chapéu com distintivo cereja, nada pude conseguir, sendo mais uma vez obrigado a desistir do trabalho.

Incêndio na floresta virgem.
Incêndio na floresta virgem.

É fácil entender o pesar que me causavam todos esses entraves, ainda mais que o tempo ia passando. Finalmente, um dia recebi carta do excelente Sr. Taunay,[ 27 ] o contraste mais perfeito da má vontade natural do meu italiano. Um instinto de zelo, porque não podia ser outra coisa, fazia-o enviar-me dinheiro, houvesse o que houvesse. Eu dizia, na primeira vez que tive a felicidade de vê-lo, que freqüentemente, durante este relato, o nome dele viria pôr-se sob minha pena: é que nunca, em minhas relações com esse homem digno, tive motivo de decepção. A soma que me enviava não era suficiente para deixar o local em que achava tão pouca ajuda e recursos; mas justamente quando tomei a decisão definitiva de largar tudo, outra soma maior me chegava, e pouco depois uma terceira. Todas as oportunidades tinham sido aproveitadas para que o dinheiro me chegasse aos poucos, a fim de evitar que eu ficasse em apuros se por infelicidade uma das remessas não chegasse ao seu destino. Finalmente, eu estava rico; não precisava de mais nada, a não ser canoas e homens para sair do meu covil. Enquanto esperava a oportunidade, que não tardou a chegar, prosseguia as minhas coleções. Tinham derrubado árvores numa enorme extensão de terreno; era um bom lugar para procurar insetos, porque o sol os atrai aí bem mais que no interior da mata. Logo deveriam pôr fogo no local para terminar o trabalho que o machado começara; para isso várias condições eram necessárias: um dia muito quente e um certo vento leste, creio eu. Certa manhã vieram me dizer para me preparar; fui logo procurar um canto de onde pudesse ao mesmo tempo ver e pintar um espetáculo que, independentemente do meu interesse de curioso, constituía tema para um quadro. Todos os criados da cabana, e outros mais, atraídos pela curiosidade, e sem dúvida contando com seu quinhão de cachaça que, nessa oportunidade, se distribui fartamente, vieram ao mesmo tempo a diversos pontos para ver o incêndio. Em poucos instantes só tive a dificuldade da escolha. Aqueles montes de galhos, aqueles velhos troncos de árvores, aquelas folhas ressecadas pelo sol durante seis meses, tudo se inflamou ao mesmo tempo. Cada criado, armado com uma tocha, se deslocava para onde o fogo diminuía. Esses homens vermelhos, negros, se agitando através da fumaça, pareciam feiticeiros assistindo a uma sessão de sabá. As chamas, serpenteando no alto das árvores que o machado não derrubara, assemelhavam-se a incontáveis tochas gigantescas. Eu não sabia por onde começar, de tanto que se elevavam, se arremetiam, se misturavam e se sucediam com impetuosidade os turbilhões de fogo e de fumo. Encostara-me a uma árvore derrubada há muito tempo; era tão grande que a deixaram no mesmo lugar em que caíra. Isso quase me foi fatal, porque, no momento em que, bem acomodado atrás dela, eu pintava rapidamente o incêndio, o vento de repente mudou de direção; num segundo as chamas começaram a ser sopradas para o meu lado. Num instante fiquei coberto de fagulhas ardentes que me entravam nos olhos; não era o caso de fechá-los, era preciso fugir bem depressa; aquele tronco imenso não podia ser transposto, porque tinha mais de quatro metros de espessura e mais de vinte de comprimento. No entanto, a única coisa a fazer era correr paralelamente a ele, o que fiz, abandonando chapéu e cadeira de campo. Felizmente, salvei a caixa de cores e o papel, mas cheguei coberto de fuligem, de que tive muita dificuldade para me livrar. Uma chuva miúda veio atrasar o progresso do incêndio; muitos tocos ficaram queimados pela metade.

Voltei à noite, e dessa vez, sentado confortavelmente, pude contemplar sem perigo um espetáculo admirável; entre as árvores queimadas, várias ainda estavam de pé, só esperando o menor sopro de vento para desmoronar’, com o fogo roendo a base pouco a pouco. Eu semicerrava os olhos, acompanhando os progressos do fogo que, então, queimava lentamente, dando-me ao trabalho de só abri-los de todo quando uma árvore perdia o seu ponto de apoio. Então imensas nuvens de cinza se elevavam, o barulho da queda se repetia ao longe, gritos agudos respondiam a ele, gatos-do-mato e macacos que fugiam dos abrigos.

O homem selvagem já tinha cedido lugar à civilização; agora era a vez dos animais. Talvez um dia outros invasores viessem tomar, por sua vez, o lugar dos desbravadores que hoje ocupavam o pequeno espaço em que eu estava. Vendo cair de todos os lados essas árvores queimadas, meus pensamentos seguiam um fio bem diferente do que se passava diante dos meus olhos.

Eu fora muitas vezes testemunha de discussões políticas de que nunca entendi nada. Diziam uns que um dia o Brasil seria vítima dos flibusteiros americanos; outros, que o Norte se separaria do Sul e se tornaria república e, mais tarde, provavelmente, o Sul também. Dizia-se, sobretudo, que a impossibilidade de reabastecer de negros o país tornaria essas coisas inevitáveis, principalmente se não ajudassem ainda mais os colonos. Faltavam braços; que fazer de uma terra que não produzisse? Eu ouvira dizer muitas outras coisas: talvez todos tivessem razão. Desde que passei a morar na mata, com a experiência adquirida pude fazer também política à minha moda; o que se referia, dessa vez, a reflexões sobre os invasores.

O Brasil foi conquistado pelos portugueses; os holandeses dominaram aqui por algum tempo, depois os portugueses substituíram-nos de novo: da aliança desses últimos com os indígenas se originou a raça brasileira. Faz muito tempo que as tribos selvagens foram desterradas para o interior, e dizem que dia virá em que outros povos substituirão os brasileiros. Eu achava que, se isso acontecesse, inimigos inevitáveis fariam fugir vencedores e vencidos e se apoderariam desse belo e magnífico país. Legiões incontáveis vêm há muito tempo cavando minas subterrâneas; exércitos mais numerosos que as areias do mar se espalham por toda parte sem que se possa dominá-los; expulsos de um lado, voltam de outro, mais encarniçados, mais difíceis de vencer. Eis os verdadeiros inimigos do Brasil; que já obrigaram tribos inteiras a abandonar os lares e o solo que as viu nascer: são as formigas! E falo sério: vi móveis maciços, enormes portas de madeira dura como ferro caírem desfeitas em pó; vi plantações inteiras devastadas numa só noite. As formigas se dividem em duas alas, uma que sobe nas árvores e corta as folhas, outra que as carrega. Constróem ninhos que causam horror de tão imensos, dos quais nenhuma descrição pode dar idéia. Uma vez, na casa do meu hospedeiro, fizeram-se grandes preparativos para atacar um montículo, sede de uma tribo vizinha tão numerosa que à distância de um quarto de légua se encontravam passagens subterrâneas que lá desembocavam. Ao cair da noite, exércitos saíam de cada passagem e voltavam carregados de saque; para essa expedição prepararam-se papéis e materiais combustíveis misturados com azeite e, a um sinal, vários índios, armados com varas compridas e fortes, abriram uma cratera no alto do montículo, deixando ver no fundo os ovos, que formavam um volume tão grande pelo menos quanto um elefante; parte da noite se empregou em queimar os ovos. As formigas escapavam por incontáveis saídas que tinham preparado. Eu sentia arrepios ouvindo o estalido dos ovos ao queimar!… Um mês depois, o ninho estava reconstruído.

Não se pode dar dez passos na mata sem encontrar procissões de folhas verdes; tomei-as, primeiramente, por insetos; essas folhas, geralmente muito grandes, parecem andar sozinhas, e encontram-se a toda hora pequenos bandos de formigas de correição barrando o caminho. Se uma ala atravessa uma trilha, vêem-se as formigas seguindo uma atrás da outra horas inteiras, sem interrupção. Se se quer pegar uma orquídea, não se deve tocá-la antes de sondar o terreno. Aprendi isso por conta própria: um ninho é quase sempre tapado por essas flores; vêem-se por toda parte, seja no chão, seja nas árvores, objetos duros, negros, grossos, com altura de três, quatro e seis pés; faça-se aí um furo, e legiões armadas de mandíbulas perigosas vão sair. Não se podem calcular todos os processos de que tive de me valer para proteger minhas coleções, minhas refeições, a água que eu bebia; as formigas penetram em todo canto; tive, mais tarde, uma prova bem triste do dano que esses bichos detestáveis podem fazer. Uma vez, querendo pegar um ninho, vi-me coberto dos pés à cabeça. Mas chega desse assunto por ora; logo terei oportunidade de voltar a ele.

Tive um dia a idéia de visitar o interior do sertão,[ 28 ] do lado do rio Doce e dos botocudos. Sabia que não faltavam dificuldades, e por isso tomei minhas precauções. Andamos dois dias, sempre através da mata, mas por caminhos já um pouco abertos. Era preciso primeiro encontrar os índios que deviam acompanhar-nos. Se, de Vitória a Santa Cruz, tive de entrar com freqüência dentro d’água, dessa vez era na lama; várias vezes nossos cavalos quase ficaram por lá, com lama até a barriga… Quanto mais avançávamos, maiores me pareciam as árvores e a vegetação em geral; passávamos por certas clareiras onde cada árvore estava coberta de flores. Eu apeava várias vezes do cavalo para atirar em algumas aves. Deitamo-nos numa barraca parecida com as dos cantoneiros das grandes estradas e, apesar dos inconvenientes costumeiros, dormi tranqüilamente ao som de uma cascata. Finalmente, na segunda noite, chegamos à cabana de alguns índios que procuravam jacarandá; essa madeira, que transformavam em pranchões, era puxada por bois até a margem de um pequeno rio. À volta da cabana tinham plantado capim para os bois; esses animais são tão necessários e esse alimento tão ruim que meu anfitrião preferia ficar sem leite a ter uma vaca alimentada dessa maneira.

Cada um de nós cortava, talhava...
Cada um de nós cortava, talhava…

Andando às vezes a pé pela estrada, confiava meu cavalo a um índio; uma vez ele saiu na frente e não viu por que trazê-lo de volta; como os caminhos eram péssimos, cheguei coberto de lama dos pés à cabeça e, além disso, muito cansado, o que não me impediu de trabalhar nas diversas aves abatidas no caminho. Deitei-me em cima de algumas tábuas; os índios acrescentaram ao calor habitual o de uma fogueira, deitando-se à volta dela; eu sufocava e tive terríveis pesadelos. Ao romper do dia, partimos, dessa vez para explorar matas bem mais impraticáveis que as que ficavam perto da minha habitação usual. Cada um de nós, armado de uma machadinha, cortava e talhava à direita e à esquerda. As aranhas, em grande número, perturbadas pelo nosso trabalho, se agarravam a nós; eu às vezes as tinha às dúzias, ora no corpo, ora no rosto.

