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Anotações sobre os Diários das visitas pastorais de 1880 e 1886 à Província do Espírito Santo, do bispo Dom Pedro Maria de Lacerda

Mapa do Rio Doce, de Carlos Krauss, Rio de Janeiro, 1866. Acervo Arquivo Histórico do Exército.
Mapa do Rio Doce, de Carlos Krauss, Rio de Janeiro, 1866. Acervo Arquivo Histórico do Exército.

Foi-nos proposto fazer um comentário enfocando sob ótica geográfica o livro Diários das visitas pastorais de 1880 e 1886 à província do Espírito Santo, escritos por D. Pedro Maria de Lacerda, na época bispo dos Estados do Rio e do Espírito Santo, uma vez que não tínhamos aqui ainda constituído um bispado.

Posso imaginar o trabalho árduo e paciente que foi necessário para a realização dessa empreitada (a produção desse livro), que constitui um documento de alto valor literário e cultural para os pesquisadores do nosso passado. Merecem os melhores elogios todos os participantes da consecução dessa obra, desde a organização e coordenação editorial, a transcrição do original, o estudo introdutório, a edição final do texto, o apoio administrativo e o projeto gráfico. Dito isso vamos, sem mais delongas, aos nossos comentários, que muito longe estão de esgotar o assunto.

O bispo Lacerda não se ateve em seus diários apenas ao que lhe cabia escrever como pastor. Foi muito além. Sendo uma pessoa extremamente curiosa, observadora, bem dotada intelectualmente, não deixou de olhar com atenção, por vezes minuciosamente, tudo o que se passava em sua volta. Constatamos que num curto lapso de tempo ele descrevia aspectos os mais variados nos seus escritos diários. Assim, é muito comum nas suas descrições o registro do número de pessoas presentes nas celebrações; o tipo de pessoas ali presentes, se pardas, negras, índios, se pessoas representativas do local, políticos ou de certa liderança etc. Também não deixava de observar atentamente as inúmeras residências onde se hospedava nas suas constantes e intermináveis viagens, descrevendo tudo o que nelas se encontrava, desde móveis e utensílios os mais diversos, as áreas por elas ocupadas, o terreno onde se situavam, etc.

Nas peregrinações pelos caminhos mais diversos não deixava de observar e procurar aprender, com as pessoas que lhe serviam de guias, o nome dos rios, córregos, lagoas, espécies da flora e da fauna, o que lhe agradava muito saber devido a seu espírito de grande apreciador da natureza, exprimindo pesar pela destruição do meio ambiente pelo excesso de desmatamento em certos locais por onde transitava.

Fez muitas bonitas descrições do meio físico e aqui me permito apresentar apenas três exemplos. Em registro de 17 de agosto de 1880, estando no hoje município de Serra, na freguesia de São José do Queimado, escreve o bispo: “Logo que saí do cemitério fui para a frente da Matriz e dali a olhos nus e a binóculo pus-me a gozar da belíssima e dilatada vista que ali se desfruta. O panorama é arrebatador, e o vigário me disse que outro tão belo não há em toda a Província. Vê-se mui bem ao longe o mar, o monte Moreno, o monte da Penha coroado pelo seu célebre santuário que lhe alveja o cume, as serras que cercam o porto de Vitória, a Ponta do Jucutuquara […] e mais perto o Mestre Alves”. (Ver A propósito do Mestre Álvaro, Coleção Cadernos de História, vol. 6, de nossa autoria, IHGES, 1995).

Em 7 de setembro de 1886, na freguesia do Rio Pardo (Iúna), o bispo descreve com entusiasmo o que aprecia: “…subimos sem cessar por entre esplendíssimo mato virgem, e altíssimos cedros, perobas, jequitibás, etc, e chegamos ao alto. Que beleza! que vasto horizonte! E que lindo céu azulado! Depois de tanto caminhar por mato, sempre com a vista apertada entre frondoso arvoredo, e à sombra, que encanto dilatar a vista por tão amplo espaço, iluminado pelo sol em todo o seu esplendor. Dali se avistam vários montes e serras, mas o que chama a atenção é a serra do Forno Grande que mais se levanta e aproxima do céu.”

