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A pesca do siri patola

Prainha. Autor: Jair Santos, 2004.
Prainha. Autor: Jair Santos, 2004.

Na verdade patola é um apelido dado ao siri. Foi assim chamado pelos antigos homens do litoral capixaba que habitavam nas vilas de pescadores. Podemos dizer que este cognome lhe cai como luva porque patola quer dizer maluco, pateta. Vejamos a explicação.

Siri é um crustáceo que vive no fundo dos braços de mar, um decápode, isto é, que tem vários pés dos quais o último par, os menores, se constituem nas nadadeiras que lhe possibilitam rapidíssima mudança de direção em todos os sentidos no meio da massa líquida. O primeiro par de membros da frente são dotados de temíveis tenazes que lembram o instrumento, com cabos longos, apropriados para segurar o ferro em brasa a malhar na bigorna. No animal servem para a defesa e para levar, delicadamente, os alimentos à boca, por menores e delicados que sejam. Diante da delicadeza dos movimentos que possibilitam levar o ínfimo alimento à boca e da brusca e terrível garra, mais fortes que aquelas dos caranguejos, o humilde pescador apelidou-o de patola ou pateta.



Narrativa sobre a pesca desse crustáceo

— Isabé… ô Isabé.

Isabel é a mulher de seu Manuel Flores que trabalha de doméstica bem no centro de Vila Velha. Lá de dentro Isabel identificou a voz e foi atender. Sabia que era Adelina, sua colega, que trabalha na casa de dona Olímpia, funcionária da prefeitura, moradora da mesma rua, ali adiante.

Para atender ao chamado, Isabel chegou na janela.

— Ei Adelina, bom dia! Cumu vai?

— Óia Isabé, cumadi Arzira mandô falá pro seu marido qui vai matá duas galinha manhã di manhã. Pra ele vim buscá as tripa, oviu?

Manuel Flores morava em Vila Velha desde 1906, quando ali chegou, muito pequeno, filho de um casal de pescadores do longínquo povoado de Ponta da Fruta. Na vila, trabalhou de tudo enquanto pôde. Vendeu lenha para fogão, peixe, caranguejo, sururu, ostra, fez capina para a prefeitura, vendeu esterco para jardim das casas, consertou goteiras, podou árvores enormes, arranjava barro, areia, fez muita cerca de arame farpado e de ripa, enfim, mexeu com mil coisas. Ficou conhecido de todo mundo do lugar porque era o dia todo ocupado. Pediam de tudo para ele e a todos dizia: “Sim senhora, pois não. Pra hoje? Podi dexá que eu resorvo”.

Por ter sido assim, bom de trabalho, construiu sua cazinha ali perto de Itapuã, num lote que comprou, bem baratinho. O homem era danado, sem medir sacrifício construiu casa própria coberta de telhas e com uma varanda na frente. Casa bonitinha e muito melhor que a de muita gente da região. Sim senhor, uma casa que já nasceu com um jambeiro ao lado.

Logo depois, em 1926, casou com uma mocinha de nome Isabel, que hoje trabalha como doméstica no centro da vila, perto da ponte Nova. Professora Alzira é uma boa patroa e Isabel uma ótima ajudante, por isto, em 1930, a primeira filha de Isabel foi batizada pela professora. A partir daí as duas passaram a usar o tratamento carinhoso de “comadre”. Comadre pra lá, comadre pra cá, e assim Isabel foi ficando conhecida como “comadre”. A toda pessoa que chegava na em sua casa, a professora a apresentava assim: “Esta é a comadre”. Olha comadre, aproveita e traga um cafezinho, viu?

