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A ratazana e o ocaso

Nos jornais daquela manhã o povo leu sobre o morte do autor estampada nos jornais em belas letras negras. O rumor encheu o dia. A alguns, morte tão trágica consternou. Outros sorriram seus oblíquos risos. E houve mesmo quem se sentisse ligeiramente aliviado.

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“[…] O corpo foi encontrado na varanda do apartamento. Ao lado do cadáver havia uma caixa de barbitúricos e várias garrafas de cerveja vazias. Como não havia marcas de violência […] presume-se que tenha cometido auto-extermínio.” (O CLARIM)

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O perito criminal observou em suas anotações que o extinto trazia no rosto um riso enigmático.

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Os psicanalistas se reuniram em seu clube fechado e após longa conferência regada a apartes distintos e rostos severos escreveram sua nota meio científica, meio literária, e, protestando pesar, fizeram-na publicar nos jornais ao lado de uma fotografia do defunto.

A notícia, os protestantes a utilizaram em contra-propaganda.

As assembleias do povo se fizeram ao pé dos postes, onde murmuraram-se conjecturas diversas.

O santo clero preferiu não se manifestar. Algumas missas de réquiem se realizaram aqui e ali em intenção da alma do morto. Com o recolhimento dos emolumentos, é claro.

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Após uma dessas cerimônias, um sacristão, vazio o templo, acariciou apressadamente as frias pernas de metal de São Sebastião. Depois de apagar as luzes, adentrou a sacristia.

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“[…] natureza panfletária, elegância escassa. A literatura de Fulano, julga ele mesmo, é feita para o povo. Turba ordinária, Fulano pensa que ainda a escandaliza com seus folhetins, ignorando que não o entende o povo, esse organismo incapaz de congregar-se em torno de […]” (Publicado dias antes da morte do autor no caderno b dO CLARIM)

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“Que mal haveria em aproximar-se do sentimento do povo e acariciá-lo? […] não se pode ignorar que […] aproximou-se da materialização desse sentimento e o cristalizou definitivamente. […] É lamentável que autor desse porte, […] tenha cometido o auto-extermínio. Privou o país não só, etc. (Dia seguinte, nO CLARIM)

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De início um gracejo, o riso de alguns encheu a noite que precedeu o sepultamento, transformando-se em medonha gargalhada.

Em um canto obscuro e úmido da cidade, alguém lia: “é mister que venham escândalos”.

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Em meio a poucas homenagens, o corpo desceu ao túmulo. Compareceram os poucos parentes e amigos, alguns discípulos, dois ou três leitores e um crítico. Este jogou sobre o esquife três montinhos de terra e saiu abanando as mãos.

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P.S.: Alguns trechos deste espetáculo foram extraídos dos melhores jornais da “Capital do Absurdo”(expressão do falecido autor que, segundo o crítico literário dO CLARIM, “é de literariedade obscura e, se possui ironia, é extremamente grosseira”).

[In Palavras da Cidade, volume 2, Prefeitura Municipal de Vitória, 1991. Reprodução autorizada pelo autor.]

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Pedro José Nunes, escritor, nasceu em Ibitirama, ES, em 1962. Nesse mesmo ano, sua família retornou a São José do Calçado, e lá ele residiu até os 19 anos, quando se mudou definitivamente para Vitória. Formou-se em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo. Criador e responsável pela manutenção do site Terlúlia, dedicado à literatura produzida no Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui.)

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