Depois de caminhar assim durante muito tempo, subindo ligeiramente, chegamos a encostas tão íngremes que foi impossível escalar sem o auxilio das árvores e dos cipós.

Enquanto fazíamos essas subidas e descidas, uma matilha de cães, que nos tinha seguido, caçava como amadores; houve um momento em que fizeram tanto barulho que achamos que tinham encontrado quem os enfrentasse. Com efeito, era um quati que, antes de ser morto, abriu a barriga de dois dos atacantes.

Como o tempo era precioso e longo o caminho a percorrer durante o dia, os índios ficaram muito contrariados por não poderem derrubar uma árvore na qual havia abelhas e mel. Elas tinham feito na árvore, para entrar, um pequeno funil como o pavilhão de uma trombeta. Quanto mais andávamos menos podíamos avançar. Os braços se cansavam de tanto cortar; estávamos no meio de uma floresta de bambus tão cerrada que, depois de aberta uma passagem, arranhávamos todo o corpo e sobretudo os pés, pisando os caules incontáveis que se eriçavam no solo, juncado, além disso, de grandes folhas armadas de pontas agudas.

Chegamos assim à margem de um rio sem nome; ele corria bem abaixo de nós. Para atingi-lo, tivemos de nos pendurar nos galhos das arvores, com o risco de quebrarmos a cabeça se nos falhassem os pontos de apoio. Eu já estava conformado com as contusões; os meus pés estavam quase sarados; dei o pulo como os outros. Chegamos cansados lá em baixo, sem poder dar um passo a mais, e nos sentamos ao sol, num monte de areia, para descansar e almoçar.

O croqui incômodo.
O croqui incômodo.

Ficou decidido nessa parada que, se não pudéssemos regressar à mata, tentaríamos subir o rio. A princípio, a água só me chegava até a cintura; mas daí a algum tempo fui forçado a tirar o resto da roupa, fazendo um pacote que coloquei por cima do fuzil, preso de través aos meus ombros. Não era muito cômodo viajar assim, tanto mais que fui forçado a juntar ao pacote os apetrechos de caça que bem que gostaria de não ter trazido. Aliás, não se podia molhar nada, o que era bem difícil; eu seguia de longe os companheiros, e às vezes, com água até o pescoço, levantando os braços, fazia rapidamente um croqui, lamentando não ter atrás de mim um colega que pudesse, por sua vez, fazer outro de mim; minha pose, com os braços para cima, as roupas e o fuzil sobre a nuca e o resto do corpo submerso, devia ser bastante pitoresca . Não me detinha diante das coisas parecidas com as que já conhecia; mas, quando passávamos à sombra de uma floresta de bambus que formavam acima de nós imensas arcadas perfeitamente regulares; quando no alto dessa abóbada de verdura eu via pencas de orquídeas balançando ao sopro do vento como os lustres de uma catedral, suspensas no ar por um cipó tão frágil que escapava aos olhares por sua finura, então, contra a vontade, eu me detinha; mas indicava somente a proporção relativa de cada margem, porque com os braços erguidos acima d’água o cansaço vinha logo e me obrigava a interromper o trabalho recém-começado.

Depois de algumas horas de passeio aquático, encontramos obstáculos: troncos de árvores caídas, pedras imensas arrancadas à montanha. Foi preciso voltar à, mata, e, como as águas, na época das cheias, encharcam as margens por muito tempo, quando queríamos subir em terra que nos parecia firme, afundávamos até metade da coxa, ficando muito felizes quando encontrávamos alguma dessas trilhas estreitas que as antas fazem para ir beber no rio. Éramos obrigados, até voltar à água, a andar nessas matas impraticáveis sem poder fazer uso de nossos machados; e, como minha roupa era das mais simples, meu corpo se cobria de arranhões; por isso, uma vez contornado o obstáculo que nos tirara do rio, precipitávamo-nos, como um bando de patos, de volta à água, onde podíamos andar enquanto ela não nos passasse do queixo.

A surucucu.
A surucucu.

O dia passamos assim, subindo a corrente com entreatos de marcha na mata, com risco de afundarmos no lodo ou nos arranharmos depois. Numa das primeiras caminhadas, o índio que ia na minha frente estendeu a mão fazendo-me parar, que é o que eu ia fazer por mim mesmo, porque um imenso tronco de árvore bloqueava a passagem. Esse homem só tinha o fuzil para proteger da água; não o tinha largado, limitando-se a levantá-lo de quando em quando, para que não se molhasse; apontou então e atirou à queima-roupa em alguma coisa embaixo do tronco de árvore que eu me preparava para transpor. O que saiu de lá me fez recuar precipitadamente. Caí para trás no meio de um monte de espinhos. A dor me pôs de pé rapidamente, tanto mais que eu estava pela primeira vez em presença dessa cobra tão perigosa, a surucucu. Ela estava mortalmente ferida. O monstro parecia ter doze pés de comprimento; partia com a cauda tudo que estivesse ao seu alcance; a cabeça, da grossura de um focinho de porco, se erguia, e ela fazia esforços para dar o bote, mas em vão; a coluna vertebral estava quebrada. Lembro-me como se fosse ontem da impressão que produziu em mim essa bocarra aberta, exibindo dois dentes com veneno, cujo mais leve golpe nos teria matado instantaneamente. Ela se debateu por meia hora. Os índios queriam acabar com ela, mas minha decisão estava tomada: queria levá-la sem estragos. Vi-a lentamente enfraquecer-se; quando já não se movia mais, cortei um cipó forte, porque nem sonhava em pedir ajuda aos índios, e aproximei-me com cuidado; toquei-a na cabeça com um galho e, certo de que estava morta, passei-lhe o cipó pelo pescoço, fazendo um nó. Os índios olhavam em silêncio. Arrastei assim o monstro durante muito tempo, o que não era nada fácil; aliás, além dos diversos objetos amarrados nos meus ombros, o peso dela era grande. No entanto, o índio que a matara, que, diga-se entre parênteses, tinha sido meu solitário e único modelo,

O índio Almeida.
O índio Almeida.

ofereceu-se para ajudar-me, o que muito me alegrou, porque não sei se teria forças para continuar a caminhada. Finalmente, chegamos a um lugar onde, decididamente, era preciso deixar o rio. Meus pés estavam tão inchados que foi difícil calçar as botas; ademais, apesar das precauções tomadas, minha bagagem toda estava molhada, e a pólvora perdida.

A nova travessia na mata prometia ser longa; tive de vestir as roupas, infelizmente incômodas porque molhadas; depois recomeçou a luta com os cipós e os espinhos. Como sempre, os índios, com seu instinto de animal selvagem, nos guiavam, abrindo caminho, apesar da noite; muitas vezes nos atrasávamos, detidos por obstáculos de todo lado. Ouvíamos fugir seres invisíveis; os cães se mantinham perto de nós; por toda parte viam-se coisas assustadoras; entre elas, clarões semelhantes ao fogo-fátuo que alucina os viajantes. Tive curiosidade em saber o que produzia aquilo. Pondo a mão em velhos tocos apodrecidos, peguei algumas partículas brilhantes como grandes vermes luminosos. Mais tarde, quando quis rever o efeito delas, o fósforo tinha desaparecido.

No entanto, continuava a arrastar a cobra, ora sozinho ora com o índio, mas, quando encontramos uma abertura na mata e os guias reconheceram que estávamos a pouca distância de uma cabana, pediram-me para deixar ali a minha presa para não atrair outros animais da mesma espécie que, habitualmente, seguem o rastro de sangue. Concordei com o pedido; mas, no dia seguinte, ao nascer do sol, armado com um escalpelo e com meu fiel facão, fui dedicar-me com o maior prazer à operação que planejara. Amarrei a surucucu a um galho alto, depois de lhe cortar a cabeça, que logo coloquei num grande frasco cheio de álcool etílico.

Assim que os índios compreenderam o que eu ia fazer, fugiram para a mata e, durante todo o tempo que levei a esfolar e a revirar o couro da cobra, o que demorou muito, podia ver, por trás de alguns troncos de árvores, muitos olhos assustados. Terminada a operação, todo mundo voltou para a cabana e, apesar da convicção com que afirmei que não tinha achado nenhum ferrão na cauda do réptil, ninguém ficou convencido.

O índio Almeida morto e a velha Rosa, sua mãe.
O índio Almeida morto e a velha Rosa, sua mãe.

Depois dessa operação, percebi com tristeza que tinha perdido os óculos. Eu cometera a imprudência de não trazer outros, mas apenas lentes, e no regresso cansei de tanto tentar, em vão, ajustá-las. Tinha feito uma cadeira de viagem para substituir a que o fogo queimara; mas meus recursos de ótico estavam no fim quando me trouxeram de volta os óculos que tanta falta faziam. Alguns dias depois dessa excursão, a cabana inóspita que me abrigava recebeu novos hóspedes. Trouxeram ali para dentro, estendido numa rede, um índio gravemente doente, em conseqüência dessa caminhada dentro d’água, e um outro quase morto; era o pobre Almeida, que tinha matado a cobra e me ajudado a arrastá-la. Dois dias depois, ele morreu. Soube, ao levantar-me, que já tinham mandado avisar os parentes, que logo viriam levar o corpo. Como não pudera pintar índios vivos, resolvi aproveitar a triste circunstância que me permitia pintar um morto; fui imediatamente ao pequeno aposento em que o tinham estendido sobre duas pranchas. Seu leito comum era uma velha esteira, lá estava ele, deitado, com as mãos apertadas uma contra a outra. Tinham-no envolvido numa velha blusa azul; as pernas e coxas estavam nuas. Bem ao lado ficava a cozinha. Seus companheiros, que eu via através das fendas no barro com que se revestiam as cabanas, riam e conversavam entre si. Um fogo alto se acendera; os índios cozinhavam peixes. Perto do defunto permanecia sua mãe, a velha Rosa; ela resmungava baixinho o canto de morte, espantando as moscas do rosto do filho, abrindo-lhe os olhos de vez em quando, e também de vez em quando interrompendo o canto monótono e lento para dar uma mordida num peixe que ia pegar na cozinha O índio Almeida morto e a velha Rosa, sua mãe.. Eu tinha dito, ao começar a fazer esse quadro, que me afastaria tão logo os parentes chegassem, e, no entanto, fiquei surpreso de ver que a mãe não somente nada reclamara quando me pusera a pintar o morto, mas também me conseguira diversos objetos que eu lhe pedira: logo, aquela suposição que vinha atrapalhando todos os meus projetos de pintura não era verdadeira. Mas eu tinha prometido e não perdi um segundo. Meu trabalho chegava ao fim quando ouvi alguém dizer: “Chegaram os índios.” Eu ia com grande pena interromper o trabalho, quando meu anfitrião, correndo para onde me encontrava, disse num tom mais do que grosseiro: “Vamos, vamos logo; acabe de uma vez; apresse-se.” A minha resposta de que, como a mãe nada tinha a objetar quanto ao meu trabalho, eu não via por que os parentes distantes seriam mais rígidos, ele saiu e o ouvi gritar, andando de um lado para outro: “Que ele termine o quadro uma outra vez; será que está achando que vou me indispor com os índios por causa dele?” Fico irritado quando me perturbam no meu trabalho, e não foi preciso mais do que isso para transbordar o copo.