Em 1° de dezembro de 1886 o bispo encontrava-se no arraial de São Sebastião, próximo aos rios São Manoel e São João, e então escreve: “Quanto mete dó ver tantas árvores altas corpulentas, deveras gigantescas e tanto arvoredo, tudo derrubado pelo machado e devorado pelo fogo! Que sistema de destruição mas dizem os donos, como fazer, se é mister plantar, e criar gado? Como fazê-lo no mato? Têm razão; mas ao menos não derrubassem tudo e deixassem alguns espaços ocupados por essas florestas belíssimas, que só em séculos se formaram e não se podem renovar senão passados séculos; Quantos anos e anos são precisos para haver outros jequitibás, outras perobas, outros cedros, outros paus d’alhos e outros gigantes do reino vegetal!”

Por esses três exemplos dentre muitos outros se pode constatar como ainda havia naquela época uma verdejante e exuberante mata atlântica cobrindo o território espírito-santense (ver nosso livro: Espírito Santo. Aspectos físicos, anotações, comentários e mapas temáticos, Col. Cadernos de História, n° 44, IHGES 2002). Além das matas é evidente também por conseqüência a presença de cursos d’ água com mais perenidade e maior volume d’ água. Disso decorre ipso facto uma maior quantidade e variedade da própria fauna.

Se o bispo teve oportunidade de deleitar-se nessa visão, imaginemos como ficaram célebres viajantes europeus como Auguste de Saint-Hilaire, o príncipe de Wied-Neuwied, Charles Frederick Hartt e A. F. Biard, dentre outros que por aqui estiveram e que palmilharam por regiões que ainda estavam bem mais conservadas da natureza capixaba!

Saint-Hilaire deve-se ter extasiado ao ver a nossa selva tropical, que era bem mais densa e com uma infinidade de espécies, suplantando em muito a floresta temperada da Europa. Em seu livro Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce, descreve muito minuciosamente o que viu no nosso estado, como neste trecho: “As matas do Brasil por vezes são tão obstruídas de espinhos e cipós que não se poderia penetrar nelas sem abrir caminho a machado… desta ordem são as de Mestre Alvo” (in Costa, R. Brunow, op. cit.). Em “Viagem ao Brasil” o príncipe Wied-Neuwied por sua vez não deixa de encantar-se também quando, próximo a Guarapari, escreve entre outras observações: “…próximo à praia litorânea, alternando com pequenas moitas, ao lado das quais, às vezes se juntam, para deleitar o viajante, trechos de mata virgem. As ramarias tapavam o caminho escuro, ornavam-no árvores majestosas e seculares que tinham os troncos cobertos de um mundo de plantas, e os galhos, de fungos e liquens” ( in Costa, R. Brunow, op. cit.). A mesma ênfase se encontra na magnífica Geologia e geografia física do Brasil, do geólogo canadense Charles F. Hartt, que assim escreveu sobre a floresta de Santa Leopoldina: “As florestas com que as montanhas de Santa Leopoldina são cobertas não apresentam a mesma majestosa aparência das do norte e sul da província …” (in Costa, R. Brunow, op. cit.).

Acrescento só mais um exemplo similar, citando A. F. Biard, que, em sua obra Deux années au Brésil, na parte referente ao Espírito Santo, assim se expressa: “Eu estava chegando finalmente às florestas virgens tão desejadas. Ia ver a natureza quase desconhecida onde nunca passou o machado. Pés humanos nunca pisaram essa terra […] plantas aquáticas escondem as margens, e depois vêm árvores imensas, inteiramente cobertas de parasitas em flor… do alto dessas árvores como cordames de um navio, outros cipós… e a esses cipós se penduravam famílias de sagüis” (in Costa, R. Brunow, op. cit.).

O bispo Lacerda teve oportunidade de apreciar o meio ambiente físico do nosso estado, ainda que não de modo tão espetacular quanto os viajantes europeus acima citados.

Vamos então, agora, adentrar mais sobre o que importa que são as preocupações, as adversidades e as observações deixadas pelo prelado em seus diários.

