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A literatura ou a vida

Pedro recebeu o Sedex 12 doze minutos depois que foi postado na agência central dos Correios de Vitória. Pelo endereço do remetente — caixa postal, 517 — soube logo do que se tratava. Chamou a faxineira e disse: “Dona Lenilda, vou para a minha eco-oca, debaixo do cajueiro. Se alguém procurar por mim, diga que saí para comprar cigarro.” E filosofou, com suas botijas: “A Literatura é mais forte do que a Vida.”

Pôs a correspondência debaixo do sovaco, dirigiu-se para o fundo do quintal da casa onde funcionava a delegacia, na Chapot Presvot, 272, sentou-se no chão recostando-se na árvore sexagenária e preparou-se para a leitura. Rasgou a borda do envelope na força dos dentes formados em Ibitirama, quando Ibitirama ainda não era município, sacou o conto que lhe fora enviado, acendeu um cigarro e se pôs a ler

O penúltimo caso de Teodomiro Reis

Afinal, quem é o narrador,

inquiriu o leitor virtual
ao leitor potencial, enquanto
o protagonista sorria, irônico,
do antagonista da história.

Autor Literal: Luiz Guilherme Santos Neves ou
LG, como o chamava João Felício dos Santos.
Autor Participativo: ______________________
(preencher com o nome completo do leitor)

— pois, não somos todos um pouco do autor,inquiriu o narrador.

Em verdade vos digo, eu, LG — o autor, não o narrador (ou será o contrário?) —, que esta é a história (ou fabulação?) do autor às voltas com o narrador que é de fato (ou ficção?) o caso do detetive (caso ou narrativa, ou será narração?), contratado para…

Bem, ponha-se, ponhamos todos — autor literal e participativo, narrador direto e indireto, personagens redondas (não necessariamente nédias) ou planas (não necessariamente chatas), protagonistas e antagonistas, leitores virtuais e potenciais — ponhamos todos, como ia dizendo (mas quem dizia?), então diga-se: ponha-se a necessária ordem nesta história que parece melopéia sem fim, e, no entanto, é finita como um conto (a que se acrescentam pontos?), inspirado em fatos reais, como vereis, veremos e, mesocliticamente, ver-se-á, ficando cada vez mais intrincado descobrir o narrador o que — O que torna absolutamente indispensável seguir o exemplo de Tonho Andreoti que contratou o detetive Teodomiro Reis para descobrir o narrador que, vicariamente (mas não por má fé), se ocultava do leitor, enquanto todos os antes supracitados participantes e coparticipantes que fazem de um romance um condomínio literário, isto é, aqueles que são os virtuais donos do texto…

“Parem com esta confusão,” diz, diz-se LG dentro-fora das páginas que escreve, lê e relê, entrando-saindo cerimoniosamente do texto que já não lhe pertence pois o perdeu para o leitor virtual e para os críticos e intérpretes que dele se assenhoreiam e mui à vontade, como lhes é (ou não lhes é?) de direito, rebuscam-lhe a interioridade e a exterioridade com o desembaraço de carniceiros…

“BASTA!” explode LG.

“Ordem, ordem!” reclamamos todos, leitores momentâneos que ainda não encheram o saco com o que leram até aqui, e autores participativos cujos sacos já estão por aqui porque foram até o ponto onde chegaram, e onde chegaram estão pensando seriamente em pular fora do texto ou do contexto… ou/e de toda essa contextualidade vazia de redemoinho…

“O começo, onde está o começo,” grita, aflito, o narrador, percebendo, no meio de tanto desvario que a sua (dele?!) história (ou será argumento?) foge-lhe pelas mãos e se enfia pelos pés, perdendo a cabeça, e, aos tropeções e ao desatino, vai e não chega a destino porque perdeu o princípio sem o qual não se alcança o termo, e no princípio era o termo pois assim está consagrado no Gênesis, embora com outros termos (ou seria verbo?). E, em sendo verbo, ponha-se este no exato lugar que lhe pertence e faça-se o começo, porque no princípio era ele, o verbo, como sei eu e sabes tu e sabem narradores e leitores de todas as categorias contextualizadas. E o verbo era, ou, verbalizando o começo, era uma vez (diz o narrador entrando no que interessa e pegando o fio do pavio que já estava longo), era uma vez um exportador de café chamado Tonho Andreoti, brasileiro montado na erva do café que exportava do Brasil para alhures e milhures, um belo exemplar de milionário descendente de italianos ou oriundi, como agora se diz, casado em segundas núpcias com Divina Andreoti, socialite conhecida nos meios socialites como a divina Divina, pai (paizinho) de Divina Andreoti Filha, familiar e extrafamiliarmente chamada de Juninha, nascida temporã, por quem — Por quem o paizinho Tonho, de Café Andreoti Importação e Exportação, galgou a escada de madeira rangente que conduzia ao segundo pavimento do velho sobrado da Rua Duque de Caxias, 183, em Vitória, Estado do Espírito Santo, CEP 29.010…

O prédio ostentava na fachada o ano da sua construção, 1920. Nele funcionou o cassino Royal, onde francesas e argentinas desfizeram a vida e a noite em tempos de dinheiro frouxo e tripas forras. A Grande Depressão de 29, estendendo-se de Wall Street até a Duque de Caxias, pôs fim àquele clima fascinante de cabaré e cabarás. O preço do café depreciou-se, as mulheres depreciaram-se e, depreciadas, dispersaram-se em busca de melhores preços. O prédio do antigo cassino entrou em progressivo declínio, passando por mudanças sucessivas porque um santo incêndio, que nunca ocorreu, não teve a piedade de acabar com ele.