Minha indignação, há muito tempo contida, veio à tona e, pegando apressadamente tudo o que tinha levado para essa câmara mortuária, passei em silêncio por esse homem que com tanta freqüência vinha me estorvando, jurando a mim mesmo morrer na mata de preferência a viver um dia mais sob o seu teto. Entrei no meu quarto, preparei as malas em silêncio; pus a chave no bolso e me afastei para não mais voltar. “Sim! dizia eu, ainda que venha a morrer de fome, de sede, de cansaço, prefiro qualquer coisa à ignóbil hospitalidade de que estou fugindo.” Na véspera, eu tinha colhido, ao caçar, uma vintena de goiabas; fui sentar-me perto do rio e, depois de fazer uma refeição bem frugal, pus-me a caminho; vaguei por muito tempo entre os matagais. A noite se avizinhava; já ouvia gritos bem conhecidos; estava morto de cansaço. A emoção que me sustentara durante algum tempo cedeu lugar à nossa pobre natureza humana. Se não saísse da floresta antes da noite, teria de dormir no chão, o que não era nada divertido nem tranqüilizador. Por felicidade, dei com uma grande clareira, onde as árvores estavam cortadas; já se tinha queimado parte delas, entre as quais começava a crescer uma plantação de mandioca.

Havia ali uma cabana inacabada, devassada como uma gaiola, mas não vi nem ouvi ninguém. Ao entrar, espantei vários animais que se perderam nas trevas, porque a noite caíra subitamente… Finalmente, eu tinha um abrigo. Fui deitar-me no único canto coberto, e aí, apesar da fome que me apertava, dormi perfeitamente até de manhã, quando fui despertado por um grande morcego que, roçando-me o rosto com as asas, me fez levantar-me precipitadamente para tentar pegá-lo, pois faltava em minhas coleções um exemplar dessa espécie. Por um instante esqueci minha situação deplorável, só voltando a ter consciência do meu isolamento após o insucesso da caçada. Sabia que havia algumas cabanas espalhadas desse lado, mas eu nunca passara por ali, o que me preocupava, fazendo-me lamentar não ter tomado um caminho que conhecesse um pouco melhor; se me desviara tanto, porém, fora com a intenção de não me encontrar no futuro com o indivíduo que eu estava abandonando.

Eis-me a caminho, à procura de uma habitação; tive a sorte de achar, bem pertinho do lugar em que dormia, árvores carregadas de goiabas; fiz uma lauta refeição, enchendo os bolsos para o caso de não encontrar nada melhor mais tarde. De repente, latidos se fizeram ouvir; encaminhei meus passos na direção deles, e logo me achei diante de uma cabana de onde saía fumaça. Fui cercado por meia dúzia de cães rabugentos, mas tão poltrões que só tive de me virar para fazê-los fugir ganindo. Não havendo outro obstáculo, entrei na cabana, mas não havia ninguém; no entanto, os donos da casa não deviam estar longe, porque sob a cinza quente se assavam lentamente essas grandes bananas que quase nunca se comem cruas. Se tivesse encontrado semelhante manjar na véspera, quando estava com tanta fome, provavelmente teria pegado sem pedir licença, mas hoje eu podia esperar. Permaneci ali apenas durante uma meia hora. Pelo barulho que os cães fizeram de novo, compreendi que ia ter companhia. De fato, dois homens armados com fuzis entraram escoltando três mulheres, uma delas muito velha, que era, sem dúvida, a que preparava o banquete que assava sob a cinza. Essas pessoas falavam português. Dei-lhes bom dia da melhor maneira possível e, como ouvira dizer que um velho europeu morava por aquelas bandas, perguntei se o conheciam. Tive bastante dificuldade em me fazer entender; se por culpa minha ou deles, ignoro. Os homens se consultavam entre si, enquanto as três mulheres, sentindo-se seguras, atiçavam o fogo e reviravam as bananas, colocando duas das mais bonitas numa folha de mandioca; uma das mulheres veio oferecê-las a mim, ao mesmo tempo que os homens largaram os fuzis. Parece que os cães esperavam essa prova de confiança da parte dos donos para cessarem as hostilidades; tinham rosnado o tempo todo desde a minha chegada; entraram então um atrás do outro, com o rabo entre as pernas. No entanto, eu esperava minha resposta, que os índios não tinham pressa em dar. Finalmente, um deles me deu a entender que não compreendera bem minha pergunta. Então achei que devia acrescentar ao meu português um tanto embaralhado uma pantomima engenhosa e animada para indicar o branco que eu procurava; eu me expressava modestamente, levava a ponta do dedo em direção ao rosto, e dizia numa linguagem algo rudimentar: “Onde mora aquele que é branco como eu?…” Esquecia, gabando-me assim, que estava tão preto quanto meus ouvintes.

O pequeno Manoel, meu cozinheiro.
O pequeno Manoel, meu cozinheiro.

Finalmente, parece que ou meus gestos, apropriados ao assunto, ou as palavras do meu fraco repertório foram entendidos, porque um dos homens pegou de novo o fuzil e me fez sinal para acompanhá-lo. Depois de uma hora de caminhada, no meio de um terreno que parecia ter sido cultivado, mas fora abandonado, pelo que soube mais tarde, por causa das formigas, meu guia bateu à porta de um barraco de onde saiu um homem que senti vontade de beijar, pois me perguntou em francês o que eu queria. Conversamos muito tempo. Falei-lhe de minha decisão de viver na mata, se encontrasse onde morar. Ele me desencorajou, dizendo que era impossível. Finalmente, convenci-o a vir comigo a um lugar onde havia duas cabanas apenas. Lá, pelo menos, eu estaria sozinho com os índios, como desejava. Quando chegamos, estavam acrescentando um pequeno cômodo a uma das cabanas. Não tinha janela, consistindo, segundo o uso, de alguns leves troncos de árvores, de uma porta, de um teto recoberto de folhas de palmeira. As paredes eram feitas de uma quantidade de pequenos galhos colocados horizontalmente e amarrados por cipós a troncos perpendiculares. Entre esses galhos coloca-se, com a mão, barro úmido que ao secar forma uma espécie de reboco, mas que ao menor movimento cai em pedaços. Era do chão mesmo desse pequeno cômodo que se tinha tirado o barro ensopado, tanto que, entrando, afundei até o calcanhar. Quando disseram ao proprietário, que morava na outra cabana, que eu queria morar ali, ele respondeu que o que eu queria era morrer. “Ninguém, disse-me ele, pode ficar aqui, de noite, sobretudo, sem correr grande perigo; só daqui a um mês.” Mas tudo me parecia preferível ao que eu estava deixando para trás. E, como a questão só a mim dizia respeito, esse buraco úmido me foi cedido sem pagamento; ademais, graças ao meu intérprete, mandei buscar um rapazinho chamado Manoel. Ele aceitou me servir de criado, cumprir as funções de cozinheiro, e, sobretudo, carregar uma parte do material fotográfico quando eu fosse à mata. Deram-me três homens e duas canoas para buscar minhas malas, pois, sem perceber, eu tinha voltado, nesses dois dias, às vizinhanças do rio do qual me acreditava bem distante. Essa circunstância simplificava bastante minha mudança, livrando-me de uma grande preocupação; porque, enquanto percorria a mata, eu ficava me perguntando como se poderiam transportar coisas tão numerosas tendo-se de enfrentar dificuldades a cada passo do caminho. Mas enfim eu tinha a perspectiva de realizar os projetos de estudo tanto tempo acalentados em vão. Agora, no espaço de uma hora, tinha achado um teto e um criado, e também os homens e as canoas desejados! Ia viver no meio de inúmeros modelos. estava certo de tirar-lhes um pouco da superstição com a ajuda da cachaça, de que me propunha fazer amplo estoque. Enquanto esperava, o homem me deu um banco para deitar e algumas bananas para ajudar a digerir um pedaço de toucinho particularmente gorduroso.

Foi preciso, dessa vez, contentar-me com farinha seca, não me agradou muito, porque na casa do meu primeiro anfitrião eu mandava fazer com ela pequenos bolos misturados com banha e cozidos nas cinzas quentes. Mas não era o momento de me fazer de difícil.

As canoas partiram bem de madrugada; no dia seguinte, voltaram com minhas coisas. Então fiquei sabendo que tinham me procurado muito no dia do meu desaparecimento; essa fuga deixava mal o meu hospedeiro, que possuía inimigos por todo o canto e fazia de mim um escudo contra eles, espalhando que eu era um personagem importante, íntimo da Corte e difícil de tratar. Tirava proveito assim dessa mentira barata. Que pensariam agora os outros, se me vissem em outro local, mal alojado, mal nutrido, sem outra proteção além do meu fuzil?

Finalmente, eu estava livre; tinha dinheiro, graças ao bom e previdente Sr. Taunay; enviei dois índios numa canoa a Santa Cruz para me comprar provisões, para começar feijão, carne-seca, uma terrina, fósforos, vinagre, sal e toucinho. Enquanto esperava a volta deles, arrumei com Manoel o interior da cabana. Minha toca se compunha de dois compartimentos; no mais escuro, depois de nivelar a terra úmida, coloquei meus frascos num pequeno espaço reservado e rodeado de pedras. E como, para preparar meus produtos, fosse obrigado a ficar de joelhos, fiz um buraco no chão para maior comodidade. Não tendo pranchas como na casa do Sr. X…. só contava, para guardar outros objetos, com pequenos troncos de palmito que cortei e fixei em cima das pedras, a alguns pés do chão. Felizmente, tendo pregos e algumas ferramentas, pude estender cipós e pendurar as roupas. Comprei barato dos índios alguns tachos, feitos de troncos cavados como as canoas. Como a experiência me ensinou que era preciso antes de tudo me precaver das formigas, enchi com água o maior dos tachos, coloquei um vaso no meio, uma tábua em cima e pus assim em segurança minhas. provisões de comer. Pendurei, nas vigas que sustentavam o teto, cordéis besuntados com sabão arsenical e, na extremidade de cada um, cartuchos de papel para guardar as aves não preparadas. Fixei nas mesmas vigas a minha rede, presente que outrora me deram os bons e excelentes naturalistas Édouard e Jules Verreaux. Fiz igualmente uma mesa, sempre com rodelas de palmito, árvore preciosa cujo caule terminal devia ainda, com freqüência, compor o meu jantar. Eu ainda tinha uma certa quantidade de tela para pintura; quando a mesa ficou pregada, com os pés solidamente enfiados na terra, um pedaço dessa tela serviu de toalha e oleado; devo confessar que fiquei contente com minha obra; a cadeira de viagem, igualmente de minha lavra, completou o conforto da sala de jantar. Mas onde colocar todo o resto da bagagem? Nem pensar em deixar certos objetos no chão; teriam apodrecido em menos de uma semana. Onde achar o que me faltava? Em minhas idas e vindas, descobri um resto de canoa que ninguém mais usava. Ajudado por meu amigo Manoel, levei-a para casa e, por felicidade, era do tamanho exato para mobiliar um dos cantos. Passei a ter então não somente o necessário, mas também artigos de luxo para decorar minha morada. Porque esse pedaço de canoa, economizando o espaço dos pequenos pacotes, se tomou um sofá tão macio, forrado com crina vegetal que abunda no alto das árvores, que até um sibarita o teria aprovado. Não pude, contudo, evitar uma depressão incômoda no centro da canoa, com prejuízo para minhas pernas, que não podiam tocar no chão.