No registro de 12 de novembro de 1886 há queixas do bispo sobre erros do mapa de C. Cintra e do de Cândido Mendes. Assim é que se expressa ele quando visitava a capela Nossa Senhora da Penha de Santa Cruz, na freguesia do Rio Pardo: “Santa Cruz está à direita do Ribeirão de seu nome que é das cabeceiras do Rio Norte Esquerdo, pelo que se vê quanto está erradíssimo o mapa de Cintra e ainda mais o de Cândido Mendes”.

Vê-se que o bispo se exaspera com o que chama de inexatidão dos mapas por ele manuseados de autoria dos engenheiros C. Cintra e C. Rivière. Também critica o mapa de Carlos Krauss baseado nos trabalhos realizados por A. Pires da Silva Ponte.

Aqui observamos, não para defender nem para desaprovar os trabalhos dos citados engenheiros, mas, apenas, para fazer algumas explicitações que nos parecem de relevância sobre a confecção das cartas naquela época, meados do século XIX. Os mais conhecidos trabalhos cartográficos da época eram principalmente os de Carlos Krauss, Mapa Geral da Província do Estado do Espírito Santo relativo às colônias e vias de comunicação, e o Mapa Geral das Colônias de Santa Leopoldina, Santa Isabel e Rio Novo na província do Espírito Santo; o Mapa do Rio Doce, realizado por Krauss porém baseado no trabalho de Silva Pontes, Arlincourt e outros; e a Carta Geográfica da Província do Espírito Santo, de C. Cintra e C. Rivière.

Como eram realizados naquela época os trabalhos topográficos? O teodolito, a bússola e as correntes de medição eram os instrumentos principais. O teodolito foi inventado na Itália em 1835. Hoje há teodolitos bem mais precisos e inclusive automáticos. Uma vez realizados os levantamentos topográficos, estes eram então submetidos aos que realizariam os trabalhos cartográficos, hoje muito mais elaborados e precisos que na época do bispo Lacerda.

Aqui seria o ponto de apresentar algumas interrogações sobre os trabalhos dos engenheiros que elaboraram os mapas criticados pelo bispo, devido às imprecisões encontradas nesses documentos cartográficos. Entretanto, penso ser mais conveniente apresentá-las no final deste artigo, em forma de questionários; daí terá o leitor oportunidade de fazer um melhor julgamento sobre a confecção dos mapas de que tanto o bispo reclama.

Entre os grandes destaques nos diários de D. Pedro Maria de Lacerda está a questão de limites de sua diocese. Havia muitas dúvidas até onde iria o território de sua jurisdição em relação ao da diocese de Mariana, em Minas Gerais. O bispo recorre assiduamente ao Mapa da Província do Espírito Santo, organizado na Inspetoria Geral de Terras e Colonização e mandado imprimir pelo Conselheiro Tomás José Coelho de Almeida. A execução coube aos engenheiros C. Cintra e C. Rivière, impressa no Rio de Janeiro em 1878 (in Costa, R. Brunow, revista IHGES nº 61). O bispo Dom Pedro acusa muitas vezes nos seus diários erros no aludido mapa. Escreve em 24 de agosto de 1886: “Neste dia andei a tomar informações destas regiões. Quantos erros no tal mapa da província por Cintra e Rivière! E que erros grandes!”

Na p.141 do livro o bispo critica novamente o mapa elaborado por Cintra e Rivière: “Direi de passagem que as muitas ilhas que nesta barra [do Rio Reis Magos] põe o erradíssimo mapa de Cintra e Rivière não são ilhas mas sim parcéis ou pedras de que falei. Daqui é que saíam as pedras para edificação da Igreja e Colégio…” (Igreja dos Reis Magos, acrescentamos nós).

A carta geográfica de Cintra e Rivière foi trabalhada numa escala pequena, em que um centímetro de representação no papel significa uma distância de cinco quilômetros no terreno. Sendo de dimensões muito pequenas as supostas ilhas nem deveriam aparecer representadas no mapa. Ao que nos parece devem ser parcéis ou recifes, conforme aduz o bispo.