Em 1989, era um pardieiro completo e sem honra: no térreo, funcionava um salão tri-sex e, na parte superior, situavam-se escritórios de matizes escusos que mal e porcamente conseguiam se sustentar à custa de negócios inconfessáveis. Numa dessas baiúcas funcionava a baiúca do detetive Teodomiro Reis, conhecido nos meios policiais pelo apelido de Pato Rouco, um tipo que apesar de não ser frívolo nem peralta, e muito menos paspalhão desde fedelho, morto não faria falta.

No corredor estreito e escuro aonde Tonho Andreti chegou, do fundo do qual vinha um ranço fétido de WC coletivo, todas as salas tinham portas altas e de banda dupla, mantidas fechadas. Pedaços de cartolina manuscrita com esferográficas anunciavam fotógrafos, manicures, sex-shops e, vizinha ao WC tribal, uma sala de massagem onde se lia a mensagem explícita: “atende-se a domicílio e em hotéis”.

Visivelmente constrangido com o que via e sobretudo com o que não via mas podia imaginar, Tonho Andreoti parou diante da porta com o letreiro Teodomiro Reis – detetive particular – sigilo absoluto – bata para ser atendido. Bateu e foi atendido.

“Pode entrar,” ordenou uma voz roufenha, à Louis Armstrong.

Tonho entrou e analisou o meio-ambiente. A sala era exígua e dava para a rua, com janela comprida e antiga, que abria em bandas como se fosse uma porta. A sacadinha que se seguia era protegida pelo gradil de ferro batido. Mas, malgrado essa proteção peitoral, dava medo pisar naquela beiçola saliente, devido ao risco de a sacada despencar sobre a via e a vida pública.

Na sala em desordem comprimiam-se o bureau, a mesinha com uma Remington obsoleta e duas cadeiras mambembes para clientes. Sobre o bureau, atrás do qual o detetive Teodomiro Reis sentava-se de costas para a rua, tendo na mão o romance policial O Círculo Vermelho, misturavam-se pilhas de classificados de jornais, um rolo de papel higiênico e o cinzeiro atulhado de pontas de cigarro. Se ali tivesse um telefone preto, de gancho e pedestal, pousado sobre a mesa como um urubu, completaria adequadamente o clima de filme noir ou de Coleção Amarela da sala do detetive.

Andreoti testou a firmeza de uma das cadeiras e acomodou-se, flagrando no forro alguns frisos de madeira despregados que formavam uma abertura pela qual se via o fundo negro do sótão, onde esteios rústicos sustentavam o telhado de duas águas e telhas canaletas.

“Teodomiro Reis?”

“Às suas ordens.”

“Vou direto ao assunto,” disse Andreoti, oferecendo o cartão personalizado com letras gravadas a fio de ouro, “embora tudo isso me pareça uma grande maçada.”

“Adultério?”, arriscou o detetive contrariando a regra de dar linha ao peixe para que o peixe morresse na linha.

“Negativo. Trata-se de minha filha.”

“Ah…”

“Nada de ah. Acontece que Juninha, como nós a chamamos, pretende fazer o vestibular para assistente social na UFES e quero ajudá-la como pai. Para isso, preciso dos seus serviços profissionais.”

“Não entendi,” disse o detetive.

“A questão é que Juninha, apesar de estudiosa, está encontrando certa dificuldade para descobrir… o narrador, isso mesmo, o narrador de um romance chamado As Chamas na Missa que a UFES resolveu incluir no vestibular deste ano…”

“Mas o narrador não é o autor?” interrompeu Teodomiro, intrigado. E apontando para o livro que pusera sobre a mesa, aberto em cavalete com a lombada para cima, a fim de marcar o ponto onde interrompera a leitura, disse: “Eu, por exemplo, estou lendo O Círculo Vermelho, de Edgar Wallace. Seu nome está na capa e pt. saudações”.

“Eu também pensava que fosse simples assim. Mas aprendi com Juninha que uma coisa é o narrador, outra o autor. E o problema dela é precisamente descobrir o narrador do romance As Chamas na Missa, pois pairam dúvidas atrozes e densas incertezas sobre sua identidade.”

“Por que não consultar alguns professores de literatura?” interrogou, bisonhamente, Teodomiro Reis.

“Juninha já consultou. Mas não houve acordo entre eles. As respostas são divergentes e o caso requer uma solução indubitável.”

