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A vã filosofia da caveira humana ou as agruras de um professor de português

Adentrou a Delegacia da Praia do Canto procurando Pedro, o escrivão. Este saudou com alegria o professor Bicalho, que fora seu substituto no Colégio Gil Vicente.

“Opa, companheiro, a que devemos a honra desta visita?”

“Honra só a de revê-lo. No mais, é aborrecimento puro.”

“Sente-se e diga em que lhe posso ser útil,” falou o escrivão arrastando uma cadeira para o recém-chegado.

O professor sentou-se e observou atentamente a escultura de louça inglesa na mesa de Pedro — um crânio de tamanho natural sobre um livro fechado.

“Bem hamletiana esta decoração,” comentou Bicalho.

“É para lembrar quem somos nós, por mais sábios que sejamos,” justificou-se Pedro.

“É a filosofia da caveira humana?”, indagou o professor.

“Tu o disseste,” confirmou Pedro.

“Mas vamos ao que interessa,” disse Bicalho. “Eu vim procurá-lo porque o conheço bem. Não me leve a mal, mas sempre tive ojeriza a ambiente de delegacia, você sabe como é…”

“Até eu tenho,” respondeu Pedro, não apenas porque era verdade, como também para deixar o amigo à vontade.

“Realmente, não sei como você agüenta este mister,” aproveitou a deixa o professor.

“É porque deste mister depende a minha sobrevivência financeira. Se não, já tinha mandado esta mesa e esta Olivetti para o espaço,” confessou Pedro, com um sorriso vivo.

“Bem, como não quero tomar seu tempo vou direto ao assunto. The point, como dizem os americanos.”

“Trata-se de uma queixa?”, indagou o escrivão.

“Sim, uma queixa,” repetiu o outro como se falasse para si mesmo.

“Eu tenho por norma conversar com as pessoas antes de passar as queixas para o papel. Assim consigo uma visão geral dos fatos e facilita meu trabalho. Posso seguir este método?”

“Certamente. No meu caso, o que me traz aqui é uma pichação que um aluno fez no muro da minha casa. Minha casa tem um muro branco, alto, porque não gosto de ser devassado em minha privacidade.”

“E o aluno pichou seu muro?”

“Mais de uma vez. Já pintei três vezes, e ele o borrou de novo com os mesmos versos.”

“Versos?” estranhou o escrivão.

“Uns versos imbecis que anotei para fundamentar a minha queixa. Leia-os, por favor.”

Pedro observou seu interlocutor por cima dos óculos, enquanto pegava o papel onde estava escrito:

Oh, Hosana, se para ti
Não houvessem pretendentes,
Seria eu, divina,
A mais feliz das criaturas.
Não levaria a vida, como levo,
Ante você, indiferente,
Como se passasse numa estrada em viatura.

“De absoluto mau gosto,” reconheceu o escrivão.

“Mau gosto só não. Veja você, que me precedeu como professor de português no Colégio Gil Vicente, quanta estupidez contém essa versalhada de um Romeu frustrado. Primeiro, o Hosana — este sujeito pensa que hosana é nome de mulher! Aí vem houvessem pretendentes. Eu canso de repetir que o verbo haver, com sentido existencial, é impessoal, mas essa gente não aprende. Em seguida, rimar criaturas com viatura até parece coisa de policial, sem querer ofender, é claro,” observou o professor, apontando os trechos que já tinha assinalado com caneta hidrocor.

“Realmente lamentável,” aquiesceu Pedro.

“E logo no muro da minha casa. É provocação demais!”

“Você tem razão. Mas como sabe que é um aluno seu o autor desta imbecilidade?” perguntou o escrivão.

“Por dois motivos: porque eu conheço a letra dele; e porque já me havia mostrado esses versos, que critiquei acerbamente. Acho que meu erro foi este, o de detonar sua poesia em plena sala de aula, diante dos colegas.”

“Então, no seu entendimento, a pichação é um ato de vingança?”

“Se não tivesse esta certeza não estaria aqui apresentando a queixa. Conhece a frase la muraille, papier de la canaille? Pois meu muro virou papel para esse calhorda.”

“Me dê mais uma informação, professor: qual a idade do seu agressor literário?”

“Deve estar na casa dos 16 anos. Idade difícil, eu sei, e mais difícil ainda porque ele é metido a poeta. Vive me assediando para eu ler o que escreve. Até que me apresentou esse espantalho poético e fui obrigado, por dever de ofício, a ser duro na crítica que lhe fiz.”

Pedro voltou a olhar o professor por cima dos óculos, pedindo licença para acender um cigarro. Licença deferida, uma baforada de fumaça bailou na sala.

“Quanto o senhor já gastou para pintar e repintar seu muro?” perguntou, surpreendendo o queixoso.

“Uns seiscentos reais mais ou menos. Por quê?”

“Então, meu amigo, permita-me um conselho. Como sua queixa envolve um menor, e por isso tem de ser apresentada numa delegacia especializada, e não aqui, por que não evitar maiores transtornos bancando uma tiragem dos poemas do seu aluno? Em papel reciclado não sai caro. Dá uns duzentos reais, numa edição de bolso, só para conquistar a simpatia do jovem vate.”

O professor formatou uma cara patológica, como se fosse ter um treco em plena Chapot Presvot, 272, mas encarou Pedro em silêncio. Em seguida, ergueu-se da cadeira, dizendo secamente: “Vou pensar na sua sugestão apesar de não a ter pedido.” Em passadas largas e duras, que repercutiram nos tacos do assoalho, retirou-se da sala.

O escrivão se recriminou pela proposta que todavia fez com a mais absoluta sinceridade, concluindo que o professor não aprendera nada com a filosofia da caveira humana. Mas agora era tarde. Pedro mandou outra bailarina de fumaça para o ar e chamou a jovem que aguardava no banco de espera.

“Quero fazer uma queixa contra um grafiteiro”, disse ela, revelando na boca os fios metálicos de um corretor dentário, como se fossem freio em mula impetuosa.

“Seu nome?”, perguntou o escrivão.

“Hosana, com h e s.”

“Oh, Hosana!”, exclamou o escrivão, olhando-a por cima dos óculos, “é uma pena que o professor já tenha saído sem tomar conhecimento da sua corpórea existência! Mas queira sentar-se, por favor.”

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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