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Ainda bem

Nos começos de julho, por um tempo extremamente quente, saía um rapaz de um cubículo alugado, na travessa de S…, e, caminhando devagar, dirigia-se à ponte K…

Também vou caminhando, sabendo que sempre me cansei muito andando por esse caminho, por mais devagar que ande. Vou seguindo: “Trago uma coisa para empenhar!” — e puxou de um velho relógio de prata, de algibeira.

Desisto. Há uma força que me inibe de ir adiante na leitura desse clássico de Dostoiévski. Ponho o livro de lado e penso — ainda bem que não sou professor de literatura para tentar explicar por que jamais consegui ir adiante com o Crime e castigo. Estou certo que seria muito difícil. Confessando minha inexplicável ojeriza ao livro, certamente teria que enfrentar as pedradas dos admiradores do russo. Pedradas merecidas, acredito. Mas é assim. Pior que há precedente. Tive outra experiência negativa com Dostoiévski. Nos idos dos anos cinqüenta, Álvaro Barbosa, amigo de Jucutuquara, me apareceu com olhos espantados dizendo que estava lendo um livro espetacular: Recordações da casa dos mortos, desse mesmo Dostoiévski. Álvaro estava longe de fazer pose de leitor erudito. Lia por prazer. Trabalhava como contador de uma firma exportadora de café, a McKinley, uma multinacional. Se dizia que gostava, com olhos esbugalhados e tudo, é porque gostava mesmo. Eu já tinha ouvido falar no russo mas não conhecia nada dele. Quando terminou de ler, o Álvaro me emprestou o Recordações. Comecei a ler sentado à beira da vala mesmo, à noite, à luz dos postes de iluminação. Continuei a ler em casa mas meus olhos não esbugalharam. Até que tentei. Mas nada. Dias depois, devolvi o livro a um admirado Álvaro quando lhe disse que não havia conseguido gostar do livro. Dito o quê, passamos aos outros itens da pauta que, naquele tempo, na vala, entravam pela madrugada a dentro. Me confortou não ter que dizer por que não gostei do livro. Álvaro dispensou o comentário crítico.

Sei que há tentativas de respostas para o fenômeno que não me interessam. Ou pelo menos não me interessam neste momento, sem qualquer sombra de desrespeito por quem o estuda. Mas confesso sentir um alívio por não ser obrigado a explicá-lo. Em outra direção, também não consigo dizer por que o Eça me deu aquela pancada. Que teria sido? O primo Basílio (Episódio doméstico). Lello & Irmão — Editores — Rua das Carmelitas, l44 — Porto. Ano? Não consta mas deve ser l946, por aí. Começa o pobre homem de Póvoa do Varzim. “Tinham dado onze horas no cuco da sala de jantar. Jorge fechou o volume de Luís Figuier que estivera folheando devagar, estirado na velha voltaire de marroquim escuro, espreguiçou-se, bocejou e disse:

— Tu não te vais vestir, Luísa?

— Logo.

Quem poderia imaginar um início tão convencional, doméstico mesmo? E no entanto, no entanto, nas páginas seguintes fui encontrando a maior descoberta, a maior experiência literária de toda a minha vida. Ainda que não tenha que dar razões técnicas, fico me perguntando o porquê desse deslumbramento. Claro, em primeiro lugar, a linguagem que deixava os óculos, o fraque e a cartola de lado e vinha conversar conosco naquela mesa do bar do Guaracy, em Jucutuquara. José Carlos Oliveira morava perto dali mas ainda era muito criancinha e, naquela época, pelo que li mais tarde em suas crônicas, devia estar comprando uma cocada no bar de seu Dudu, que ficava uma porta adiante. Não queria saber de Eça mas dos doces de seu Dudu. Me lembro das cocadas que ficavam num vidro, em cima da geladeira. Enfim, Zé Carlos ficou fora do complô da explosão eciana. Mas então, isso. Por que o Eça me pegou pelo pé? Que teria acontecido de bom naquele domingo à tarde, essa parte da semana que ainda é de descanso mas já pairam no ar as ameaças dos fantásticos do cotidiano? De vez em quando tento levantar as circunstâncias em que se deu a descoberta do Primo Basílio. A mãe teria feito aquele macarrão gostoso na máquina? O meu cachorro Dick já podia ser considerado fora de perigo depois do atropelamento? O Fluminense teria vencido o jogo? Os manacás do beco começaram a perfumar a casa mais cedo? Pode ter sido tudo isso ou nada disso. O fato é que Eça passou a ser um ícone. Jamais me importei com os que diziam que ele não sabia escrever português. Ah, não? Achava também que Machado não fora justo em sua crítica tanto ao Primo como ao Crime do Padre Amaro.

Os estudiosos que o digam: Machado escreveu “Missa do Galo” antes ou depois de ler Eça de Queiroz? Tirem suas conclusões, em qualquer hipótese.

Outro: Cem anos de solidão. Tentei mas não deu. Inexplicável, pelo que pessoas de excelente gosto dizem da obra. Respeito a opinião delas mas a possibilidade de mudança de opinião de minha parte fica para a enésima e uma vez em que tentar ler o romance. Em compensação, Crônica de uma morte anunciada, também de García Márquez, me parece, essa sim, obra de um Nobel de literatura. Há a construção literária de alta qualidade, com achados primorosos como o da barca subindo o rio e o bispo acenando para um povo ribeirinho que o aplaude delirantemente. Mas, para mim, o forte do livro é o espectro do tabu que paira sobre a aldeia e sufoca as iniciativas individuais.

Enfim, diz-se agora que “gosto se discute”. Mais um prolongamento dos tempos de crê ou morre.

Gosto não se discute e ponto final.

[In Novas crônicas de Roberto Mazzini, da “Coleção Gráfica Espírito Santo de Crônicas”, em 2003.]

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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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