O detetive avaliou atentamente seu interlocutor. Sentado diante dele estava um homem de negócios, elegante e bem apessoado, recendendo a sabonete Phebo, concretamente preocupado com o problema literário da sua filha. Um homem que roubara tempo dos seus afazeres empresariais para resolver, ou contratar alguém para resolver a tormentosa questão da identificação do narrador de um romance de um reles escritor capixaba. Teodomiro Reis tinha de admirar e respeitar este sujeito e seu nobre coração paterno. Portanto, o mínimo que a situação exigia era que Tonho Andreoti fosse tratado com seriedade.

“Me desculpe a franqueza, senhor Andreotti, mas este não é um caso para detetive. Não lido com personagens de romances. Meu negócio são pessoas vivas, às vezes, muito vivas, como chantagistas, adúlteros, cafetões, vigaristas… Não me ocupo de casos irreais.”

“Pode ser irreal para o senhor,” retrucou Andreoti. “Mas é a dura realidade para Juninha, que precisa conhecer esse narrador de meia tigela para passar no vestibular. Está em jogo o futuro dela…”

“Mesmo assim não sou a pessoa indicada…”

“… e pelo futuro de minha filha,” prosseguiu Andreoti, inabalável, “para a realização do seu sonho de ser assistente social formada pela UFES, estou disposto a pagar em dólares. Dólares! Dois mil dólares! Metade agora e metade no fim do serviço.” Dizendo o quê, sacou, num gesto de prestidigitador, do bolso interno do blaser azul-marinho com botões dourados, um maço de notas de cem dólares que bateu na mesa com estalidos convincentes — tec, tec, tec ou toc, toc, toc, como lhes soar melhor.

Quando o exportador terminou seu teatrinho, Teodomiro Reis estava no caso. Mandou a honestidade às favas, pensou que se não fosse ele o contratado seria um outro Teodomiro certamente menos competente e mais ganancioso, e dois mil dólares são dois mil dólares, porra.

“Já que o senhor está empenhado em lutar pelo futuro de sua filha, lutaremos juntos,” disse o detetive, completando mentalmente para o seu umbigo: “E lutaremos à sombra e a água fresca.”

Dono da situação, Andreoti impôs suas regras. Era ele agora quem bancava o jogo, o que sabia fazer com autoridade.

“Há, porém, duas condições essenciais a serem observadas. Primeira, a sua investigação deve estar concluída em setenta e duas horas. Veja bem, senhor Reis, setenta e duas horas, nem um minuto a mais, embora possa ser quantos minutos a menos o senhor se mostrar eficiente. Isso porque daqui a três dias é o aniversário de Juninha, dois dias antes do vestibular, e a mãe dela e eu queremos presenteá-la com o nome desse bendito narrador que o senhor vai ter de descobrir.”

“E a segunda condição?” auscultou o senhor Reis.

“Se o amigo fracassar, me devolve as verdinhas que estou pagando agora. E me devolve no toco, como as está embolsando.”

Condições aceitas, Teodomiro recebeu as notas que o outro lhe estendeu, e ainda se deu a gentileza de acompanhar o cliente até a escada do corredor, por onde Tonho Andreoti ganhou a rua.

De volta à sala, o detetive sentou-se na sua cadeira giratória e esticou as pernas sobre o bureau de costas largas. Recostando-se para trás, começou a assoviar animadamente o samba “Eu vou pra Maracangalha”, de Dorival Caymmi. Em sua cabeça, desenvolvia a estratégia — ou seria tática, titubeou Teodomiro — vá lá, a estratégia-tática para decifrar o que já estava chamando de O Caso do Narrador Desconhecido. Ia ser moleza (leia-se sombra e água fresca): bastava consultar seu velho amigo LG, autor do romance As Chamas na Missa, o que poderia fazer até por telefone.

Com ares de senhor do mundo imundo que era sua espelunca de trabalho, agitou, cheirou e beijou o maço de mil dólares que ainda mantinha na mão. No cúmulo da euforia, cantou, a voz empostada: “…eu vou de chapéu de palha, eu vou…”

* * *

Eu, LG (o autor? o narrador? ou será o protagonista?), conhecia Teodomiro Reis desde nossos tempos de estudantes.
Havíamos estudado no Colégio Estadual do Espírito Santo, na antiga avenida Capixaba, onde bondes ruidosos tangenciavam os postes perfilados no centro da pista, calçada com paralelepípedos. Ele, que já era escrivão de polícia — a chefatura ficava perto do colégio, na rua Graciano Neves —, freqüentava o curso noturno, e eu, o diurno. Mas nos encontrávamos com regularidade na UAGES, o grêmio lítero-esportivo do colégio.

Do Estadual, passamos à faculdade de Direito, colegas da mesma turma. Quando as aulas terminavam — a faculdade funcionava à noite, num prédio ao lado da escadaria do Palácio — Teodomiro saía para o pasargadismo da zona. Começava pela 120 e 130, na General Osório, e flanava depois entre a Casa Branca e a Verde, em Caratoíra. Fechava o circuito da putaria empanturrando-se de bife a cavalo no restaurante Mar e Terra. Sua derradeira proeza, no raiar da aurora, era descer, sem perder o equilíbrio, a escada lateral externa, estreita e de madeira, que ligava o restaurante ao mictório sórdido, ao nível do mar, onde Teodomiro dava uma mijada digna de Aurora Gorda, ao som das marolas sonolentas (do mar e não do mijo).