Com o passar dos anos o seu Manuel Flores já andava meio cansado, coisa da idade. O danado tem boa saúde, mas não está aguentando serviço pesado. Por isso tem se dedicado mais à pesca de camarão e siri. Vez por outra cata caranguejo, não mais que meio saco, só para atender alguns velhos fregueses. E tem sido muito bom, porque arranja tudo ali no rio da Costa, sem precisar andar para lugar muito distante. Resolve tudo quase no centro de Vila Velha. E assim vai vivendo até quando Nossa Senhora da Penha permitir. É verdade, sim senhor! Veja como tudo se arranja direitinho pro lado dele. Amanhã, pela manhã, a professora Alzira dar-lhe-á a melhor isca que existe para pescar siri: tripas, cabeça e pés de galinha. Ele sabe que se jogar isca de galinha no rio, ali na ponte Nova, todo siri que estiver lá atrás do morro Batalha, virá correndo. Aqueles da proximidade, nem se fala! Por essa razão sabe que amanhã será dia de encher a lata. E nem vai molhar os pés porque, até doze horas, a maré estará acabando de encher. Assim, só vai poder pescar de jereré[ 1 ] de cima da ponte Nova,[ 2 ] na parte da tarde.

Todo mundo sabe que é improdutiva a pesca do siri quando a maré está cheia, porque ele sempre gostou de freqüentar as águas rasas dos mangais. Na vazante da maré fica sendo o primeiro a comer as novidades que a água vem arrastando na descida, restos de lixo orgânico ou bicho morto, principalmente. Todos dizem que o siri é o urubu do rio ou do mar. Adora comer porcaria, podre então, nem se fala!

Imaginemos que Manuel Flores esteja pescando sentado na beira da ponte.

Esta pesca consiste em colocar o jereré com a isca em repouso no fundo do rio. Feito isto o pescador aguarda com paciência a chegada do comilão, o siri. Através da linha que sustenta na mão o pescador pode perceber quando o crustáceo está puxando ou comendo a comida. Assim sendo, é só começar, lentamente, a subida do jereré ou jererê.

Jererê. Autor: Jair Santos, 2004.
Jererê. Autor: Jair Santos, 2004.
Esse jereré consta de um pedaço de rede preso a um aro feito de arame grosso e torcido em círculo de 50 centímetros de diâmetro, aproximadamente. Nesse aro estarão atados dois pedaços de arame mais fino, que se cruzam no centro onde será amarrada a isca. Ainda no mesmo aro serão atados três pedaços de fio que fazem o “cabresto”, em forma de pirâmide triangular, preso à linha que pende da mão do pescador, ou da vara caso o pescador esteja sobre uma pedra. Veja o desenho ilustrativo.
Pesca com jererê. Autor: Jair Santos, 2004.
Pesca com jererê. Autor: Jair Santos, 2004.

Narrativa da pesca do siri com o uso do puçá

O puçá é semelhante ao jereré. O apetrecho de pesca é quase o mesmo só que agora, o seu Manuel Flores estará em pé, na beira do rio. Vejamos:

O puçá dispensa o cabresto feito com três pedaços de fio, e o aro de arame grosso termina em um cabo para que possa ser usado diretamente com a mão. O seu uso exige outro equipamento que consta de uma pequena vara que será fincada na margem ou no fundo do rio. O pescador poderá usar quantas varas quiser. À cada vara será atada a linha com a isca na extremidade oposta.

Observação: Na extremidade da linha, junto com a isca, poderá ser amarrado um pequeno peso (pode ser de chumbo, ou até mesmo uma pedra), caso haja correnteza.

Nesta modalidade, mais que na anterior, é primordial o silêncio. É importante também que todo movimento do pescador seja feito em câmara lenta, porque o siri, sem dúvida, de lá do fundo do rio enxerga melhor o pescador do que o pescador ao siri.