Comentando sobre elevações topográficas da região próxima de Nova Almeida, comenta que avistou o Mestre Alves, topônimo naturalmente que lhe informaram. Mas, como dissemos linhas atrás, os topônimos muitas vezes com o passar dos anos podem sofrer modificações. Hoje só é conhecido como Mestre Álvaro (mais detalhes no meu livro A propósito do Mestre Álvaro, Coleção Cadernos de História, vol. 6, IHGES, 1995).

O próprio mapa publicado pelo IBGE [folha SF-24-V-B-1-1-Serra, Esc. 1:50.000 de 1978] denomina o Mestre Álvaro de Mestre Alvo. Vê-se, assim, que a informação recebida pelo religioso não corresponde mais ao que usamos na toponímia atual.

Mapas antigos publicavam, por vezes, assuntos não cartográficos como estatísticas de população em geral, por exemplo: faixa etária do grupo social local; condições sociais da população; número de analfabetos; escolas existentes; notícias históricas de cada freguesia eclesiástica; a lista dos papas desde São Pedro e outros assuntos mais.

Vila de São Pedro do Cachoeiro do Itapemirim (folha SF-24-V-A-V-4)

Quando o bispo estava na fazenda do barão de Itapemirim avistou o pico do Itabira. Não faz menção a que sistema orográfico pertence o Itabira, que o mapa oficial do IBGE de 1978 aponta como pertencente à serra da Cobiça.

O prelado contesta o termo usado, Cachoeiros (do rio São Pedro de Itapemirim), declarando que se devia usar Cachoeiras. Mas, na verdade, não é bem assim. Na nossa modesta concepção Cachoeira designa o conceito de queda d’água volumosa e com desnível apreciável do curso d’água, provocando muitas vezes um som ensurdecedor, dependendo da altura da queda e do volume d’água, enquanto Cachoeiro representa um volume d’água por vezes pouco ou medianamente volumoso, mas com sucessivos pequenos desníveis do leito do rio, correndo suas águas por entre inumeráveis rochas dispersas num determinado trecho da torrente. Aí não há o conhecido estrondo que se ouve numa queda d’água que cai de um declive acentuado como numa cachoeira. Para exemplificar como cachoeiros cito o que ocorre no rio Itapemirim quando corta a cidade de Cachoeiro do Itapemirim. Outro exemplo acontece na cidade de Santa Leopoldina, onde o fenômeno era mais visível antes de serem construídas as barragens a montante do rio Santa Maria.

Estando o bispo na fazenda Monte Líbano, do capitão Francisco de Souza Monteiro, diz o prelado que a propriedade ficava muito próxima do rio Itapemirim, mas como declara que o curso d’água fazia “longo rodeio defronte da casa”, pensamos que não seja o próprio rio Itapemirim e sim um dos vários córregos que vão engrossar as águas daquele rio. Essa declaração de “longo rodeio defronte da casa” dá-nos essa impressão, uma vez que o próprio rio é de extensa largura e seria difícil ter espaço para ali tornar-se meândrico. Daí que pelo mapa do IBGE de 1978, esc 1:50.000, somos mais tendentes a admitir a possibilidade de o referido curso d’água ser um dos córregos que cortam a área de Monte Líbano, como o córrego Monte Líbano, o córrego Lameiro, o córrego Cobiça, etc.

No diário de 12 de novembro de 1887, estando na região do rio José Pedro, o bispo escreve: “O Rio José Pedro e que certos mineiros querem que este seja a divisa das províncias, mas a província do Espírito Santo quer (e tem provas) que a divisa seja pelo próprio veio do Rio José Pedro que não fica muito longe […] o certo talvez e o justo seja dizer que parte do curso superior do José Pedro divida as províncias e que o Quartel do Príncipe (como se chamava antigamente) é do Espírito Santo”.

Mais adiante ainda declara Dom Pedro: “Havia dois Quartéis, como chamavam o posto de algumas praças: um de Minas, outro do Espírito Santo, que é este do Príncipe; e de um outro menos de meia légua. Cada uma destas províncias mandava suas praças. […] Esta parte onde estamos era e sempre fora da província do Espírito Santo sem nenhuma contestação nem pretensão de MINAS…”.