Transferido por desavenças políticas para uma delegacia no interior do Estado, meu amigo acabou não terminando o curso de direito. Em compensação, fez carreira completa na Polícia: enquadrilhou-se com policiais corruptos, deu proteção a proxenetas e receptadores, subornou e deixou-se subornar, ganhou e perdeu rios e lagos de dinheiro, respondeu a inquéritos inconclusos até hoje, casou-se e deu porrada na cara-metade, descasou, casou-se novamente, e mais porradas deu na cara da outra cara-metade, gerou prole e reprole para a qual não dava a menor bola. Graças a um concurso administrativo de encomenda, realizado em fim de governo, tornou-se delegado de polícia, aposentando-se como titular da 2ª Delegacia de Tóxicos e Defraudações, muitas das quais patrocinadas por ele próprio.

Com essa soberba folha pregressa, estabeleceu-se como detetive particular, reclamando da falta de reconhecimento da profissão no Brasil.

Os idos estudantis em que o professor Clóvis Rabelo, com sua voz metálica de tribuno libertário, ensinava literatura no Colégio Estadual à base da vida, obra e estilo dos autores, haviam se evolado definitivamente. Surgiram e ganharam força e prestígio nos meios acadêmicos o estruturalismo, o intertextualismo, o morfologismo, a semiótica, o significantismo, a metalinguagem, e outras invenções bem invencionadas para se fazer a interpretação da obra literária. Propp, Dumézil, Saussure, Bremond, Lévi-Strauss, Friedemann, Jakobson, Barthes, Greimas, Genette, Todorov, Chklovski, Umberto Eco passaram a ser citados, seguidos e admirados como cobras e lagartos da Teoria Literária. Destarte, avanços admiráveis aconteciam no campo desta arte — a Literatura —, enquanto Teodomiro colhia impressões digitais e lia O Círculo Vermelho, pt. saudações.

Alheio à evolução da novelística e fiando-se na amizade que nos unia, Teodomiro supôs que iria deslindar O Caso do Narrador Desconhecido numa simples conversa telefônica com o autor/narrador que vos fala.

No fundo, no fundo, contava ainda com outro trunfo. Fora ele quem entregara pessoalmente, na Fundação Rio, em 1985, os originais do romance As Chamas na Missa para participar do concurso promovido em convênio com a Editora Philobiblion, criada por Ênio Silveira.

Isso porque, vez que outra, Teodomiro me procurava para me oferecer muambas contrabandeadas do Paraguai. Eram relógios digitais, radinhos de pilha, calculadoras mirins, perfumes e uísques de qualidade duvidosa, afrodisíacos mexicanos, presilhas para pênis — um sortido estoque de quinquilharias que ele tirava dos escaninhos da calça, debaixo da camisa, de dentro da cueca. O golpe final, ante a minha resistência de forte Apache, era enfiar a mão pelos baixios de si mesmo, de onde puxava, da vizinhança do pau, a sacolinha de plástico recheada de anéis e pulseiras, dizendo, com o jeito sedutor de um judeu de esquina, “destas você vai gostar”. Fazia o seu mascateio citando satisfeito o nome de clientes habituais — “gente fina!” — que adquiria suas mercadorias.

“Você conhece o Dr. Oliveira, aquele médico metido a bom de sela, que faz cooper no calçadão de Camburi? Pois é o meu maior freguês de pomada japonesa e anda sempre atrás de novidades.” E ria, vigarista, da inconfidência feita.

“E você quer me passar essas muambas para me citar entre seus fregueses?”

“Que é isso, LG? Eu só faço essas revelações porque você é meu amigo de muitos anos.”

“Faz de conta que acredito…”

E Teodomiro ria, cretinamente, pondo à mostra seus dentes eqüinos mal tratados.

Foi aproveitando uma de suas idas ao Paraguai que ele levou os originais do meu romance para a Fundação Rio. Mesmo viajando a negócios, tive de lhe pagar a passagem até a Tijuca (o táxi incluído), cobrindo-o de recomendações para entregar a encomenda no endereço certo. “Vê lá se você vai me deixar na mão, hein, muambeiro?”

“Deixa comigo, amigo.”

Quando meses depois saiu o resultado do concurso senti-me na obrigação de informá-lo da sorte que me dera.

Ele me saudou com deboche e sem o menor sentimento de glória solidária: “Parabéns, meu velho. Desse jeito você vai acabar virando imortal da Academia Espírito-Santense de Letras, igual o Hermógenes.”

Por todos esses laços de amizade, era natural que, ao ser contratado por Tonho Andreoti para descobrir o narrador do meu romance, Teodomiro me procurasse para tentar matar o caso às minhas custas. Quando atendi o telefone, reconheci sua voz rascante.

