Voltar às postagens

Ao passar da barca

Ao passar da barca
Me disse o barqueiro:
Menina bonita
Não paga dinheiro.
| bis
|
| bis
|
   
Eu não sou bonita
E nem quero ser.
Tenho meu dinheiro
Eu pago a você.
| bis
|
| bis
|
   
Sou a viuvinha
Do conde Loureiro;
Querendo casar-me
Não acho quem queira.
| bis
|
| bis
|
   
Procura na roda,
Torna a procurar.
Só acho fulana
Para ser meu par.
| bis
|
| bis
|

É, sem dúvida, uma das mais bonitas rondas do nosso repertório musical infantil, não apenas pelo sentido da letra, como também pela delicadeza da melodia. Infelizmente, parece-nos, vai-se perdendo entre nós, esta cantiga de roda.

Deve de ter ela origem portuguesa ou ibérica. Júlio Aramburu, folclorista argentino, transcreve, em seu livro El folklore de los niños, alguns versos da cantiga, não porém como ronda. Trata-se de “El caso del barquero”(p. 114):

Al pasar la barca,
me dijo el barquero:
Las niñas bonitas
No pagan dinero.

Segue-se a continuação do “caso”, quem nem de leve nos faz lembrar a nossa roda:

Y al volver la barca
me volvió a decir:
las niñas bonitas
no pagan dinero,
se lo dice, niñas,
este caballero.

No livro de J. Aramburu não se registra a música.

Cecília Meireles (“Infância e folclore”, A Manhã, 14/3/1943) cita como versão espanhola, sob o título “Passarás, não passarás”, quase o mesmo “Caso del barquero” argentino. Também adianta a folclorista patrícia que a música da variante espanhola “é exatamente a mesma que as crianças brasileiras usam, quando cantam ‘Sozinha eu não fico, nem hei de ficar’, estribilho comum a várias cantigas de roda”. Ainda segundo Cecília Meireles, “parece evidente que essa cantiga se inspira na tradição medieval do direito de peagem”.

A letra da Segunda parte da nossa cantiga se assemelha à conhecida ronda espanhola “La viudita”:

Soy la viudita
Lo manda la ley;
Quiero casarme
Y no hago com quién.

(Versão Rodrigues Marin, cf. Cancioneiro popular de Tucumán, de Juan Alfonso Carrizo, I, p. 377.)

Tal semelhança também se observa com a cantiga de roda venezuelana “Arroz com coco” no seguinte trecho do solo:

Yo soy la viudita,
La hija del rey;
Me quiero casar
Y no hallo con quién.

(Folklore venezolano, de R. Olivares Figueroa, I, p. 165.)

Aliás, há dessa “Viudita” uma carioca registrada pelas professoras Iris Costa Novaes, Diva Diniz Costa e Gedir de Faria Pinto, revista por Afrânio Peixoto (p. 128):

Viuvinha,
Da banda d’além
Quer se casar
E não acha com quem.

Com este, sim,
Com este, não,
Há de ser com aquele
Do meu coração.

É de se notar, entretanto, que a música apresentada nessa coletânea não tem a menor semelhança com a de “Ao passar da barca”, lembrando, porém, a melodia com que há dezenas de anos atrás (senão também hoje) se entoavam, no interior de São Paulo, as estrofes da conhecida história da menina enterrada viva pela madrasta, por causa dos figos da figueira. E isso nos leva a novo entrelaçamento de música e letra de cantigas diversas, cuja procedência e evolução muitas vezes é difícil estabelecer.

F. J. de Santa-Anna Nery, em seu livro Folk-lore brésilien, editado em Paris, em 1889, registra à página 23 os versos da “Viuvinha”, em forma que diz ter sido recolhida na Bahia.

É curioso observar que, nessa versão baiana, traduzida para o francês há mais de sessenta anos, aparecem quase exatamente os mesmos versos cantados até hoje no Espírito Santo e no Rio de Janeiro:

Je suis la petite veuve
Des parages de là-bas;
Je veux me marier,
Mais ne sais avec qui;
Avec celui-ci, oui,
Avec celui-là, pas,
Avec celui-ci, oui,
Que j’aime bien.

É pena que Santa-Anna Nery não registrasse também a música de “La petite veuve”, como o fez com “Senhora dona Sancha” e “Caranguejo não é peixe”.

Voltemos, porém, ao nosso “Ao passar da barca”. Essa cantiga, também conhecida como “O barqueiro” ou “Viuvinha do conde Loureiro”, é corrente em vários recantos do Espírito Santo.

Localizamo-la em Vitória, Vila Velha, Itaquari, Cariacica, Manguinhos, Nova Almeida, Santa Teresa, Itarana, Mimoso do Sul, Fundão, Bom Jesus de Itabapoana, Ibiraçu, Linhares, Santa Leopoldina e São Mateus.

Quase todas as crianças cantam: “Ao pássar da barca”, acentuando a 1ª sílaba do verbo “passar”. Variantes de Fundão, Nova Almeida, Itarana e Linhares cantam: “Ao passo da barca”. Em roda cantada em Vitória, por meninas de várias localidades do interior, ouvimos: “Ao pássar a barca”, provavelmente a forma primitiva da canção, idêntica ao “Al pasar la barca” do “Caso del barquero” acima citado.

Outras variantes: “Eu ganho dinheiro / Pra pagar você”, “Eu trago dinheiro / Eu pago a você”, “Não tenho dinheiro e pago a você”, “Não tendo dinheiro…”, “Por Ter meu dinheiro…”.

Na 2ª parte:

Sou a solteirinha
Que vim de Belém;
Pretendo casar
Mas não acho com quem.

Sou a viuvinha
Quem vim de Belém…

Sou a viuvita
Do conde Loureira;
Quero casar
E não acho quem queira.

Sou a viuvita
Do conde Laurita…

Modo de brincar: Cantiga dialogada. Faz-se a roda e, dentro ou fora dela, fica a “viuvinha”. Rodam e cantam a cantiga até “Menina bonita não paga dinheiro”. A “viuvinha” responde, cantando, até “Não acho quem queira”. Segue-se o coro: “Procura na roda…” e, afinal, a resposta da viúva, escolhendo aquela que deve ser o “seu par”. Esta vai, por sua vez, ser a “viuvinha”, repetindo-se a roda até cansarem.

[SANTOS NEVES, Guilherme (pesquisa e texto), COSTA, João Ribas da (notação musical). Cantigas de roda. Vitória:Vida Capichaba, 1948 e 1950. (v. 1 e 2).]

Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

João Ribas da Costa foi professor no interior do Estado do Espírito Santo.

Deixe um Comentário