O lamentável velho problema da falta de documentação cartográfica, gerando conflitos de jurisdição, arrastou-se longo tempo entre Minas versus Espírito Santo, até o acerto final de limites, na região chamada Contestado em 1963, através de acordo entre os governadores Francisco Lacerda de Aguiar (pelo Espírito Santo) e José de Magalhães Pinto (Minas Gerais).

Batalhou muito no problema da questão do estabelecimento das divisas do nosso Estado com Minas Gerais, e, ainda, com a Bahia o professor, geógrafo, advogado e engenheiro Cícero Moraes que se destacou sempre nos meios técnico-culturais do Espírito Santo.

Ontem, dia 8 de abril de 2013, data em que se comemora a festa da padroeira do Espírito Santo, Nossa Senhora da Penha, observo coincidentemente que o bispo em 15 de janeiro de 1887 escreve que, saindo do arraial de Nossa Senhora da Penha do Alegre, ouviu de várias pessoas, além do conteúdo publicado pelos jornais da Corte e da Província, que teriam publicado uma graça alcançada na capela do Convento da Penha, em Vitória. Escreve o Bispo: “É o caso de uma mulher há dez anos tolhida, que a muito custo andava arrimada a seu bastão foi orar na Capelinha da Penha e de repente sentiu escorregar-lhe o bastão e o foi apanhar e saiu contentíssima por ser curada e a andar desembaraçada” .

Para finalizar, desejamos acrescentar apenas mais algumas observações. Convenhamos que os diários do Bispo, que hoje constituem um livro, não frisaram propriamente sobre geografia no seu sentido estrito e, sim, sobre o problema encontrado pelo prelado concernente à questão cartográfica. O bispo apenas descreve as paisagens naturais, a topografia, a presença de rios, simples córregos, lagoas, montes, florestas, etc. Não há nenhuma tentativa ou intenção de explicação científica do que ele presenciou. Isso é natural, pois ele não era um profissional para fazer tal tipo de explicitação, nem era esse o seu desejo como percebemos. Apenas permaneceu sempre na exaltação da natureza. Aliás, no seu tempo a Geografia Moderna não havia sido ainda assentada como ciência, o que só aconteceu em meados do século XIX, pelo mérito de “três figuras alemãs do mais alto relevo: Friedrich Ratzel (1844-1904), Karl Ritter (1779-1859) e Alexander Von Humboldt (1769-1859), considerados os fundadores desta ciência. A estes geógrafos atribui-se a fundamentação da Geografia Moderna. “A Ratzel atribui-se a definição do princípio da extensão […] a Ritter coube o melhor entendimento do chamado princípio da analogia ou da Geografia Geral […] o outro princípio, o da causalidade […] foi inserido por Humboldt.” (Cf. Costa, R. Brunow, 2010). Deste modo a Geografia como ciência (e não apenas como conhecimento descritivo) só chegou ao Brasil no século XX. Descrições como encontramos nos diários do bispo não constituem ciência geográfica, mas descrições puras e simples da paisagem física. Mapas ou cartas geográficas não são confeccionadas pelos geógrafos e sim pelos cartógrafos e são usadas como auxiliares nos trabalhos geográficos. Os geógrafos com suas pesquisas fornecem dados científicos em seus trabalhos para que sejam muitas vezes elaborados os mapas. A descrição, repetimos, é um dos elementos que compõem um trabalho geográfico, mas não estaciona ai, tem que ser completada, conforme mostramos linhas atrás.

Em anexo dois questionários

Quanto às cartas geográficas de C. Cintra e C. Rivière

Há que se levar em conta nesse trabalho relativamente aos erros que o prelado aponta nas cartas geográficas publicadas pelos engenheiros C. Cintra e C. Rivière e outros, quanto à região Sul do Espírito Santo:

a) O que foi levantado pelos engenheiros concernente à toponímia e posição geográfica dos rios, córregos, lagoas, morros, vilas, etc., foi baseado em quais documentos: outros mapas ou esboços mais antigos?

b) As informações sobre toponímia de vilas, povoados, vegetação, etc., foram coligidas in loco ou em cartas anteriores ao levantamento de Cintra e Rivière?

c) Até onde as informações obtidas pelos ditos engenheiros foram coligidas junto aos habitantes dos locais consignados nas suas cartas geográficas?

d) Que instrumentos de medição foram utilizados para medir distâncias, altitudes, etc.?

e) Quanto à confecção dos mapas, a impressão das folhas é correta, assim como a plotação dos dados impressos?

f) Os engenheiros percorreram de maneira mais ou menos razoável o território representado nos seus trabalhos?

g) Houve tempo necessário ou ajuda material e de pessoal necessários para que os engenheiros pudessem realizar suas tarefas (recursos financeiros do patrocinador, o governo imperial)?

