Voltar às postagens

Antes porém

ANTES PORÉM

Reinaldo Santos Neves
Núcleo de Estudos e Pesquisas da
Literatura do Espírito Santo/Ufes

A princípio, cidadão romano era aquele que nascia em Roma e fim de papo. Lá uma vez que outra, algum corpo estranho era contemplado com o título e equiparado à tribo de eleitos. Foi o caso, sei lá por quê, de um certo Paulo de Tarso, que passaria depois à História como São Paulo. Graças a isso, quando condenado à morte por escandalosas práticas subversivas, teve o privilégio de ser decentemente executado por decapitação, enquanto um tal de Simão Pedro (conhecido, mais tarde, como São Pedro) foi, pelo crime mesmíssimo, pregado numa cruz como mero judeu que era e nada mais.

Mas como o mundo dá muitas voltas, dia chegou em que, por motivos políticos ou quaisquer que fossem, estenderam-se título e direitos a todos os cidadãos do império vasto império. O que se viu então foi cidadão romano de tudo que é tipo, cultura, e cabelo, grande parte sem saber de latim uma só palavra basta.

Mutatis mais ou menos mutandis, é o que ocorre nos dias de hoje em dia no império romano da literatura — mais especialmente no da poesia. Qualquer gato pingado por aí pode ser cidadão desse império. Basta querer. Basta achar que é. Afinal, cada vate capenga (como diria o outro) hoje é seu próprio e principal crítico. Seu próprio e principal avalista.

Restrições, requisitos, peias — nada disso há mais. Rima e métrica, por exemplo, que só serviam para atrapalhar a vida dos poetas por natureza, há muito que foram para o vinagre. Não foi o bastante. Avançou-se mais nas conquistas. Já não é preciso nem, como até pouco tempo atrás, mesmo conhecer com profundidade a língua materna para subvertê-la. Pra que perder tempo? Língua é moeda corrente — todo mundo usa. Vamos logo ao que interessa, que poesia tem pressa — que nem diarréia.

E o conceito de qualidade literária? Já foi também pelo ralo, e já foi tarde. Quantos milhares de poetas inspirados, engajados, verdadeiros mártires da poesia-sem-grilhões, padeceram horrores, nas penas sádicas de críticos pervertidos, por conta dessa abstração, dessa falácia que é o conceito de qualidade literária? Que que é isso, afinal? Puro casuísmo literário engendrado pela classe dominante para condenar à vala comum verdadeiros gênios da poesia.

E agora? “Agora tudo é novo e ao longe nos conduz”, pra citar Fernão Ferreiro. Com a derrocada da qualidade literária, estamos em outra. Nada é bom, nada é ruim: tudo é poesia. Instaurou-se uma nova ordem, que veio para ficar, como a cocaína e o terrorismo: a valetudização da poesia.

Ocorre, no entanto, que até mesmo o que poderia ser visto como a negação da arte poética e o início do seu processo de extinção abre um largo horizonte para uma poesia vital e vitalícia. Mesmo abolidos rima, métrica, discurso articulado, forma fixa e até ritmo, mesmo mantendo-se como única norma o massacre das normas, mesmo levando-se a esculhambação do texto até às penúltimas conseqüências, tal é a capacidade de criação poética do ser humano que, ainda assim, a um passo ou dois do alerta vermelho, há quem produza poemas de se tirar o chapéu por sua evidente elaboração de linguagem (ou antilinguagem) e pela capacidade de renovação, por exemplo, imagética. O vale-tudo vale a pena, se a alma não é pequena.

É o que me parece ser o caso de Sérgio Blank: um caso de alma grande.

Pra começar, a relação de Blank com a poesia é umbilical. Ou, se essa metáfora é chinfrim, tentemos outra: Blank se agarrou à poesia como tábua de salvação do quotidiano naufrágio que é a vida humana. Blank fez e faz poesia como alternativa contra ir a pique.

A rigor, pelos padrões acadêmico-letristas tradicionais, nem estaria ele devidamente credenciado ao exercício da profissão. Não teria direito à carteirinha de sócio-proprietário do Clube da Poesia. O ninho em que nasceu e se criou não lhe legou o interesse pela poesia. Para sua família — toda ela, com muita honra, descendente de imigrantes —, poesia não é coisa que se plante, que se colha, que encha barriga de ninguém. No ambiente doméstico, Blank equivale a um mutante cultural. É um dissidente, como o filhote de Buddenbrook que ignora a tradição burguesa dos ancestrais hanseáticos para se dedicar de corpo e alma a algo tão sem importância como a música.