O regresso dos índios fez de minha morada um lugar de delícias; nada faltava. Ficando a maior parte das minhas coisas pendurada do alto das paredes ainda úmidas, introduzi aqui e ali pedaços de madeira para mantê-las o mais possível afastadas da parede; depois, contando com o sol para secar o telhado e terminar assim minhas preocupações, um belo dia despedi-me do velho francês e fui deitar na minha rede, no meio de um luxo desconhecido nas regiões habitadas pelos pobres índios. Durante a primeira noite, uma tempestade tropical, acompanhada de relâmpagos e trovões, me manteve desperto de maneira pouco agradável. Ao construírem o barraco, fizeram montes de terra e de madeira que deixaram atrás dele, para retirá-los mais tarde. Em poucos minutos, abriu-se na parede de barro um rombo que dava para passar um corpo, e me vi literalmente inundado. Para dar passagem à água, precisei abrir uma vala no meio das imundícies e cavar um canal para o escoamento; tornei-me cavouqueiro por motivos de força maior. Esse acontecimento não causou maiores danos aos meus pertences graças, como disse, à precaução de não deixar nada no chão.

Esse exercício um tanto forçado trouxe de volta o sono interrompido e, ao despertar, senti-me feliz. Tudo o que me cercava fora criado por mim; e bastaria um modesto presente para pagar o aluguel. O resto me era indiferente; por isso, ao me levantar, comecei alegremente a preparar todo tipo de material e, sem esperar pelo dia seguinte, fui logo fazer um croqui; enquanto trabalhava, peguei um inseto magnífico vulgarmente chamado de arlequim.

A cabana ficava, como quase todas, numa elevação bem distante do rio. Não tive mais o capricho de tomar banho nele, porque, para chegar lá, era preciso passar pela Iama. Diante de mim, as montanhas, inteiramente arborizadas, se desenhavam no céu. A outra cabana se via ao longe e, segundo o costume, tinham-se derrubado as árvores em volta; nessa cabana os índios vinham aos domingos beber cachaça. Passando assim junto aos meus domínios, foram se familiarizando aos poucos e, vendo-me caçar, começaram a trazer-me alguns espécimes. Eu tinha mandado pegar dinheiro miúdo em Santa Cruz, e em pouco tempo só tinha o trabalho de escolher.

Vitoriano, parente de Almeida.
Vitoriano, parente de Almeida.

Todos os domingos os índios de ambos os sexos se habituaram também a visitar-me. Eu tinha cachaça: eles sentem o cheiro de longe. Aproveitei essas visitas para retomar os quadros que fora obrigado a interromper e, com poucas exceções, não tive as dificuldades que me estorvaram tanto tempo e me levaram à decisão de viver sozinho. Pude conseguir todos os tipos que, outrora, eu desejava em vão. Trabalhando todos os dias, caçando ao nascer do sol, uma ou duas horas antes de pegar os pincéis, vivendo em parte da minha caça, em parte do que me vendiam, ampliando minhas coleções com todo tipo de animal… Que podia desejar de melhor?

Vivi algum tempo sedentariamente, isto é, sem me permitir a distração de sair vadiando dias e semanas a fio. Era preciso recuperar o tempo perdido e, quando achei que podia me ocupar com outra coisa além da pintura, organizei o material de fotografia, depois de descobrir, mais longe, grandes matas ainda respeitadas pelo machado, porque ali o que me cercava eram só os numerosos matagais que brotavam nos roçados abandonados por causa das formigas, como já disse; e eu levava mais ou menos uma hora e meia atravessando esse mato para chegar em plena floresta virgem. Minha máquina era muito grande; na câmara escura eu acomodava a tenda que tinha fabricado; essa carga, pesada demais, cabia a Manoel; para mim, reservava uma outra, menos cansativa. Em minha mochila de paisagista, que eu levava como os soldados, havia uma caixa contendo uma dezena de placas de vidro; a tiracolo, trazia uma bolsa de caça cheia de todo tipo de objetos: vinte estacas para a tenda, meu livro de croquis, chumbo e pólvora em grande quantidade, de que dependia às vezes o meu jantar; farinha numa vasilha, bananas, laranjas, velas, fósforos, rolos de cordão, tesoura, um estojo com álcali e, além disso, uma mala grande com várias garrafas d’água e mais nitrato de prata, ácido pirogálico, hipossulfito de soda, etc. Levava minha faca de caça à cinta e uma antiga carabina de caçadores de Orleães, que o velho francês me tinha emprestado. Ignoro como essa arma foi parar em suas mãos; mas, como meu fuzil tinha estourado nos meus dedos, sem ferir-me, felizmente, essa carabina me caía do céu; só queria que ela fosse menos pesada, porque todo esse acúmulo de peso acabava me cansando bastante. Eu me levantava, de acordo com meu hábito, ao primeiro canto do galo. Preparava todo o necessário para a jornada e me punha em marcha muito tempo antes de Manoel. Primeiro, tinha de subir uma encosta íngreme passando por um roçado, em seguida, entrava na mata, subindo o tempo todo, para finalmente atingir um terreno plano, quase sempre antes do nascer do sol, mas já coberto de suor. Até então eu desprezara certas aves semelhantes aos tordos, chamadas sabiás,[ 29 ] porque não tinham cores brilhantes; mas, como se tratava agora de comer, não era o momento de me fazer de rogado: encontrava-as com freqüência no caminho, assim como bacuraus, aves tanto da aurora quanto do crepúsculo. Só tinha que me abaixar um pouco para colocar lentamente a mala no chão e, deixando deslizar ao longo do braço, já livre, a carabina suspensa do ombro direito, garantia minhas provisões. De tanto andar, finalmente atingia as grandes matas, vendo-me no meio das raízes que ficavam a descoberto por causa das chuvas. Nem podia pensar em descansar e, enquanto esperava a câmara escura e a tenda, capinava um terreno onde pudesse armá-las. Chegando Manoel, fazíamos logo nossos preparativos, que terminávamos depressa se os mosquitos não se intrometessem. Se repito tantas vezes o nome desse díptero, é porque ele sempre desempenha na mata o papel principal. Por mais que procurasse, porém, era quase sempre impossível achar vistas para fotografar, por causa da grande proximidade do modelo. Na tenda eu precisava trabalhar de joelhos; se percebia um belo efeito do sol, corria até a máquina fotográfica, mas, quando tudo estava pronto, o sol já se pusera. Passava uma parte do dia à sombra, não parando nunca, comendo em pé, bebendo água. Muitas vezes vinha desabar sobre nós uma tempestade cuja aproximação coisa alguma anunciava. Tínhamos que embalar tudo às pressas e voltar pelos caminhos atravancados de detritos e transformados em riachos; chegávamos à cabana num estado deplorável. Bebíamos então um copo de cachaça e eu me atirava na rede, depois de trocar a calça, enquanto Manoel tirava a dele e punha para secar. Sem poder sair de casa, eu passava esses dias pintando algum busto de índio ou de índia ou então preparando os produtos da caçada, retirando a carne e conservando a pele. Não sei dizer se os dias de tempestade, em que era surpreendido na mata, chegavam a ser mais penosos que os dias de sol, em que, voltando lá pelas duas ou três horas, atravessando grandes roçados, eu entrava na cabana feito uma esponja, o que não significava porém que, depois de um momento de descanso, se tivesse um modelo à mão, eu o deixasse escapar.

Um botocudo.
Um botocudo.

Um dia, preparando bichos à luz dos frascos de colódio, a chama, levada por uma corrente de ar, entrou em contacto com um litro de éter; não fui ainda dessa vez ferido pela explosão; mas o meu telhado pegou fogo; só tive tempo de saltar em cima de um grande tacho d’água e apagar o incêndio, queimando os dedos e um pouco o cabelo. Com o resto dos meus produtos químicos, refiz a carga habitual. Nesse dia eu estava na tenda, de joelhos, trabalhando, quando ouvi vozes; havia gente falando com Manoel. Qual não foi minha surpresa quando, pondo a cabeça à porta, vi, ao invés de algum caçador com seu fuzil, como acontecia às vezes, uma dúzia de selvagens botocudos, de lábios deformados e orelhas de meio pé de comprimento. Certamente não compreendiam nada nessa tenda em que, em pleno dia, a luz ficava acesa. Foi bem pior quando viram surgir dali uma cabeça raspada e uma barba comprida. Manoel já lhes contara o que eu era; mas a ciência deles não bastava para entenderam o que eu fazia.

Esses botocudos voltavam de Vitória, onde estiveram em delegação junto ao presidente da província. Entraram completamente nus na cidade; logo receberam camisas e calças, bem como fuzis, pólvora e chumbo, ouviram belas palavras e promessas magníficas, que não eram porém para levar a sério, e foram despachados.

Saindo da cidade, como as roupas novas os atrapalhavam um pouco, enrolaram-nas em forma de pacotes, como fiz na viagem aquática de que já falei; os fuzis carregavam a tiracolo, os arcos na mão. Eu tinha alguns pequenos objetos de pouca importância, como uma faca e uma lima de unha compradas em Paris numa dessas barracas que cobrem as avenidas no ano novo. Dei-as de presente ao que parecia o chefe do grupo; logo ficamos bons amigos, porque ele me ofereceu em troca um arco e três flectias. Acrescentei ao presente uma parte do meu almoço, que foi igualmente bem recebida. Por essa boa ação fui recompensado pelo que pude assistir; ele tinha, como os companheiros, numa abertura feita no beiço inferior, um disco de caule de cacto pouco maior que uma moeda de cinco francos; usou-o como se fosse um prato, cortando em cima, com a faca, um pedaço de carne defumada que só tinha que deixar depois escorregar para dentro da boca. Esse método de se servir do beiço à maneira de prato me pareceu muito cômodo. Meus novos conhecidos tinham também grandes pedaços de madeira semelhantes no lóbulo das orelhas. Sem essa precaução, elas penderiam meio pé. Fiquei muito contente com esse encontro, porque não tinha certeza se iria até a aldeia deles, que, no entanto, não ficava muito longe.