Enfim, muitas dúvidas existem para que tenhamos o quadro real do que transcorreu na época em que foram realizados os trabalhos de campo dos citados engenheiros. Dependendo das respostas aos quesitos acima os levantamentos para a consecução das cartas geográficas poderiam estar sujeitas a erros.

Quanto ao Exmo. Sr. Bispo, pode-se deduzir, pela leitura dos diários, o seguinte:

a) Sua fonte de informação foi não só de mapas de Cintra e Rivière mas, sobretudo, dos habitantes mais esclarecidos e conhecedores dos locais percorridos, daí chegando às informações pormenorizadas da toponímia dos acidentes geográficos como montes, rios, aldeias, etc.

b) Mas há que ser levado em conta que a toponímia dada pelo povo pode ter sido alterada ou desfigurada pelos habitantes locais e, então, pode-se ter uma denominação que anteriormente não era mais a dos residentes atuais (ou do tempo da passagem do bispo). O bispo levou isso em conta?

c) Outro aspecto que devemos levar em conta são as denominações que Cintra e Rivière devem ter consignado em suas cartas geográficas (nomes de cursos d’água já assentados em cartas anteriores às suas), que podem ter sido cambiadas pelos habitantes da região. Para os riachos ou pequenos cursos d’água só a população local na prática tem a faculdade de nomeá-los.

d) O bispo teve a vantagem, por sua representatividade como era no tempo do padroado – assim pensamos – de palmilhar por mais de um ano as localidades, vilas, povoados, aldeias, permanecendo até por vários dias em fazendas, sempre muito bem recebido, viajando em canoas, cavalgando por longos caminhos, atravessando rios e florestas. Tudo arranjado pelos habitantes locais e pelas autoridades administrativas. Teve tempo suficiente para não só cumprir com suas obrigações eclesiásticas, mas, também, admirar todo o ambiente natural por onde passava decorrente do seu espírito curioso e observador. Não sabemos se Cintra e Rivière puderam ter toda essa oportunidade e ajuda para realizar o seu trabalho.



Referências bibliográficas

BIARD, A. F. Viagem à Província do Espírito Santo. Cultural do Espírito Santo, IHGES.

COSTA, R. BRUNOW. A propósito do Mestre Álvaro. Coleção Cadernos de História, vol. 6, IHGES, 1995.

___. Espírito Santo: Aspectos Físicos, anotações, comentários e mapas temáticos. Coleção Cadernos de História, n° 44, IHGES, 2001.

___. Trajetória da Geografia, Cadernos de Geografia, n° 1, IHGES, 2010.

Folha Topográfica do IBGE SF -24 -V – B- 1 -1 – Serra, Esc 1:50000, 1978.

Folha Topográfica do IBGE SF -24 -H -1 -1 Esc 1:50000, Itapemirim, 1979.

Folha Topográfica do IBGE SF -24 -V -B -1 -1, 1:50000, Guarapari – 1979.


Folha Topográfica do IBGE SF -24 -V -A -V1 -2, 1:50000, Castelo – 1979.


Folha Topográfica do IBGE – SF-24-V-A-VI-4 1:50.000, Piúma e Anchieta – 1979.

HARTT, Charles Frederick. Geografia e Geologia do Brasil. Cia. Ed. Nacional, 1941.

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce. Itatiaia, USP, 1974.

Wied-Neuwied (Príncipe de). Viagem ao Brasil. Itatiaia, USP, 1989.

Ricardo Brunow Costa é geógrafo formado pela UFRJ, tendo vários livros e artigos publicados. Para outras informações, consulte a listagem de pesquisadores. (Para obter mais informações sobre o autor e outras de suas publicações, clique aqui)

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