Seus (de Blank) estudos formais foram, como sóem ser os estudos oferecidos de uns tempos para cá pela escola brasileira, precários — do tipo pegar ou largar. Não teve, tampouco, um puto que lhe orientasse as leituras, que foram aquelas que ele próprio se prescreveu, quase a esmo, dentre os livros em que foi possível deitar olho e mão, sobretudo na condição de rato — rato de bibliotecas.

Em contraposição a essas aparentes desvantagens, porém, Blank tinha os olhos sempre abertos para o mundo em algaravia à sua volta — algaravia que é o tema central de sua poesia —, a comichão do poema em suas mãos e uma sensibilidade que vale por um sétimo sentido.

De onde lhe terá vindo isso? Sabe Deus. Dons como esse caem do céu e batem no coco de um cristão e — plonk! — vai ser gauche na vida, Sérgio.

Fez-se poeta sozinho; por seu próprio esforço; quebrando a cabeça e a cara. Contra todas as probabilidades, inventou-se orfeu. Está aí, poeta feito: self-feito.

A leitura de um poema de Sérgio Blank sempre me deixa uma impressão específica acima de tudo: a de que se trata de um poeta obcecado pela palavra. Ora, direis, não o são todos os poetas de boa vontade? Não nesse nível de furor, de preocupação, de mania: Sérgio Blank é um logomaníaco.

Qualquer poema de Sérgio Blank é um thesaurus léxico. Salta aos olhos a sua opulência vocabular, em contraposição a uma indigência sintática que chega, às vezes, via indiferença do autor, às raias do telegráfico, e até do inarticulado.

O poeta vota à sintaxe, talvez, mais do que uma indiferença: vota-lhe um preconceito. Trata a sintaxe, na melhor das hipóteses, como um mal necessário, um líquido amniótico em que as palavras respiram e vivem. Por isso reduz a sintaxe à expressão mais simples — um fiozinho condutor. A pontuação — esse feijão-com-arroz de qualquer texto — é quase totalmente abolida. Sobra uma vírgula aqui, outra ali — pudera não, num livro com o nome que tem — e travessões pra diabo, num emprego quase desvairado, o que contribui não exatamente pra prejudicar mas pra multiplicar as possibilidades de leitura do texto. Ponto — como também esse hibridismo que é o ponto-e-vírgula — é sinal que sofre uma segregação tenaz: aqui não entra. Os versos de Sérgio Blank, assim, não começam onde começam nem terminam onde terminam.

É tudo flutuante. Tudo sargaço. E nesse mar de sargaços o leitor que navegue como puder. Se vire. Pois se pra bom entendedor meia palavra basta, o que se pode pretender mais? Palavra é o que não falta nos textos de Sérgio Blank.

Sim # 1. Ouso dizer que um poema de Sérgio Blank é uma colcha de retalhos, em que cada retalho — cada palavra — vale tanto, ou mais, que a colcha como um todo; o que autoriza imediatamente, é claro, a chamar essa poesia de gestáltica.

Sim # 2. Com relação ao vasto corpus vocabular da obra de Sérgio Blank, a impressão que me dá é que este poeta se avocou a missão de reescrever o dicionário à guisa de poesia. Repare bem que as palavras-chave dificilmente se repetem de um poema pra outro: só servem, como chaves que se prezam, pra abrir — ou fechar — a porta daquele poema.

Sim # 3. É quase como se só pudessem ser usadas ali e então, e em nenhum outro lugar ou tempo. Seu destino — está escrito — é aquele. Daí o cuidado na escolha da palavra e do contexto. É ali ou nunca.

E por falar em contexto, não há, nos poemas de Sérgio Blank, nada aleatório nem inconseqüente. Esse poeta não faz poema pelo processo de shuffle. Há sempre uma irmandade entre as palavras, revelada pela livre-mas-nem-tanto associação, pela etimologia, pela aliteração.

Este é um livro pequeno. A rigor, pela convenção da Unesco, nem teria Sérgio direito a chamar este livro de livro porque não atende à exigência numerológica das famosas favas contadas: 49 páginas. Mas, pra quem não dá a mínima pra esse tipo de regra, até um só zinho poema de Sérgio Blank, desde que devidamente impresso em separado, pode ser visualizado e recebido como livro, assim como — segundo autoridades mais antigas e abalizadas que a Unesco — pingo também pode ser letra.

