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A púcara búlgara ou morte na ladeira de Tabuazeiro

Dia de vento sul e chuva fina. Vitória sem cara de cidade-sol ou ilha do mel. Os crimes da rua Morgue (ah os crimes da Rua Morgue!) deviam ter acontecido num dia de vento assim, de chuva assim, no Quartier de St.-Roch.

Pedro fechou o guarda-chuva na varanda da delegacia, tirou a capa de plástico transparente e rumou para a cozinha da antiga casa da Chapot Presvot, 272. Lá entregou a dona Lenilda, para guardar na geladeira com porta de dobradiças enferrujadas, a carninha moída que havia comprado para o ensopadinho da noite. Era vidrado em ensopadinho de quiabo, que preparava com técnica de mestre-cuca. Quando, finalmente, entrou na sua sala, deparou-se com a púcara búlgura que se agrandalhou diante dele.

Por que púcura búlgara?

Pedro não saberia dizer. Ele, como nós, e também Campos de Carvalho, nunca vimos uma púcura (se é que existe uma), menos ainda uma púcura búlgara. Mas a estampa feminina que se avantajou à frente de Pedro num vestido aciganado, a cabeleira basta, as olheiras negras como máscara do Zorro a jusante das espessas sobrancelhas, não tinha outra definição senão a que Pedro intuitivamente lhe dera.

Digital, o delegado da Chapot Prevot, costumava dizer que a primeira impressão é a que dedura. Pois Pedro acabara de validar a filosofia de botequim do delegado.

“Já vi que o senhor é o escrivão”, pronunciou-se a búlgara, com voz que correspondia ao seu tipo abrutalhado, recebendo um aceno afirmativo de Pedro.

“Volte a se sentar, por favor,” rogou o escrivão a fim de se livrar do desconforto, uma quase tontura, que lhe causava aquela enorme mulher a sua frente, em forma de Penedo na baía de Vitória.

“Obrigada. Vim aqui para fazer uma denúncia”, disse a massa piramidal ajeitando-se na cadeira.

Pedro se entrincheirara atrás da sua Olivetti. “Pode falar que estou atento.”

Podia ter dito estou ouvindo, mas, naquelas circunstâncias, atento, como sinônimo de alerta, pareceu-lhe mais combativo.

“Eu moro em Tabuazeiro e quero que o senhor mande prender o facínora que matou minha cadelinha. Eu tenho o endereço dele.”

“Minha senhora, para começo de conversa, eu não mando prender ninguém. Esta autoridade quem tem é o delegado. O que eu faço é tomar depoimentos e registrar queixas. Queira ser mais clara. Como sua cadelinha morreu?”

Assassinada com cianureto.”

“Uma morte nazista,” definiu Pedro.

“Foi terrível,” prosseguiu a descomunal figura, e Pedro teve a impressão de ver as olheiras dela se fazerem mais búlgaras, devido ao sofrimento. “Minha cadelinha comeu veneno e foi morrer no fim da rua. Deve ter sofrido à beça…”

Pedro ia esclarecer que a morte por cianureto é uma morte rápida e indolor, pelo que era do seu conhecimento da história da ascensão e queda do III Reich, mas não se atreveu a tanto. A pergunta que saiu foi outra:

“Por que a senhora afirma que foi cianureto?”

A búlgara olhou Pedro de cima para baixo, como se não tivesse acreditado na indagação, e respondeu do oitavo pavimento:

“Porque eu mandei fazer a autópsia! O senhor pensa o quê? A Sheba tinha veterinário que a visitavaem domicílio. Foiele que confirmou a causa da morte.”

“O nome da cachorrinha era Sheba?” indagou Pedro.

“Eu mesmo que inventei.”

“E como a senhora chegou ao seu suspeito?”, tateou Pedro as certezas da púcara.

“Suspeito, não! Assassino de fato! Todo mundo sabe que ali em Tabuzeiro ele mata gatos com cianureto.”

“Mas se ele mata gatos, por que mataria sua cadelinha?”, interrogou Pedro com uma dose de sarcasmo que escapou às olheiras da búlgara.

“Esse facínora, seu escrivão, não quis – entenda bem – não quis matar a Sheba. Ele preparou o veneno para os gatos, e a pequena Sheba, tadinha, foi lá e comeu…”

“Comeu onde?”, quis precisar Pedro o local do assassinato.

“Na rua onde fica a casa do facínora, onde ele mata os bichanos da vizinhança!” explodiu a búlgara, desabando em pranto copioso.

Incomodado pelo choro da mulher, Pedro interfonou para a cozinha, clamando, angustiadamente: “Dona Lenilda, traga-me, por favor, um púcaro d´água.”

“O que seu Pedro?” e a voz da faxineira quase se fez audível na sala do escrivão.

“Quero dizer, um copo d´água. Com urgência!”

Quando a água foi trazida, a búlgara a engoliu duma talagada, muito embora se recompusesse aos poucos.

“Podemos continuar?” perguntou o escrivão, depois de uma pausa psicológica. A mulher assentiu, fechando e abrindo as pálpebras de cílios longos, no fundo da máscara negra.

“A senhora, por acaso, chegou a falar com o acusado da morte da Shebinha?”, interrogou Pedro, fazendo-se íntimo da vítima.

“Fui tomar satisfações na casa dele.”

“E o que ele disse?”

“Me ouviu com uma frieza de assassino e respondeu: ‘A senhora me desculpe se vou decepcioná-la, mas não foi o meu cianureto que matou sua cachorrinha. Se fosse, ela não teria andado até o fim da rua. Caía dura aqui no meu jardim! E ainda ia me dar o trabalho de jogá-la no lixo.’ Foi o que ele disse, batendo a porta na minha cara!”

“É uma situação complicada, minha senhora. Há uma acusação que o acusado nega, não existem testemunhas desse suposto crime, menos ainda provas. É um caso digno de Trent.”

“Quem é Trent?” quis saber a búlgara, com a cara púcura.

“Um detetive criado por E.C.Bentley, um escritor inglês,” informou Pedro.

“O senhor está despretensiando de mim?”

Aquele despretensiando de mim ribombou na caixa craniana de Pedro, ricocheteou de um lado para o outro, percorreu-lhe os miolos, fustigou-lhe os neurônios, quase lhe arrepiou os cabelos curtos e negros. Mas durou pouco essa introspecção de intelectual porque, ao lançar a pergunta, a mulher se erguera da cadeira e o escrivão pôde medir-lhe novamente o tamanho e a aspereza. Num átimo, Pedro percebeu que corria o risco de não mais poder recitar o verso de Pessoa, ‘nunca conheci ninguém que tivesse levado porrada.”

“Não precisa ficar exaltada, minha senhora!” disse o escrivão na defensiva. “Vou preparar uma queixa, a senhora assina, eu a passo para o delegado. Qualquer novidade que surgir eu a informo, está bem assim?”

“Está,” concordou a búlgara dominando o impulso que a movera seja lá para que desatino fosse.

Dando-se por salvo, Pedro fez o que disse e a búlgara assinou, com letra infame, o papel que o escrivão lhe passou.

Depois que ela se foi, Pedro se pôs a espremer o cerebelo: “Sheba, Sheba, onde já ouvi esse nome?”

Tanto forçou que lhe veio à memória a frase “come back, little Sheba”, da peça de William Inge que serviu de base ao filme de Daniel Mann A Cruz da Minha Vida.

“Preciso baixar este filme na Internet,” assumiu o compromisso consigo mesmo enquanto tragava bulgaramente a fumaça de um cigarro, dos muitos que iria fumar naquele dia que mal começara.

Aliás, que começara mau.

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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