Aquele foi o dia das aventuras: mal retomara o trabalho na tenda, quando ouvi Manoel gritar: Seu Biard, um bacorinho![ 30 ] Corro para fora da tenda; pego o fuzil com certa emoção. Um porco-do-mato! Eis comida para muito tempo, supondo que eu não seja destroçado pelo bicho. Lá, senhor, ali, no mato.[ 31 ] Como não é para brincadeira esse animal de natureza muito pouco amistosa, tive alguma prudência no modo de lidar com ele; era o caso de colocar duas balas na minha famosa carabina. Foi o que fiz. Manoel, com cuja coragem eu não podia contar, estava trepado numa árvore, aguardando os acontecimentos. Ele podia, dali, ver melhor do que eu, de dentro da moita cheia de trepadeiras; e quando, com a carabina engatilhada, tentei descobrir o porco, Manoel, o inteligente Manoel, se pôs a gritar: Bacorinho de casa![ 32 ] E um momento depois vi mexer-se no mato uma família de bacorinhos sob a guarda da mãe. A pouca distância ficava uma cabana, o que eu bem sabia. Graças ao meu criado, eu ia fazer uma besteira. Momentos depois, pude observar nele o caráter geral de seus compatriotas, bravas pessoas incultas, é verdade, mas totalmente ingratas, indolentes e estoicamente indiferentes à dor alheia, mesmo entre si.

Há algum tempo que bandos de formigas de correição vinham visitar-me. Quando elas atravessavam o caminho onde ficava o meu estúdio, não podia nem sonhar em continuar o trabalho. Ficávamos ali à espera de que elas passassem. Um dia, estávamos esperando há algum tempo quando dois jovens caçadores índios se aproximaram, sem perceberem o obstáculo. Foi só no meio das formigas, de que num instante ficaram cobertos, que viram onde tinham se metido. Seu companheiro, Manoel, com uma só palavra lhes teria evitado esse dissabor, mas ele não a disse; em compensação, quando estava com medo, berrava como um feiticeiro. Já isso podia ter alguma utilidade; um dia, embaraçado com a bagagem numa penca de cipós, ouvi-o berrar atrás de mim: Seu Biard, uma cobra![ 33 ] e, ao mesmo tempo, ia recuando às pressas, gritando sempre: Seu Biard, uma cobra! Eu estava, de fato, a dois ou três passos de uma grande cobra verde que, erguida sobre a cauda, avançava lentamente em minha direção. Sua cor se confundia com a das folhas e, não fossem os berros de Manoel, eu a teria tocado na passagem. Ela era enorme, e não foi pequeno o trabalho de esfolá-la, algumas horas depois. Os índios a chamam de cobra de Murouba.[ 34 ]

Para compensar sua covardia, Manoel tinha preguiça. Há algum tempo eu queria comer no jantar um guisado de palmito. Mandei-o à mata para trazer alguns talos. Esse legume, é sabido, não é senão o gomo terminal de uma palmeira; ora, achando cansativo ir buscá-lo a quarenta pés de altura, Manoel contentou-se em podar no mato alguns brotos de palmeira; foi preciso uma centena deles para dar um prato. Mandei-o de novo bem depressa buscar mais; mas dessa vez ele não voltou, apesar dos meus gritos e ameaças, cujo eco enchia a mata. Naquele dia meu jantar se resumiu a bananas. Se Manoel caísse nas minhas mãos, eu teria feito uma besteira, porque, depois da surra de vara verde que inevitavelmente levaria, eu me veria na obrigação de cozinhar. No dia seguinte, tendo precedido, como de costume, o sol na mata, vi Manoel carregando a bagagem de sempre e passeando como se nada tivesse acontecido; fingi a mesma coisa, por necessidade.

No entanto, de excursão em excursão, acabei esgotando meus produtos químicos. Era muito trabalho para pouco resultado. Tendo apenas uma dúzia de placas de vidro, depois de fazer ensaios quase sempre ruins, por falta de experiência, sem contar o excesso de calor e de umidade e mil outros fatores, eu desfazia o pouco que tinha produzido para recomeçar sem melhor sucesso. No último dia de minhas excursões fotográficas, Manoel me falou de um lugar cheio de laranjeiras. Larguei logo as bagagens na mata e eis-nos a caminho da aventura, porque ele não sabia muito bem como chegar até lá.

Eis-nos cortando o mato, abrindo uma passagem, e uma hora depois desembocamos numa grande clareira, no meio de um campo de mato alto que se fechava atrás de nós, logo que passávamos. Já disse, que as aves e os insetos são muito mais numerosos em lugares já roçados do que no interior da floresta. Todos os brotos ficam carregados de bagas de que a maior parte das aves do Brasil se alimentam. Porque geralmente elas se nutrem de frutas; achei muito poucas que comessem grãos: é o que torna quase impossível seu transporte para a Europa. No lugar em que estávamos, eu só tinha o trabalho de escolher; via-as de todas as cores. Uma delas me encantou particularmente: era do mais belo azul. Trouxe-a em triunfo até Manoel, que disse: “Aí está uma ave de um lindo verde.” Sacudi os ombros e pedi-lhe que me guiasse até as laranjeiras. O mato nos chegava muitas vezes acima da cabeça; era difícil orientarmo-nos. Finalmente, chegamos diante de uma cabana meio derrubada. Na frente havia uma plantação de laranjeiras e limoeiros, carregados de frutas, mas sem folhas. O efeito era singular. Aqui também as formigas tinham realizado sua obra de destruição e arruinado os pobres plantadores, que se viram forçados a procurar em outra parte uma existência menos disputada. Fiz um croqui de tudo; chupei muitas laranjas e, como não tinha mais os meios de fazer fotografia, planejei dedicar umas oito manhãs, nesse lugar, ao desenvolvimento da minha coleção de aves. Voltamos para casa bastante cansados e, quando desenrolei e pus à mostra os meus tesouros, fiquei surpreso ao ver o azul da minha ave transformado num verde-mar bem escuro. “Manoel tinha razão”, disse de mim para comigo. Nesse momento mesmo ele entrou na cabana e, por sua vez, declarou logo que a ave era azul. Era um efeito da posição das penas do pássaro, em relação à luz do dia; tanto que, vista de um terceiro ângulo, ela parecia roxa. Trouxe para a Europa uma dúzia de amostras dessa ave.

O gato selvagem.
O gato selvagem.

Regressei muitas vezes ao recanto das laranjeiras e, tentando orientar-me, descobri o local mais encantador que um caçador pode desejar: um caminho praticável, passando por baixo de grandes árvores muito copadas, margeado de clareiras a cada lado. As aves, depois de comerem, vinham descansar à sombra, e eu só tinha o trabalho de escolher, à vontade. Passeava sem me fatigar; caçava e, depois, quando me sentia um pouco cansado, ia buscar laranjas e me sentava nos troncos de árvore. Desenhava flores, folhas, sem perder de vista o alto das árvores. Como eu não fazia muito barulho, um dia ouvi atrás de mim alguma coisa caminhando no capim. Voltando-me devagar, vi um belíssimo gato-do-mato, passeando também. Ele saltitava, se pendurava nos cipós e, de vez em quando, soltava fracos miados. Era o primeiro que chegava assim ao meu alcance. Eu sempre trazia nos bolsos da calça balas e chumbo grosso. Coloquei algumas na minha carabina, sempre bem carregada. Quando quis levantar-me, ele, de um salto, subiu numa árvore e, antes que eu pudesse fazer mira, já estava lá no alto. Atirei quase a esmo, e fiquei surpreso ao vê-lo cair enganchando-se de galho em galho; ao tocar o solo, estava morto. Era o bastante por um dia, e voltei para a cabana levando uma caça que me pareceu muito pesada.

Recepção nas florestas virgens.
Recepção nas florestas virgens.

Segundo o hábito que já tinham adquirido os índios, para os quais eu não era mais objeto de temor, vários deles estavam sentados diante de minha cabana à minha espera. Entre eles estavam os parentes do pobre Almeida, aqueles mesmos que, conforme dizia meu ex-anfitrião, eram tão supersticiosos e tinham sido causa da minha partida. Pintei, pois, na presença da assembleia. Eu ouvia repetirem de todo lado: tal e qual. Se eu estivesse disposto a continuar, só teria o trabalho de escolher os modelos; pagava por cabeça uma pataca, cerca de 16 centavos. Depois, vinha a distribuição de cachaça: os homens primeiro, as damas depois. Minha generosidade ia até uma garrafa por vez. Esvaziada a garrafa, iam todos embora sem nem dizer adeus a su Bia.

A bebedora de cachaça.
A bebedora de cachaça.

Eu bem que tinha algumas protegidas, aquelas que ainda não tinham posado; passava para elas alguns copos às escondidas, do grupo. Uma delas, aproveitando-se de uma curta ausência minha, roubou uma garrafa e bebeu-a toda. Ao cabo de um instante, pôs-se a soltar gritos e a rolar pelo chão com contorções espantosas. Entendi, no meio de toda a barulheira, que ela dizia que estava envenenada, porque tinha bebido de minhas drogas. Prudentemente, eu fizera correr o boato de que não se devia tocar nas minhas garrafas, que continham venenos muito violentos. Meus dedos, inteiramente negros de nitrato de prata, mostravam o quanto eram perigosos os líquidos que usava. Mas a garrafa vazia não deixava dúvida a respeito do estado da doente; por isso, como o esposo começasse a misturar aos dela os seus gritos, vi-me forçado a expulsá-los um tanto bruscamente da cabana.

Marido da bebedora de cachaça.

Por toda parte onde estive, experimentei comer de tudo o que se come e usar os objetos que se usam em cada país. Fora testemunha dos resultados extraordinários obtidos com arcos de duas cordas chamados bodoques,[ 35 ] que se carregam não com flechas, mas com pedras, ou bolinhas de terra endurecida. Não há fuzil que tenha maior alcance. Tomei lições, mas devo confessar que minha paciência não foi recompensada pelo sucesso. O que fiz de melhor foi lançar, à distância de dez passos, uma pedra num alvo de vinte pés de superfície.

Entretanto, já era hora de pensar na volta; eu estava quase sem roupa; mas, antes de partir, me propus a pintar um panorama, a fim de ter uma idéia mais completa do conjunto de uma floresta virgem. Uma vez, passei um mês num terraço de Alexandria, no Egito, para copiar tudo o que estivesse ao alcance da vista, como se ocupasse o centro de um grande círculo. De um lado, ficavam o mar, a ponta do Serralho e os numerosos edifícios da enseada; do outro, o forte Napoleão, a coluna chamada de Pompeu, as agulhas de Cleópatra, as ruínas da Biblioteca, e ao longe o deserto de Barea e a ponta do Farol. A umidade do mar prejudicou esse primeiro panorama.

Muito tempo depois, quando o navio La Lilloise, com o capitão Blosseville, se perdeu no gelo, o governo enviou aos mares polares a corveta La Recherche; juntei-me voluntariamente à expedição. Chegamos ao 80o grau de latitude Norte, em Spitzberg. Passei quinze dias na neve; quase perdi os dedos, mas pelo menos fiz o panorama da baía de Madalena, a noroeste da ilha. Alguns anos mais tarde, encomendaram-me um trabalho para decorar uma das salas do Jardim Botânico; eu tinha incluído naquele panorama todos os elementos de interesse dessa natureza habitada somente por ursos brancos, raposas azuis, renas e morsas. Uma parede da sala estava terminada quando fui interrompido nesse trabalho tão interessante para mim pela hospitalidade daquele que administrava os assuntos das belas artes. Para fazer o terceiro panorama, eu tinha de vencer obstáculos bem diferentes: os mosquitos; é preciso dizer de novo o nome deles, porque estão sempre em evidência.