“Velho, você vai quebrar meu galho,” disse-me entrando direto no assunto. “Preciso de uma dica que só você pode me dar.”

“Do que se trata, Pato Rouco?”

“Do seu romance As Chamas na Missa. Imagina que o Tonho Andreoti, aquele pica-grossa do café, me contratou para descobrir o narrador — eu disse narrador, e não autor — do seu livro.”

“O quê?!”

“Isso mesmo. É pra filhinha dele passar no vestibular e virar assistente social. Não é engraçado, filha de ricaço querendo ser assistente social? Mas para mim é ótimo, e eu só preciso que você sopre o bizu.”

“Você está brincando…” falei, incréu.

“Porra nenhuma, velho. É a pura verdade. Vou papar dois mil dólares lisinhos, lisinhos.”

“Ouça, Pato Rouco: sei que vou tirar o tapete dos seus pés, mas a verdade é que não faço a menor idéia de quem seja o narrador do meu romance. Nunca me preocupei com isso.”

Fez-se um silêncio soturno do outro lado da linha e imaginei meu amigo de testa crispada, nariz crispado, alma idem.

“Corta esta, meu velho,” explodiu, afinal. “Então você escreve a busunha e quer me convencer de que não sabe quem a escreveu? Deixa de sacanagem!”

“Mas é a pura verdade, Pato. Eu não ia mentir pra você. E qualquer coisa que eu disser sobre o narrador do romance vou induzir você a erro,” justifiquei-me, chateado.

“Tá bom, tá bom…” condescendeu Teodomiro, depois de alguns segundos de reflexão. “Se é o que você quer, nós rachamos a grana…”

“Calma, companheiro, desse modo você me ofende.”

“Ofende, porra nenhuma,” retornou a voz armstronguiana. “Até parece que estou falando com algum Jorge Amado. Quando você podia pensar que uma droga de romance de sua autoria, editado por um palavrão chamado Philobiblion, fosse render mil dólares? Fala, quando?”

“Não se trata disso…”

“Então é sacanagem mesmo… e da grossa!”

“Olha, Teodomiro: não vai dar para continuar a conversa. Me liga outro dia, está bem?” E encerrei o papo.

* * *

O curso Umbrais da Universidade ficava na cidade alta, ao lado do Grande Oriente do Brasil. No local havia funcionado um dos mais tradicionais ginásios do Estado, que tinha o livro por emblema e, por lema, os versos do poeta, “O livro, este audaz guerreiro, que conquista o mundo inteiro”.
Mas o mundo mudou, os livros foram desbancados pelas apostilas e o vetusto educandário foi incorporado à rede pública municipal. À noite, o vetusto abrigava os Umbrais, freqüentado por bancários, comerciários, industriários et caterva, literalmente ávidos de atravessar os umbrais da universidade.

Chovia fino quando Teodomiro Reis chegou ao curso. Usava capa à Humphrey Bogart, chapéu de aba caída sobre o rosto e barba postiça. Um tipo nada estudantil — quer dizer, nem bancário, nem comerciário, nem industriário, nem et caterva.

Como conseguiu descobrir que LG ia fazer ali uma palestra sobre o romance As Chamas na Missa é segredo de sherlock. E não vem ao caso. O certo é que, teimoso como uma mula, Pato Rouco não desistira de chegar ao narrador do romance através do seu autor, prova de que não havia levado a sério as palavras do amigo.

Não obstante essa teimosia, havia examinado, como detetive razoável que era, duas outras linhas de investigação: 1ª) tentar elucidar o caso junto a professores que elaboravam as questões para a prova de literatura brasileira da UFES; 2ª) fazer uma enquete entre professores de cursinhos para vestibular e daí extrair uma possível convergência autoral.

A primeira alternativa foi descartada pelas muitas barreiras a serem transpostas: reações escrupulosas dos professores (fingidas ou não); desaforos e impropérios que poderiam ser ditos; risco de processos por tentativa de suborno com envolvimento da Polícia Federal etc. Além disso, o tempo de que Teodomiro dispunha era curto demais para enfrentar tantos obstáculos.

A segunda alternativa foi também abandonada a partir de um elementar raciocínio: a) a média de muitas opiniões não forma uma convicção; b) se a própria Juninha, aluna de um dos principais cursinhos da cidade, continuava ignorando o narrador do romance, era porque pairavam efetivamente no ar, como informara Tonho Andreoti, dúvidas atrozes e densas incertezas sobre narrador tão evasivo. O jeito era, pois, como concluiu Teodomiro, esperar que LG, na palestra nos Umbrais, deixasse escapar a chave do mistério, num momento de descuido.

Por isso ei-lo ali, naquela noite de chuva intermitente, entremetido entre os alunos do cursinho, para ouvir o palestrante com permissão obtida não se sabe de que maneira.

A palestra foi aberta com os elogios de praxe dirigidos ao expositor pela professora Gertrudes, responsável pelas aulas de literatura do cursinho. Ao usar da palavra, LG mostrou-se cauteloso, prevenindo que nem tudo saberia informar sobre o seu romance.