Observadas estas questões, a vara será fincada de modo a ficar com a ponta superior fora da água. A pescaria consiste no seguinte:

a) Ficar observando qual a linha que está esticada ou mexendo, sinais de siri na isca.
b) Com passos lentos o pescador, de puçá numa das mãos, vai, vagarosamente, até a linha na cabeça da vara.
c) Lentamente começa puxar a isca para perto de si. Pelo tato, sentirá que o siri resistirá, não deixando que a boa comida lhe escape.
d) Estando ele bem perto, deve ser iniciado o movimento vertical, puxando a isca com o siri para cima, de modo a tirá-lo do fundo. O siri, por ser extremamente guloso, virá junto. Ao mesmo tempo que o pescador puxa a isca, com a outra mão, também cuidadosamente, faz descer o puçá. Observe que a primeira mão está puxando a isca para cima e a segunda mão está descendo com o puçá.
e) Quando a isca com o siri comilão estiverem na altura aproximada do joelho ou da coxa, o puçá deverá estar chegando, lentamente, por baixo do siri. É evidente que o crustáceo está observando tudo e poderia ir dando o fora, não fosse a fome voraz que, neste momento, o faz correr risco de vida. Os mais espertos fogem, mas toda pescaria é um jogo de paciência. Lança-se novamente a isca e, bastam alguns minutos para iniciar a segunda tentativa. Uma coisa é certa, com a carniça adequada, o que ele mais quer é comer tudo. Então, a cada escapada, repete-se o procedimento. Quando o puçá estiver bem próximo, convém dar uma paradinha para que ele coma tranqüilo e perca o medo. Esta “paradinha” poderá ser repetida até que ele se acostume.
f) A etapa final consiste no movimento de subida do puçá, o mais rápido que for possível, de modo a arrastar para cima a isca com o siri junto. Para que este movimento seja eficiente, é importante que o cabo do puçá esteja fortemente atado ao aro e o seu punho seja anatomicamente bom, isto é, esteja muito bem ajustado à mão do pescador.

Pesca com puçá. Autor: Jair Santos, 2004.

Outra modalidade não muito apropriada

Lembramos que é possível pescar siri com rede de arrasto ou arrastão, mas na verdade esse equipamento é mais apropriado para a pesca do camarão. Por ser ela de malha estreita e por arrastar no fundo do rio, certamente pegará tudo por onde passar como, por exemplo, algas, muitos peixes pequenos, folhas, lixo e um ou outro siri. Esta modalidade deve ser evitada porque é de conseqüência predatória, principalmente para os peixes e siris pequenos.

Como transportar o siri pescado

1º) Em cestas de mão – Neste caso todos os siris pescados deverão se “empatados”. Não sabemos quem inventou este termo, mas podemos explicar. Empatar um siri, consiste em enfiar a ponta da unha de uma das suas pernas na junta de cada puã ou tenaz. Este procedimento o imobiliza completamente. Feito isto resta arrumá-lo na cesta, de ventre para cima.

2º) Em lata de 20 litros – Por se constituir num recipiente fundo, de onde jamais fugirá, não será preciso “empatá-los”. Entretanto, para que fique quietinho no fundo da lata, recomenda-se cobri-los com pontas de ramos das árvores do mangue. Este procedimento pode ser adotado também na cata de caranguejos. Todavia, os catadores mais dedicados ao caranguejo, na sua maioria, preferem transportá-los em sacos de estopa que deverá ter a boca torcida de modo a apertar ligeiramente os crustáceos dentro do saco.

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NOTAS

[ 1 ] A Ponte Nova ficava na atual avenida Champagnat, bem na frente da atual loja Mac Donalds. O povo a apelidou de Ponte Nova porque havia, no cruzamento das ruas XV de Novembro com América do Sul, a ruína da Ponte Velha, que tinha como piso, dois pares de vigas de madeira sobre 3 grandes pilares de apoio, usada na travessia a pé. Nada mais que um atalho para quem queria ir do centro da vila para a Praia da Costa. É bom lembrar que não circulava nenhum automóvel nas ruas de Vila Velha.
[ 2 ] Jereré é termo mais usado em Vila Velha.

[SANTOS, Jair. Falando de Vila Velha. Vila Velha, 2002. Reprodução autorizada pelo autor.]

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Jair Santos é arquiteto e professor aposentado, natural de Alegre, ES, autor dos livros Vila Velha, onde começou o Estado do Espírito Santo e A igrejinha do Rosário.

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