Meio de afastar os mosquitos.
Meio de afastar os mosquitos.

No lugar escolhido, não havia meio de evitá-los, era preciso agüentar ou largar a tarefa. Resignei-me; mas no primeiro dia foi impossível fazer alguma coisa; de regresso, no dia seguinte, com Manoel, acendi uma fogueira que os afastou por um momento; mas voltaram à carga mais furiosos que nunca e, apesar de tudo o que Manoel fazia para espantá-los, caíam-me nos olhos, no nariz, enfim, em toda parte, apesar de um imenso charuto que eu tentava fumar, cujo cheiro e fumaça me embrulhavam o estômago. No dia seguinte, armei um cortinado sobre quatro estacas e, depois de espantar meus inimigos, entrei rapidamente por baixo, como no Rio, no leito do palácio. Era a única solução; mas havia um pequeno inconveniente: o tecido do cortinado, sendo verde, tornava verde também tudo o que eu pintava. No entanto, sentado embaixo dele, ao abrigo das picadas, via e ouvia com certo orgulho milhares de maringuins[ 36 ] baterem contra minha frágil fortaleza e assediá-la em vão. Bem maiores que os mosquitos comuns, eles são mais perigosos, porque suas picadas deixam na pele um elemento venenoso.

O cortinado.
O cortinado.

Eu trabalhava com a coragem que a certeza da segurança produz, quando senti uma picada na testa. A caçada foi demorada, mas finalmente esmaguei o inseto entre as duas mãos, não podendo esmagá-lo contra a parede, e retomei a paleta; outra picada, outra caçada; ao me agitar, porém, abri uma brecha em minha fortaleza; o inimigo entrou em massa. Era demais; derrubei tudo, caixa, croqui, cortinado; tentei arrancar os cabelos, mas eram curtos demais. Se Manoel estivesse ali, eu o teria espancado. Rasguei o cortinado e quebrei-lhe os suportes. De volta à casa, vendo que, afinal, a raiva não leva a nada, tentei outros processos. Pensei numa máscara de esgrima, e quis mandar fazer uma com arame; não deu certo, e finalmente trabalhei na solução que me pareceu a melhor: por cima do meu chapelão de plantador, instalei um pedaço do cortinado, mais ou menos como um véu de noiva; ele me caía até os ombros, protegidos sob o casaco por um caderno de papel; o pescoço ficava protegido na frente e atrás. No lugar dos olhos fiz dois buracos, cercados com uma fita de arame para colocar os óculos; acrescentei a esse aparato duas velhas saias que desciam até bem abaixo dos pés e que eu podia dobrar.

Desespero.
Desespero.
Roupa contra os mosquitos.
Roupa contra os mosquitos.

O trabalho do dia seguinte prometia render; parti satisfeito. De fato, esse último arranjo deu muito certo de início; eu podia dessa vez pintar à vontade e desafiar meus inimigos. Subitamente, meus óculos saltaram no ar; eu acabava de lhes dar um tapa que felizmente não os quebrou. Um maringuim se introduzira entre eles e o meu olho esquerdo!… Dessa vez eu estava vencido; joguei fora as armas defensivas e aceitei o martírio. Infelizmente, não tenho nenhuma chance de ser canonizado, e no entanto suportei bem, durante três semanas, sofrimentos de que desisto de falar mais, certo de que não seria compreendido. Ao fim desse período, mal se distinguiam os meus olhos; mas, assim como na vizinhança do pólo norte e dos ursos brancos, consegui terminar meu panorama. Compunha-se de seis folhas; segundo meu hábito, apliquei-me com grande honestidade ao trabalho, copiando servilmente as plantas, as árvores, as flores, assim como fizera com as geleiras e os rochedos negros e agudos de Spitzberg. Podia considerar essa pintura como minha obra-prima. Meu objetivo principal fora atingido, assim, depois de mais alguns dias de excursões e caçadas na mata, eu ia poder deixar essa região que, apesar dos inconvenientes sem conta, dos perigos a cada passo, faz a pessoa perder a memória do passado e lhe provoca essa febre que o capitão Mayne Reid, em seu romance Os caçadores de escalpos, chama com tanta precisão de febre do sertão. Eu vagava, vivendo como um selvagem, alimentando-me sobretudo da caça, sem deveres a cumprir, sem controle, mas também sem afeto. Contava apenas com a minha força. Essa vida tinha um grande encanto, e pouco a pouco se tornou natural para mim como se assim tivesse sido sempre. Contra a vontade, a ideia do regresso me era dolorosa. Felizmente eu tinha empregado bem o tempo, o que era um consolo.

Eu caçava muito enquanto esperava os meus croquis secarem; passava dias inteiros percorrendo a mata próxima da cabana abandonada. Uma noite, ouvindo um ruído, saltei da rede e senti no pé uma picada forte; apressei-me a acender a vela. Qual não foi minha surpresa ao ver marchar mais um litro de feijões que eu contava comer no jantar. Uma tribo de formigas térmitas, de cabeça grande, tinha invadido a cabana, e eu esmaguei com os pés a retaguarda que levava o resto das provisões. Inútil dizer: se essas térmitas eram grandes, o próprio fato o comprova. Pus o bando em fuga com uma gamela d’água e voltei para a rede, decidido a fazer uma boa caçada no dia seguinte para substituir a refeição perdida. Sabendo por experiência com que persistência as formigas voltam ao local do saque, tive, antes de deitar, a preocupação de jogar à minha porta alguns bagaços de laranja. Assim como previ, mal a noite chegou o bando levou o que minha generosidade, algo premeditada, deixara à sua disposição; a brincadeira me agradou, e no dia seguinte nova oferenda foi aceita, com o mesmo entusiasmo, pelas saqueadoras, para quem uma meia hora bastava para a limpeza toda.

Acaba-se cansando de tudo, até de alimentar formigas; por isso, no quarto dia, fui deitar-me, pensando que elas iriam embora depois de ver que seria indiscrição insistir.

Despertei ao ouvir as formigas roendo as folhas de palmeira do teto; depois o ruído se repetia no chão. Já conheço, pensei, esse modo de agir; as formigas, divididas em dois bandos, de acordo com seu hábito, cortam as folhas do teto, que são levadas embora imediatamente pelo bando que espera no chão. Roubar feijões, bagaços de laranja, era sensato; mas folhas secas era o cúmulo… E ria sozinho da peça que lhes tinha pregado. Ai de mim! o dia amanheceu. O barulho que ouvira acima da cabeça, e que se repetira no chão, era o meu panorama, recortado, quase destruído. Cada folha parecia uma peça desses jogos de quebra-cabeça cujas partes angulosas e denteadas se destinam a encaixar-se uma na outra. A cabeça de Medusa estava à minha frente...[ 37 ] Tantas dificuldades, tantos sofrimentos, para nada! Fiquei mais de uma hora olhando sem ver, sem poder acreditar na realidade da desgraça que me atingia, e não é exagero; naquele momento, era para mim uma verdadeira desgraça. Que tal coisa me tivesse acontecido nos arredores de Paris, não teria sido tão grave: só me teria custado, para reparar o prejuízo, algumas curtas viagens em caminho de ferro, algumas horas bem sentado à sombra, e no dia seguinte estaria tudo resolvido.

Passei uma parte do dia chorando como uma criança, sem vontade, sem saber o que ia fazer. No entanto, como chorar, afinal, não resolvia nada, colei o melhor possível meus pobres fragmentos uns nos outros, para no dia seguinte me entregar de novo ao suplício. Cinco dias depois, as coisas voltaram a ser como eram antes da refeição das formigas. O destino me devia algumas compensações. Recebi, durante esses cinco dias, a visita de vários animais de índole malfazeja. Felizmente o meu fuzil, sempre cuidadosamente carregado, ficava ao alcance da mão. Só tinha que deixar escorregar a paleta e, sem me incomodar, ia ampliando minhas coleções. Uma vez esmaguei com a coronha uma cobra enorme que chegou, deslizando, tão perto de mim que não tive outro jeito de matá-la senão esse. Finalmente, terminei de vez o meu panorama, e Deus sabe as angústias que vivi enquanto esperava que ele secasse. Ao menor ruído eu me punha de pé e, no entanto, tão intenso é o apelo da vocação que, no meio de minhas inquietações, eu já sonhava com o quarto panorama: a pororoca, ou macaréu da Amazônia.

Como disse mais acima, eu só tinha um pensamento: viver na solidão. Assim, ia trocar as grandes matas pelo grande rio sempre com o objetivo único de fazer desenhos interessantes; nos últimos dias, arranjei um companheiro de caçada, um índio, verdadeiro rastreador, alto, magro, de uma destreza prodigiosa. Tendo trocado o arco pelo fuzil, ele matou num só dia cinco porcos-do-mato ao longo de uma dezena de léguas de moitas e cipós, onde eu mal teria andado um quilômetro. No dia seguinte, ele me informou que havia perdido a faca; voltando para procurar, encontrou-a num lugar onde eu certamente não teria visto um boi a dez passos. Contou-me que seu pai era ainda melhor caçador do que ele: se perdia uma flecha, voltava ao ponto de onde a tinha disparado, disparava outra e ia pegar as duas flechas no mesmo lugar.

Finalmente chegou o dia da partida. Eu ia deixar minhas matas. No dia de Páscoa, um ano depois de minha partida de Paris, voltei mais uma vez a esse lugar onde, apesar dos dissabores sem conta de que tanto falei, demasiadamente, talvez, eu fora feliz; fui rever a cabana abandonada, as laranjeiras cheias de frutas e desprovidas de folhas, fui dizer adeus a esse caminho onde, tão bem abrigado do calor, eu passava meus dias a caçar, a desenhar. Fiquei muito tempo sentado no tronco de árvore, meu sofá habitual. Aí, nada de mosquitos. Aí eu adormecera algumas vezes, sonhando com o que constituía minha vida inteira. Nesses sonhos eu só pintava obras-primas. Só tinha o trabalho de escolher entre os mais maravilhosos animais, que se davam o dever e o prazer de vir postar-se na mira do meu fuzil. Minhas refeições assumiam as mais belas proporções. Eu comia, sem temer indigestão, bananas do tamanho de uma cabeça, feijões maiores do que nozes, o resto também. Infelizmente, esses sonhos não se repetirão mais! Vou regressar à cidade; vou ser obrigado a vestir terno, a calçar meias e sapatos, a botar chapéu ridículo na cabeça em vez do meu largo sombrero de plantador. Voltei triste à cabana e, no dia seguinte, entrei na canoa para descer o rio Sanguaçu, de que guardava as mais doces impressões. Desde então vi muitas margens de rios à beira de florestas impenetráveis, experimentando sempre esse mesmo encantamento, cuja lembrança continua ainda tão presente que, qualquer que seja o meu estado de espírito, a sensação que tenho ao pensar nelas é tão profunda quanto naquele momento.