“Cada leitor faz a sua leitura, o que faz de todos um autor adicional do texto. Assim, vocês são meus co-autores,” disse, melífluo, querendo cativar os ouvintes, enquanto Teodomiro, sentado no fundo do auditório, punha-se a pensar em qual era seu grau de co-autoria com Edgar Wallace no romance O Círculo Vermelho.

Mas foi somente após várias considerações, em que LG discorreu sobre a temática geral da obra, que se mergulhou no capítulo das perguntas e respostas, que Teodomiro aguardava com ansiedade.

“Para o senhor, que é o autor da obra, quem é o narrador?” perguntou uma comerciária de cabelos oxigenados e peitinhos atrevidos.

LG esboçou um sorriso de quem já esperava a indagação mas saiu-se de menesgueio, como diria o professor José Leão:

“Talvez a professora Gertrudes esteja mais apta a responder do que eu.”

“Filho da puta,” pensou Teodomiro, captando a decepção do auditório e se associando a ela.

Ante a frustração dos alunos, Gertrudes, com magistral presença de espírito, simulou uma questão de múltipla-escolha, que dirigiu ao palestrante.

“Na série de respostas que se seguem, qual seria a da sua preferência, se você estivesse fazendo o vestibular? 1ª) o narrador de As Chamas na Missa é neutro e impessoal; 2ª) o narrador é o primeiro notário; 3ª) o narrador é o segundo notário; 4ª) o narrador é indefinido quase todo o tempo, intervindo, porém, pessoalmente, em passagens ocasionais da narrativa; 5ª) nenhuma dessas opções.”

Atento e esperançoso, respirando a meio pulmões, Teodomiro ouviu LG eleger a quarta alternativa, embora ressalvando:

“Mas não garanto que seja a resposta certa e poderia até ser reprovado no vestibular.”

A frase provocou alguma hilaridade entre os alunos e enfureceu Teodomiro. Ostensivamente, ele levantou-se e se retirou do recinto, decidido a queimar seu último cartucho: iria consultar o professor-doutor Torquato Benecdito Tasso, considerado a maior sumidade em crítica e teoria literária no Estado, embora homem temperamental, fátuo e cheio de nozes pelas costas.

De onde estava, LG reconheceu, sob o disfarce mal disfarçado, o seu amigo que abandonava o recinto.

“Filho da puta,” pensou LG.

* * *

Um grande letreiro luminoso circulava pelo jardim dos Andreoti emitindo verberações violáceas. A frase flutuante a noite é uma criança fora escolha de Divina Andreoti. Tratava-se de uma homenagem ao seu escritor predileto e, simbolicamente, à filha Juninha que, apesar dos dezessete aninhos que completava, continuava a ser considerada uma criança pelos seus pais amantíssimos. Servia ainda (a frase) para mostrar, aos muitos intelectuais e artistas convidados para a festa, que a divina Divina cultivava, no seu dia-a-dia, além de bobs nos cabelos, requintes literários.
Deslumbrantemente intelectualizada em seu vestido cor de salmão, os peitos ainda polpudos e manipuláveis quase saltando do decote, com bico e tudo — e tudo era o majestoso colar de rubis que repousava sobre os ditos polpudos e manipuláveis — a divina Divina dizia a um e a outro convidado, “adoooro o Scott”, referindo-se a Fitzgerald, embora a maioria dos convidados tomasse Scott por scotch.

Já pespontava a madrugada e a festa se tornava adulta.

O vozerio cristalino e o efervescer dos risos cresciam em clave de sol de mistura com o som dos violinos zíngaros da orquestra vinda diretamente da Hungria. Homens em trajes a rigor tilintavam copos descotch on the rocks, bandejas de prata com taças de cristal da Baviera flutuavam nas mãos enluvadas de garções sacerdotais, mulheres corteses exibiam seios cortesãos em decotes beneficentes ou expunham as espáduas nuas e cruas, que emergiam, esplêndidas, dos trajes de alta couture na luminosidade dos neons. Autoridades e políticos de todos os níveis e desníveis misturavam-se independentemente das negociatas que os uniam ou separavam. Luzes e sons ganhavam o espaço, na tepidez do verão que começava.

Na marina particular dos Andreotti, perto do jardim que crepitava de gente, o iate The Great Gatsby parecia uma tiara de luzes ondulando suavemente — afinal, suave é a noite — no mar da ilha do Boi. Na piscina, com iluminação interna que irradiava do seu fundo um leque de fachos coloridos, convidados e convidadas, mais pra lá do que pra cá de inebriados, mergulhavam de cóccix com suas taças na mão, ou eram empurrados por outros tantos inebriados, alegres e espalhafatosos. Ria-se muito, falava-se mais ainda, gritava-se.