Importa é a importância do trabalho. A seriedade com que Sérgio Blank o desenvolve — seriedade que o leva exatamente a publicar um livro com apenas 48 páginas e não 49 nem 1.049, como fazem outros poetas menos talentosos e menos respeitadores do saco alheio. Importa, ainda, a opulência vocabular de cada texto. O inimitável sérgioblankismo do verso. Isso. Esteja certa, leitora, certo, leitor, que poema de Sérgio Blank é coisa tão inconfundível quanto — se me permitem a símile jazzística — o piano de Thelonious Monk ou o clarinete de Pee Wee Russell. Tem a impressão indelével de sua digitália. Tem o selo de suas idéias em ziguezague (pra usar a expressão de Mendes Fradique). Tem o cheiro e a mancha de seu suor. É uma espécie de sudário em que transparece, em marca d’água, o rosto do poeta com seus louros de solidão e azia.

Que são, aliás, seus temas de estimação. A solidão humana e o aziago desespero por ela gerado, o vazio, a falta de valores, ideais, perspectivas — e de fraternidade. Somos todos filhos de Eva — levamos conosco a marca de Caim. Matamos o outro e, matando o outro, matamo-nos persistentemente a nós mesmos.

A obra de Sérgio Blank, portanto, é uma visão koyaanisqátsica do mundo, um tratado de desesperança em que a poesia é a última que morre.

Curiosamente, a expressão dessa desesperança se faz mais contundente pelo vasto manancial analógico dos poemas. Estes poemas formam um diretório de referências extraídas do imenso legado espiritual do homem — cultural e artístico — desde as cavernas de Altamira até as cavernas de hoje.

Uma pergunta subliminar parece pulsar nas entrelinhas dos poemas: como pode o homem, criador de tanta riqueza espiritual, ser a bosta que é e que tende a ser cada vez mais a cada passo que dê pra amanhã?

Esse é o problema. Sua solução se desdobra numa infinita múltipla escolha, em que nenhuma das respostas está certa, e nenhuma está errada.

Não é à toa que uma das palavras-chave destes poemas seja ponto de interrogação.

Sim # 4. Eliot que me perdoe, mas é assim que há de terminar o mundo: nem num sussurro, nem numa explosão; mas simplesmente num — ? —.

Post Scriptum

Mas é uma poesia difícil, esta de Sérgio Blank — alguns direis. Difícil? Como não e por que não? Todo discurso é, por natureza, enigma. Toda comunicação, fadada ao desconcerto. Eu digo alô, você entende adeus. Ele escreve te amo, ela lê me dá. Clamamos inocência; somos condenados.

E a poesia então — a poesia, cuja missão é fazer-se difícil or die, fazer-se charada ou nada — e a poesia então? A poesia existe pra ser decifrada. E decifrada, sim, não pela cartilha do autor, que, mero criador que é, nem conta muito, mas pela cartilha do leitor, que é recriador, e é legião. Que, porque lê, porque se dá o trabalho e o prazer de ler o poema, tem legitimada a sua leitura, a sua interpretação, que, por mais imbecil, nunca será imbecil, mas uma visão a mais, uma versão a mais, dentre tantas ad infinitum possíveis.

E digo mais: nem creio, aliás, que a poesia deva necessariamente ser decifrada pelo modus faciendi acadêmico, lógico, formal, na base do isto é, do ergo, do como dizia Paracelso. Pode-se ler um poema como quem bebe absinto; como quem ouve Pee Wee Russell supramencionado; como quem dedilha os amados cabelos da Outra Pessoa; como quem aspira, lá em cima daquele morro, o aroma de um pé de manacá. Sensoriamente, enfim; e não censoriamente, não.

Taí. Simples. Poesia é comestível, digerível e biodegradável. Elevemos o nível. Poesia é hóstia. Tomai e comei, tomai e bebei, este é o corpo e o sangue — e outras coisas mais — do poeta Sérgio Blank. Lede com fé. Estareis salvos, ainda que por um segundo diminuto, da mesmice que assola Europa, França e Vitória.

[In Vírgula, Cultural-ES, Vitória, 1996.]

———
© 2001 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
———

Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui

Deixe um Comentário