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A volta da fera ou olho de radar

A má notícia voou da boca de Lenilda, faxineira da delegacia, para as orelhas de Pedro, o escrivão da mesma: – O anticristo voltou!

– A besta 666? – indagou Pedro entendendo que Lenilda se referia ao retorno do delegado Digital depois de um afastamento de três meses para tratamento de saúde.

– Eu ia começar a faxina quando ele passou por mim, picando a mula como se eu não existisse. E veio com as cachorras! – preveniu a faxineira. – Já sobrou pra todo mundo, só falta o senhor.

– Ele que …

Mas o escrivão não conseguiu terminar a frase. Do gabinete de Digital veio a convocação:

– Pedro, faça o favor!

O favor foi feito.

– Sente-se – disse o delegado apontando para a velha cadeira em frente da sua mesa.

Pedro sentou-se e perguntou irônico:

– Sua saúde já sarou?

O delegado escancarou-se numa risada debochada.

– Sarou de quê? Eu nunca estive doente! Foi tudo fingimento para eu ficar stand boy fora da delegacia, cuidando da minha vida privada.

– Privada?! – acentuou Pedro.

– É… Minha vida pessoal… Pensou o quê? – indagou o delegado franzindo a testa suada.

– Pensei privada mesmo – disse Pedro. – E emendou maldosamente: – E essa caixinha com tarja preta, aí na sua mesa, perto do copo d’água, faz parte do fingimento?

– Faz! – disse o delegado pegando a caixa do medicamento e enfiando-a na gaveta. Depois, bebeu de uma goleada, quer dizer, de um só gole, o resto de água que ficara no copo, e disse:

– Mas vamos ao que interessa, porque agora tem macho chefiando novamente este lupanário. Lugar de mulher é na cozinha e na cama, entendeu aonde eu quis chegar? Cozinha e cama!

Pedro limitou-se a abrir a terça parte de um sorriso confirmando o seu entendimento e disse, aproveitando a brecha:

– Não é lupanário, delegado. É lupanar o que você quis dizer.

– Lupanar, lupanário… você entendeu o que eu falei… Mas eu lhe chamei aqui também por outra coisa. A Engrácia, minha mulher, me disse que sábado passado foi comprar uns livros escolares para nosso netinho, esta merda de despesa que todos os anos entope de grana o rabo dos livreiros, e viu você com um grupo de pessoas no fundo da livraria. E ouviu também os comentários em voz alta que vocês faziam aprovando a anulação da licitação dos radares da Grande Vitória, é verdade?

– É verdade – confirmou Pedro. – Por quê?

– Por quê?! Você se esqueceu de que meu irmão é o diretor do departamento de trânsito que promoveu a licitação? Bastaria isso para você evitar os comentários, por uma questão de lealdade a minha pessoa. Seria a atitude correta de um servidor desta delegacia.

– Atitude correta? – reagiu Pedro.  – Atitude correta era a empresa que ganhou a licitação, anulada pela corrupção denunciada pela imprensa, não ter participado dela por ter como sócia a cunhada do seu irmão. Isto é que seria atitude correta!

– Mera coincidência… – grunhiu Digital. – Até porque todo mundo sabe que cunhados não são parentes. Mas por estas e outras, está entendendo, é que eu quero lhe avisar que seu tempo de flozô nesta delegacia acabou com a delegada que saiu daqui. Eu estou por dentro de tudo que o se passou na minha ausência e voltei para botar ordem neste galinheiro, custe o que custar, doa a quem doer. E nem pense em recorrer à proteção dos seus amigos da livraria, onde tem juiz, jornalista e político. Contra essa gente eu dou de sobra o deputado Ribeirinho, líder do governo na Assembléia Legislativa, que é meu amigo do peito.

Pedro não gostou da provocação e novamente respondeu no tom de irritação anterior:

– Você parece que não me conhece, delegado! Eu não tenho o hábito de incomodar meus amigos pedindo favores e proteção. E sabe por quê? Porque eu procuro fazer as coisas sempre da forma certa.

– Se você faz da forma certa, eu faço melhor porque eu faço da forma certeira – rebateu Digital. – E soletrou a última palavra para dar ênfase à afirmativa: s-e-r, ser; t-e-i, tei;r-a, ra! Serteira!

Pedro não podia perder a ocasião e não perdeu:

– Se você pretende agir comigo da forma como soletrou a palavra serteira eu vou ficar incólume à sua ação. – E soletrou enfático: i-n, in; c-o, co; l-u, lu; m-e, me! INCÓLUME, com acento no o.

– Não venha com palavra difícil pra cima de mim – protestou Digital. – O que eu tinha de dizer, disse e repito: estou de olho em você!

– Olho de radar ou de quem vai me observar stand boy? – perguntou Pedro, num contra-ataque derradeiro, lembrando-se de que lera em Hemingway, especialista em safáris, que para matar um leão deve-se atirar nos ossos, e não na carne. Pedro seguiu o conselho e mirou nos ossos do delegado quando fez o disparo.

– Olho de radar e olho de stand boy! – respondeu Digital dando mostra de que, apesar do tiro certeiro disparado pelo escrivão, o leão era… invertebrado.

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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