Nesse período de seis meses da minha vida, todos os minutos foram bem empregados. Minha saúde, abalada pela estada no Rio, melhorou. O princípio de doença que trouxera de lá cedeu aos exercícios violentos e às grandes fadigas que voluntariamente me impus. Com isso ganhei força e uma grande indiferença diante de todo tipo de perigo. As cobras, que de início temera mais, que a todos os outros animais, não me preocupavam nem mesmo no meio do mato alto, onde meus pés descalços podiam pisar uma delas a cada passo. Eu tinha, no entanto, muitas razões para temê-las. Vários índios morreram à minha frente, vitimados por picadas de répteis pequeníssimos. Matei dois porcos-do-mato; ouvi muitas vezes urros desconhecidos bem próximos de mim. Nem por isso deixei de prosseguir sem hesitar a obra com que então me ocupava. Enfim, eu estava com nova têmpera, como predissera o general belga, que me tinha feito sonhar com o Brasil.[ 38 ]

Reencontrei, no regresso, as florestas de palmito, os coqueiros debruçados sobre o rio; inclinei-me de novo sob as árvores carregadas de parasitas em flor. Revi os caranguejos assustados fugindo com suas longas patas; as garças brancas levantando vôo com gritos agudos; os templos fantásticos, as formas estranhas dessa vegetação primitiva, desaparecendo pouco a pouco. As árvores do mangue reapareceram com as ondas do mar. Quem nunca viu essas florestas de mangue não pode fazer ideia das milhares de raízes, formando arcos incontáveis, que avançam por larga extensão dentro da água salgada, de tal modo que, olhando-se a sua base, vê-se, até onde a vista pode alcançar, só água, sempre água, e nenhuma margem. Dir-se-ia uma inundação.

Depois de uma viagem sem acidente, cheguei a Santa Cruz, tendo, desta vez, à minha disposição, a chave de uma casinha e o famoso Manoel para me servir. Infelizmente, para ir até Vitória, foi preciso esperar o vento favorável. Porque eu não tinha somente malas para transportar, mas devia também acompanhá-las. Não tendo cavalo para fazer a viagem por terra, tratei com um dono de barco, o bravo português Domingos.[ 39 ] Essa empresa não era livre de perigo; havia umas trinta léguas a fazer por mar.

Ficou combinado que minhas malas seriam levadas logo para bordo; se o tempo mudasse, me avisariam uma hora antes da partida. No caso de partirmos à noite, eu devia enfiar por baixo da porta de um vizinho a chave da casa onde me hospedava. O vento, como na ocasião da minha chegada, por muito tempo ficou desfavorável. Não havia muito a fazer para me distrair; estava farto de tudo desde que voltara da floresta. Aliás, só tinha para pintar coisas já feitas, mesmo em história natural; conhecia os arredores; tinha devolvido a famosa carabina. Mas, como, afinal, a caçada, por menos interessante que pudesse ser num lugar roçado há muito tempo, podia me ajudar a passar algumas horas do dia, pedi emprestado um precário fuzil de dois canos. Logo deixei de gostar dele: era preciso queimar vinte cápsulas para conseguir mal e mal dois tiros. O cano direito, sobretudo, estava defeituoso; tomei, pois, a decisão de considerá-lo inexistente e, deixando-o carregado só pró-forma, me utilizei apenas do cano esquerdo.

Antes de partir para a mata, eu subira muitas vezes uma pequena trilha aberta na montanha; aí fizera minha aprendizagem de caçador. A vegetação, então exuberante, enchia de sombra toda a colina, até o cume, e escondia a trilha, de onde eu atirava à direita e à esquerda, sem muito incômodo. Quando o revi, tinha mudado muito. As chuvas incessantes dos meses de dezembro e janeiro fizeram ali grandes estragos; uma parte da colina deslizara até lá embaixo; dezessete cabanas ou choças foram soterradas. Desse magnífico verde só restavam troncos desfolhados, montes de galhos e de folhas ressequidos, misturados com detritos das choças esmagadas sob a avalanche. Metade da trilha permanecia: o deslizamento se dera apenas na parte de baixo. Aberta na montanha, não apresentando nenhum ponto de apoio, infeliz do imprudente que por ela se aventurasse, pois ao menor passo em falso seria precipitado de uma grande altura no meio dos detritos que, segundo o costume das pessoas do Sul, ninguém pensava em retirar dali.

Vendo descer por aí alguns indivíduos, eu me lembrava dos caminhos da ópera-cômica, Fra Diavolo[ 40 ] e outros bandidos famosos descendo envoltos em longos mantos. Quanto a mim, não tendo, nenhum desejo de quebrar algum membro, preferia fazer uma grande volta pela mata para atingir o cume, evitando também o calor.

Os perus domésticos.
Os perus domésticos.

Numa dessas excursões, cansado da minha inatividade (há quinze dias não tocava num lápis), escolhi um lugar bem coberto. Mal começara o croqui quando, subitamente, fui saudado por gritos que me pareceram de entusiasmo. Olhei; um bando de perus se aproximara lentamente de mim e grugulejava sem dúvida para me animar a trabalhar direito.

Apressei-me em acabar, e fui bem depressa colocar-me a algumas centenas de passos. Acreditava-me em segurança e ao abrigo de algum indiscreto.

Enquanto desenhava, observei revoadas de periquitos descendo sobre certas árvores ao meu alcance. Trocando o lápis pelo fuzil, deslizei sem ser visto para perto dos objetos de minha cobiça… Já estava com o bando na mira, quando uma salva de gritos ainda mais formidável que a anterior espantou os periquitos! Eram de novo os abomináveis perus… Fiquei tão aborrecido que, sem respeito pelo direito de propriedade, atirei neles; felizmente, o tiro mascou.

Tão pequeno, como disse, era o meu interesse pela caçada que nem me dei ao trabalho de recarregar, mas, não podendo usar a arma, persegui-os a pedradas, dispersando assim esse bando que tanto me enervara com sua persistência em me perseguir com sua cantoria, fazendo-me abandonar meus lápis e errar meus periquitos.

Eu estava então num lugar descoberto e, à exceção de algumas árvores, só se viam moitas que se estendiam até a borda de uma floresta que eu ainda não visitara. Eu tinha acrescentado às minhas coleções um herbário constituído apenas de folhas que, por suas formas, me pareciam merecer a honra de serem transportadas para a Europa; e, não tendo nada de melhor a fazer, dirigi-me para aquele lado.

Desde minha permanência forçada em Santa Cruz, adquirira o hábito de passear com as mãos cruzadas atrás das costas, segurando o fuzil como uma bengala. Eu ia assim andando, ou antes, flanando sem destino através da mata, com a cabeça baixa, procurando no chão, sem muito interesse, algumas plantas para o meu herbário, atento apenas às ciladas que os cipós armavam à minha passagem. Não estava com pressa e, além disso, não tinha facão para abrir caminho. Quando ficava preso no emaranhado desses cipós que, de tão finos, parecem incapazes de deter um coelho mas que, no entanto, têm a resistência do ferro, eu ia em frente, puxando com força todos os liames que me atrelavam, como faz um cavalo com uma carroça muito pesada; algumas vezes eu conseguia, mas nem sempre, e, a fim de não alterar a posição das mãos cruzadas atrás das costas, eu preferia retroceder, aceitando retratar-me diante dos cipós e concordando que não era eu o mais forte.

Foi num desses confrontos que, ouvindo um pequeno ruído a alguns passos à minha frente, levantei a cabeça… Os galhos de uma árvore, crescendo para baixo e estendendo-se horizontalmente, tinham ganho um terreno imenso, entrelaçando-se firmemente com árvores vizinhas. Sobre essa árvore, cuja espessa e vasta ramagem me cobria com sua sombra e já roçava a minha cabeça, vi com espanto três gatos-bravos[ 41 ] prontos a saltar em cima de mim. Eu não podia avançar nem recuar, e estava sem o facão; o fuzil estava descarregado no cano esquerdo, e eu não podia contar com o cano direito, que costumava falhar. Aliás, supondo que não falhasse, mesmo assim só continha chumbo bem fino. Além disso, seria preciso fazer um movimento demorado para mudar a direção do fuzil. Essas reflexões ocorreram mais depressa do que as descrevo.

Peguei então o fuzil pelo cano.
Peguei então o fuzil pelo cano.

Na própria base dos galhos estavam o maior e o mais novo dos três animais. O terceiro estava um pouco mais alto, em cima de outro galho. Acostumado a matar beija-flores em pleno voo, eu só tinha uma saída, mirar nos olhos do bicho mais próximo. Meu olhar tinha, sem dúvida, uma expressão bem estranha, porque eles não fizeram, nenhum movimento. Tive tempo de mirar com cuidado e, quando, por uma espécie de milagre, o tiro saiu, ouvi um grande barulho de folhas, mas não pude ver nada: a fumaça não se dissipava sob essa cúpula de verdura. Peguei então o fuzil pelo cano e, segurando-o como um porrete, dei um passo avante, Procurando atravessar a nuvem que me envolvia.

Eu tinha mirado bem, porque dois gatos-bravos estavam feridos. O maior se levantou nas patas traseiras; tinha os olhos crivados de chumbo. Vibrei-lhe uma coronhada que o derrubou e, quando ele se ergueu de novo, repeti a dose. Infelizmente, o fuzil bateu também na árvore, e só me sobrou o cano nas mãos. Eu ia desferir mais um golpe quando o bicho desapareceu no matagal. O pequeno, também ferido nos olhos, estava deitado de costas e miava de fazer pena. Tive trabalho em acabar com ele; no entanto, consegui quebrar-lhe o crânio.

Eu tinha pressa em ir embora; mas era preciso achar os restos do fuzil tomado de empréstimo. Fiquei mais de uma hora à procura, sempre segurando o cano, única arma que me restou para o caso de o gato-bravo voltar à carga. Então, segurando minha vítima pelo rabo, arrastei-a para fora da mata, onde respirei, enfim, aliviado. Chegado à proximidade da trilha escarpada de que já falei, e não querendo perder tempo procurando outra, aventurei-me a descer por ali mesmo, enfrentando seus riscos e perigos.

Devo confessar que fiz muito sucesso. O fuzil quebrado, o resto manchado de sangue, assim como as roupas, a presa arrastada em triunfo, tudo isso causou muito efeito. Entrei na cidade escoltado por mais de cinqüenta índios de ambos os sexos; o assombro chegava ao cúmulo, e a esse assombro se somava uma certa dose de medo: era a primeira vez que se viam gatos-bravos em Santa Cruz. Todo mundo queria tocar com a mão o que eu caçara.

Assim que cheguei a casa, pus-me a esfolar o bicho; dei a carne aos vizinhos; eles fizeram com ela uma excelente refeição. Provei dela, mas a carne me pareceu muito amarga; eu não era ainda índio o bastante para achá-la boa; mais tarde, me pareceu excelente.