No patamar de madeira que, do terceiro pavimento da casa, projetava-se em balanço sobre a praia, um toque vibrante de pistom, soprado por um nouveau-riche que tirara o instrumento a um dos músicos da orquestra, chamou a atenção para a louríssima portentosa que ensaiava gestos de strip-tease com passinhos de bailarina. Uníssono, um coro de vozes subiu do jardim em direção à portentosa, “tira, tira, tira”. Não resistindo ao apelo convincente, a portentosa levou a mão até as costas e correu em direção ao vale das nádegas o zíper do longuinho preto que vestia, ofertando-se ao tira-tira em sua nudez de vênus ateniense. Antes que o desnudamento chegasse até os dardanelos da louríssima, o músico que saíra à cata do pistom que o nouveau-riche lhe tirara tentou envelopar a exibicionista em seu revestimento original, sob os apupos que subiam do jardim. Uma outra lady Godiva, saída não se sabe de onde, pôs-se também a gira-girar em câmara-lenta no mesmo palco projetado sobre a praia, o que obrigou o abnegado músico a um esforço redobrado para tentar conter as duas nudistas que brincavam de picolê à sua volta. A grande festa dos Andreoti atingia o seu momento de orgasmo.

Quando o chefe da segurança aproximou-se furtivamente de Tonho Andreoti, este caminhava por uma alameda de margaridas amarelas, de braço dado ao prefeito da Capital. Andreoti acabava de soprar uma proposta de negociata na orelha esquerda de sua excelência, o que provocou, em sua excelência, uma risada límpida e monetária.

“Tem um sujeito na portaria que insiste em falar com o senhor. É o detetive Teodomiro Reis,” disse o chefe da segurança.

Andreoti se despregou da orelha do prefeito e rumou para a portaria onde o anunciado o esperava.

“Bons olhos o vejam, senhor Reis!” disse Andreoti, estendendo ao detetive a taça de champanha que tinha na mão, aceita sem cerimônia.

“Desculpe vir incomodá-lo,” justificou-se Teodomiro, após bebericar o líquido dourado. “Mas quis lhe trazer ainda hoje a solução do Caso do Narrador Desconhecido.” E passou a Tonho Andreoti uma pasta de capa plastificada, onde sobressaía o título: A SINTAGMÁTICA DO NARRADOR NO ROMANCE AS CHAMAS NA MISSA – UMA COMBINATÓRIA DOS POSSÍVEIS LÓGICOS, seguido do nome do autor do trabalho.

“Torquato Benecdito Tasso, o das polêmicas dos jornais?” indagou Andreoti, bem informado.

“Ele mesmo,” confirmou Teodomiro Reis. “É o maior entendido em literatura capixaba. Sua opinião é respeitada, e quase sempre temida, nos…” Ia dizer guetos, mas corrigiu-se: “…redutos literários.”

Pelas polêmicas nos jornais, Andreoti referia-se à querela que vazara do campus universitário para o resto da cidade de Vitória, popularizando-se. Acima dos aspectos acadêmicos, repercutiram, fora do templo acadêmico, a virulência da contenda e as implicações políticas suscitadas pelos doutos envolvidos, ou seja, denunciantes e denunciado. Nesse qüiprococó não se punha em dúvida a sólida cultura do professor Torquato Benecdito Tasso, reconhecida até pela recalcitrante comunidade universitária a que ele pertencia. O que acabou estourando nos meios jornalísticos foi a glosa ao montante gasto pelo professor na realização de uma pesquisa sobre a Metalinguagem do ó Agudo na Frase Canora dos Sopranos, acoimada de dispendiosa pelos professores filiados ao PTI – Partido dos Trabalhadores Intelectuais.

De gênio explosivo, Torquato Benecdito Tasso defendeu-se com unhas e ditos, em réplicas e tréplicas ardorosas, provando, pela imprensa escrita e falada, a validade cultural do seu trabalho e o bom uso da verba pública para realizá-lo. Demoliu, como um espadachim de Alexandre Dumas, tricas e futricas.

Agora, Tonho Andreoti recebia de Teodomiro Reis um texto datilografado e assinado pelo professor esgrimista, que Andreoti percorria numa leitura dinâmica em que saltavam aos seus olhos frases e expressões com significados poderosos: “No universo romanesco de um texto narrativo, que se distribui em diferentes instâncias hierárquicas, autor e narrador são componenciais distintos, unidades autônomas e inconfundíveis… O autor, sendo o responsável pela criação literária é, na condição de seu fautor… O leitor, receptor do texto narracional… O narrador se constitui, de sua parte, em foco produtor do discurso narrativo, agente emissor de primeiro grau ou primário… narrador visível ou explícito… narrador invisível ou implícito… camuflado nos bastidores do texto… extradiegético ou intradiegético… polimorfo ou unimorfo… polissêmico ou unissêmico… convivente ou inconvivente… personificado ou despersonificado… ‘eu’ projetado do autor, seu alter ego… narrador autista e compatilhativo… narrador superior à personagem, numa perspectivação ‘acima de’ protagonistas e antagonistas da fabulação… narrador onisciente… narrador igual à personagem narrante numa perspectivação ‘com’… narrador participativo que sabe tanto quanto as personagens… narrador com visão ínfima, sabendo às vezes menos do que as personagens… narrador esteroscópico… narrador penascópico… narrador… narrador… narrador.”