Voltei no dia seguinte ao local do combate, escoltado por uma dúzia de pessoas. Demos uma batida geral, mas não achamos o menor traço do animal ferido, e ficamos nisso. Eu sonhara a noite toda com os olhos fixos e ardentes dele; isso me despertara várias vezes. Eu poderia, acompanhado como estava, aprofundar-me na mata à sua procura; mas, além do fato de não ter mais fuzil, acho que não estava muito disposto a encontrá-lo de novo.

No entanto, os dias passavam e o tempo não mudava. Depois de correr pela areia até o calor me fazer desejar um abrigo, fui à cabana de um velho negro forro, que, encarregado de consertar o fuzil, estava demorando a entregá-lo. Esse pobre homem acumulava várias funções; era muito lento em tudo o que fazia, e a única tarefa que o animava era tocar seus dois sinos: porque, além de serralheiro, era ele o sineiro da catedral que conhecemos, sem prejuízo de suas funções de sapateiro remendão. Homem livre, tinha o direito de usar sapatos, e não creio ter nunca visto sapatos tão grandes quanto os que lhe cobriam os pés, de um comprimento desmedido.

À parte todas essas tarefas, o negro criava, por conta própria e de outros, perus e patos. Vendo-os, lembrei-me de que ia embarcar, e achei que, uma vez no mar, se, por infelicidade, o vento fosse contrário, eu teria necessidade de víveres, que não me seriam menos úteis se fosse preciso refugiar-me em alguma enseada. Entre as coisas importantes da minha bagagem estava ainda aquela famosa terrina que me prestara tão bons serviços e podia prestar-me outros mais. Comprei um dos patos do velho negro, pelo qual paguei pouco mais de dez francos. Sua mulher preparou muito bem o pato. Ficou pronto para a partida, que aconteceu naquela noite mesma, já que os ventos tinham mudado de acordo com nossos desejos. A terrina foi levada com cuidado e colocada em lugar seguro. Enfiei a chave da casa por baixo da porta indicada e despedi-me de Santa Cruz.

A tripulação do barco se compunha, além de Domingos, de um negro e dois índios. Partimos por volta das três horas da manhã. Balançávamos prodigiosamente nessa casca de noz; o tempo estava esplêndido. Domingos, no leme, cantava a plenos pulmões cantigas edificantes. Tudo correu às mil maravilhas até a tardinha; mas subitamente o vento abrandou; podíamos prever duas coisas pouco tranqüilizadoras: calmaria ou tempestade. As cantigas continuaram, o que não impedia um movimento de balanço que me atirava de um lado para outro. Apesar desse inconveniente, dormi sono profundo; tinha de compensar o sono interrompido da noite anterior. Isso foi feito de maneira muito agradável: o vento favorável voltou a soprar durante a noite, e ao nascer do dia entramos em Vitória. Revi o homem com o megafone, o forte e, finalmente, a cidade. Lançou-se o ancorote diante da casa do patrão.

Deixando o barco, entrei num grande armazém cheio de objetos os mais variados: pilhas de cerâmica, de pequenos mastros, de rolos de corda, etc.; uma confusão generalizada.

No fundo do armazém, uma escada de madeira levava aos apartamentos reservados da família Domingos. Lá, separados por tabiques, havia vários quartos com paredes nuas e clarabóia. Redes, segundo o costume, estavam penduradas por todo lado.

Fui apresentado à dona da casa, que logo me ofereceu hospitalidade. Aceitei foi outra coisa: pedi para pendurar minha rede no armazém. Quanto ao jantar, o pato ainda estava intacto; isso devia satisfazer-me até a chegada do Mucuri, meu antigo conhecido: devia chegar dentro de dois dias. Eu podia agir à maneira de Lucullus,[ 42 ] sem pensar em economia. Só mandei comprar pão e bananas; sobrava-me um pouco de açúcar; deram-me limões; e nesse local espaçoso fiz uma excelente refeição regada com limonada, bebida a que eu era muito grato, porque me tinha curado daquele princípio de doença no Rio.

Fiz uma espécie de estrado, para mim, com pedaços de madeira, ajudado pelo mais jovem dos índios, tipo risonho e amável.

Esse bom rapazinho, a quem muitas vezes eu disse que iria empalhar como às aves, passava o dia rindo da lembrança dessa ameaça e com a esperança de ouvi-la de novo. Torcia-se de tanto rir quando, pegando-o pelo casaco, eu fazia de conta que lhe abria a barriga com cuidado, para não estragar as penas. Suas duas orelhas serviam, sem dúvida, expressamente para lhe deter a boca, que, sem elas, teria dado a volta à sua cabeça.

Esse rapaz encantador era excelente marinheiro. Ele gostaria de ser meu menino de recados e não me deixar; mas seu patrão, e ele mais ainda, temia que ele fosse apanhado para servir no exército, coisa que acontece com os índios. Por isso ele não saía do barco nem do armazém: tomara-se um cão de guarda. Isso durou todo o tempo de minha estada, prolongada pelo atraso do navio que devia me pegar, que tinha perdido a maré.

A rede.
A rede.

Embora eu tivesse no armazém grande liberdade, havia muitos contratempos: os filhos de Domingos dormiam logo acima de mim; as tábuas do seu quarto eram mal ajuntadas; assim, não era de admirar que ligeiros distúrbios viessem perturbar quem temporariamente dormisse embaixo deles… Apressei-me a pendurar a rede no lugar mais distante: acabava de verificar o quanto fora mal inspirado ao colocá-la diretamente abaixo do leito das crianças.

A galinha.
A galinha.

Fui visitar a família Pénaud e achei melhor recusar a hospitalidade que me ofereceram. Eu conhecia, como se sabe, a hospitalidade dos europeus. Preferi o armazém, apesar dos acontecimentos noturnos. Uma manhã achei no chapéu uma galinha e um ovo fresco que ela acabava de botar.

Pouco a pouco, no entanto, as amabilidades da excelente família Pénaud fundiram o gelo que me fazia recusar tudo: fui lá jantar, caçar e passar a tarde durante os dias de espera do navio.

Matei dois macacos encantadores, da espécie dos calitriquídeos: tinham a cara branca, enfeitada por uma cabeleira negra como azeviche.

Uma vez, de volta a casa, encontrei sentadas em tonéis três das principais autoridades do local: o juiz de Direito,[ 43 ] o chefe do porto[ 44 ] e o subdelegado. Meu amigo José — assim se chamava o pequeno caboclo — mantinha-se respeitosamente no fundo do armazém, depois de dizer que eu não demoraria. Essa visita, embora honrosa, me humilhou um pouco. Ofereceram-me também hospitalidade, que eu recusei, tanto mais que esperava para o dia seguinte a chegada do navio.

Finalmente chegou. O Sr. Pénaud e seus filhos tiveram a gentileza de levar minhas coisas para a embarcação e, depois de acomodá-las adequadamente, iam se despedir, quando me foi pedido o passaporte. Eu o havia entregue à polícia, ao chegar. É de praxe a polícia devolvê-lo ao navio, onde a pessoa o recebe de volta. Tendo havido algum engano, o passaporte não estava a bordo, e já se cogitava de me colocarem em terra com minhas coisas. O Sr. Pénaud saltou no seu barco, correu até a polícia e trouxe, com o meu passaporte, o funcionário negligente, que veio quase atirar-se a meus pés, suplicando-me que não o comprometesse.

No navio, reconheci quase toda a tripulação, exceto o capitão, homem grande e coxo, que escorava o andar com uma enorme bengala. Perguntei-lhe o que era feito dos feridos do 4 de novembro. Um negro passava perto de nós; o capitão deu-lhe de brincadeira algumas bengaladas na cabeça e, segurando-o pela camisa: — Venha cá, Moricaud.

Era o pobre ferido, aquele que o médico não tinha esperança de salvar. Sua pele estava toda marcada de manchas brancas, à semelhança dos albinos de sangue misturado.

Vi com prazer esse pobre diabo, que, para agradecer ao chefe as bengaladas amistosas, mostrou uma dupla fileira de dentes talhados em ponta como os de um animal selvagem. Esse era, sem dúvida, um africano recém-transportado.

Depois de três dias e meio de travessia, entramos na imensa baía do Rio…

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NOTAS

[ 18 ] Em português no original.
[ 19 ] Referência a episódio de capítulo anterior, em que Biard atacou, por engano, um manequim.
[ 20 ] No original, palmatora.
[ 21 ] Em português no original.
[ 22 ] No original: bicho-do-pé.
[ 23 ] Grafado à francesa no original: maroui.
[ 24 ] No original: brooks.
[ 25 ] Biard traduziu assim esse português estropiado: O Senhor Biard na montanha/Deseja matar passarinhos,/O Senhor Biard na montanha/Procura também cobra perigosa.
[ 26 ] Referência a Faustino I, nome com que o ex-escravo Faustine Soulouque governou o Haiti entre 1849 e 1859. (N. do T.)
[ 27 ] Cônsul francês no Rio, citado em capítulo anterior do livro.
[ 28 ] Em português no original.
[ 29 ] Em português no original.
[ 30 ] No original: Su Bia, un bacourino!
[ 31 ] No original: Là signo tali, no matto.
[ 32 ] No original: Bacourino de casas!
[ 33 ] No original: Su Bia, uma cobra!
[ 34 ] Foi impossível identificar essa cobra.
[ 35 ] Biard grafa bodorques.
[ 36 ] No original: maringouins.
[ 37 ] O Autor se teria sentido petrificar: na mitologia, quem olhasse a cabeça da medusa se transformaria em pedra. (N. do T.)
[ 38 ] Referência a um general belga, citado em capítulo anterior, que incentivou Biard a conhecer o Brasil.
[ 39 ] Biard grafa Domingo.
[ 40 ] Fra Diavolo era um salteador que lutou contra os franceses e foi enforcado em Nápoles. (N. do T.)
[ 41 ] Em francês ocelots. Pelo sumário do capítulo e pelo desenho seriam onças (francês onces). (N. do T.)
[ 42 ] Lucius Licinius Lucullus, general romano famoso por sua vida de luxo e de riqueza. (N. de T.)
[ 43 ] Lourenço Caetano Pinto (cf. Levy Rocha, op. cit.).
[ 44 ] Luís da Gama Rosa (cf. Levy Rocha, op. cit.).

[BIARD, Auguste-François. Viagem à província do Espírito Santo. (Tradução de José Augusto Carvalho) Vitória: Cultural-ES; Aracruz Celulose; Fundação Jônice Tristão, s/d. 123p. 
Ilustrações de Édouard Riou com base nos croquis de Auguste-François Biard.]

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© 2000 Estação Capixaba. Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Auguste-François Biard, pintor e viajante francês, nasceu em Lion, França, em 1799, e faleceu em Fontainebleau, no ano de 1882. Esteve no Brasil de 1858 a 1860,  passando também pelo Espírito Santo, e dessa viagem resultou a publicação do livro Deux années au Brésil (Paris: Librairie de L. Hachette e Cia., 1862), no qual o pintor reuniu suas impressões de viagem sobre a terra brasileira. A obra saiu com ilustrações de Riou calcadas em desenhos originais de Biard. Segundo Gustavo Barroso, essa viagem teria sido programada para pintar retratos da família imperial, retratos esses que foram, de fato, produzidos.

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