Eram quarenta páginas de substancioso estudo, com transcrição de trechos de romances clássicos e neoclássicos, rico em tiradas idiomáticas, municiado de referências bibliográficas rigorosamente apresentadas de acordo com as normas de citação da ABNT, que havia custado a Teodomiro Reis duzentos dólares algibeirados pelo professor Torquato, livres de imposto de renda. Evidentemente, não interessava a Tonho Andreoti ler o trabalho como um todo, em meio ao frisson da festa de Juninha, e nem dispunha de bagagem para tanto. Pulando páginas, buscou o parágrafo final: “Posto isto, resulta inquestionável e incontroverso que o narrador do romance As Chamas na Missa é …”

A conclusão categórica agradou ao espírito prático de Tonho Andreoti.

“Bom trabalho, senhor Reis. Sirva-se de bebidas e canapés enquanto vou à minha biblioteca pegar os dólares que lhe devo.” E se afastou de corpo leve e andar macio, assoviando happy birthday to you. Em inglês, naturalmente.

Para surpresa e decepção de Teodomiro Reis, que recolhia com mão voraz os canapés de uma bandeja posta à disposição dos seguranças, a espera foi curta. Tonho retornou em poucos minutos e passou a Teodomiro o maço das cédulas com a cara beócia de Benjamin Franklin, prontamente contabilizadas pelo detetive. Como dois cúmplices, despediram-se satisfeitos.

Quando Teodomiro Reis partiu no seu chevette 77, retiniam no jardim álacre dos Andreoti os acordes dos violinos zíngaros atacando o Bolero, de Ravel. A exaustão que se abatia sobre o detetive fazia-o aspirar a um sono hibernal. Chegando ao apartamento, jogou-se na cama ainda de roupa e apagou em sono de pedra.

Às cinco da manhã, porém, o telefone o repuxou para um estágio de lucidez letárgico. Era Tonho Andreoti.

“Devo tê-lo acordado, senhor Reis. A festa mal terminou e eu já tenho outro servicinho urgente para a sua competência. Juninha quer saber agora quem é o narratário do romance As Chamas na Missa.”

Do fundo de sua viscosa sonolência, Teodomiro Reis limitou-se a perguntar: “E o preço?”

“Mais quatro mil atende a sua expectativa?” indagou Tonho Andreoti.

Porque atendia, Teodomiro Reis retomava o caso ou o rescaldo do caso.

Aceita a incumbência, ergueu-se da cama e, ainda sonambulicamente, enfiou-se no chuveiro para uma ducha que o deixou revigorado para as agruras do dia. Quando saiu do box, envolto numa toalha que se fechava com dificuldade sobre o ventre flácido, fez imediatamente uma ligação para LG.

Quando identifiquei a voz roufenha, reclamei amarfanhado: “Você sabe que horas são, Pato Rouco?”

“Desculpe, meu amigo, mas eu precisava telefonar logo. Tem dois dias que não durmo, resolvendo o caso do narrador do seu romance e depois de tudo esclarecido, quando penso que vou descansar, o pica-grossa do Tonho Andreoti me contratou de novo para descobrir o narratário de As Chamas na Missa. E eu, que nunca ouvi falar em narratário, quero saber se desta vez você pode me ajudar ou vai continuar de sacanagem com o seu dileto amigo?”

“Me esclareça uma coisa, Pato,” pedi, mais aborrecido do que interessado, “como é que você resolveu o caso do narrador desconhecido?”

“Consultando o professor Torquato Benecdito Tasso, conhece o luminar?”

“Conheço. Sabia que ele declarou que meu romance é uma merda?”

“Não o julgue sem uma dose de clemência…”

“Ele é que devia ter tido clemência no julgamento do meu livro…”

“Não vamos iniciar uma discussão em pleno desjejum…”

“Já iniciamos, meu caro. Tanto que aconselho você a recorrer às luzes do seu luminar para resolver seu novo probleminha.”

“Mas o homem viajou para um congresso de metalinguística na PUC…”

“Pois então sifu, meu caro…”

“Porra, LG, você está falando como autor, narrador ou personagem, já que como amigo não é?”

Surpreendido por Pato Rouco com aquela demonstração de iniciação em teoria literária, indaguei, mais interessado do que aborrecido: “Onde você aprendeu essa diferença?”

“Lendo O Círculo Vermelho,” respondeu com sua mal disfarçada risadinha, o que me levou a imaginar seus dentes amarelados de cavalo baio exibindo-se à boca do fone.

Não resisti à gozação e desliguei o aparelho na cara do meu amigo.

“Mas… eu quem?” fiquei cismando com meus irritados botões.

* * *

“Seu Pedro, o senhor está surdo?” perguntou Dona Lenilda, quase futucando o escrivão com a ponta do pé. “Didi-já-hoje que o delegado está chamando o senhor, lá no gabinete.”

Pedro olhou para a faxineira, reuniu as folhas do conto em cuja leitura estivera absorvido, ergueu-se de sua eco-oca apoiando-se no tronco do cajueiro e disse: “Então, vamos lá, gentil Lenilda. É hora de deixar a Literatura e cair na Vida.”

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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