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Ao som de Tchaikovsky

Tchaikovsky não é compositor dos mais recomendáveis. Convenhamos que algumas de suas peças oferecem mesmo algum risco para alguém em dieta de açúcar. O risco aumenta quando se trata de uma seleção como essa que está tocando agora no rádio. Mas quando entra a introdução do “Capricho Italiano” mando às favas minha própria opinião e a de doutos e eruditos. Mais importante é que, ao soar aquela trompa que vai surfando as ondas hertzianas, entram as vozes de Aly, Ivantir, Luiz e a minha própria, anunciando o antigo programa de comentários e músicas levado ao ar pela Rádio Capixaba e euclidianamente denominado “Contrastes & confrontos”. Entra portanto um pedaço da crônica da cidade onde me instalo para lembrar desse programa que tinha seguramente uns dez ouvintes. Entre eles, nossas mulheres e também minha mãe, que simplesmente considerava o programa perfeito. “Mas, mãe, a senhora não percebeu que não consegui pronunciar de jeito nenhum a palavraperspectiva?” Ela respondendo com a imparcialidade das mães: “Se ouvi, não me lembro. Gostei muito. O programa de hoje foi muito bom.” O mais encorajador é que esta opinião era repetida religiosamente todas as segundas-feiras, quando o programa ia para o ar. Fossem quais fossem suas evidentes falhas. Além das ouvintes citadas, alguns amigos não apenas ouviam como também viam o programa. Ocorre que esses amigos tinham o privilégio de assistir ao programa do próprio auditório da emissora. Na verdade, uma salinha com uns poucos lugares. Esses ouvintes cativos eram Paulo, Manoel, João e Sylvio. Os demais representavam a audiência flutuante formada quase sempre por outros colegas da Faculdade.

O patrocinador do programa era o Linholene, uma toalha plástica que, na época, era uma novidade de sucesso. “Parece linho mas é Linholene…”, dizia o jingle de uma cantora de voz muito aguda. Quando ela começava a cantar, nós, radialistas improvisados, sentíamos um frio na espinha. É que no final do jingle acendia aquela luzinha vermelha e entrávamos nós. No desenvolvimento do programa, ficávamos do aquário do estúdio observando as reações de nosso auditório cativo. Nunca houve um Ibope tão direto. Os pontos negativos eram marcados pelos sorrisos gozadores e os cochichos entre esses nossos jurados.

Mas de vez em quando, mais raramente do que gostaríamos, algum deles levantava o polegar para cima. Nesses momentos nosso Ibope ia às nuvens. Forçoso é dizer que fora desse círculo o programa era solenemente ignorado. Mas isso não impediu que, por ocasião da morte de Hemingway, em 61, fizéssemos um programa com o cuidado de quem tem a responsabilidade de fazer juízos fundamentais sobre o autor de “Três dias de chuva”. Posso imaginar a quantidade de rádios desligados ou de alguém mudando de estação quando um dos apresentadores, muito compenetrado, dizia: “Hemingway, ao ser perguntado sobre isso assim, respondeu…” Mas lembro-me também que nesse dia não pudemos brincar. A morte de Hemingway pesava sobre nós como um velório duradouro. Após esse programa, como sempre fazíamos, junto com nossos ouvintes cativos, fomos sentar num banco da praça Costa Pereira mas ninguém conseguiu dizer nada engraçado. Pegamos nossos bondes e fomos para nossas casas.

Continuo ouvindo esse Tchaikovsky que está tocando no rádio agora. Nesse momento começa o trecho da “Bella ragazza delle trezzi biondi” do tema do “Capricho”.

Meu pai não é muito interessado em música. Ele é um pequeno produtor, seu tempo é muito precioso e precisa ser utilizado de modo a suprir as necessidades de sua família.

Para ele isso é prioritário.

Posso vê-lo reunido com o Schorling (o homem que fez o relógio da praça Oito) na sala-de-visitas de minha velha casa da infância. Estão discutindo como construir um engenho para cortar toras de madeira. A época é a da Segunda Guerra e as dificuldades são grandes. O mercado externo de bens industrializados praticamente não existe e, internamente, pelo menos no interior do Espírito Santo, é impossível conseguir peças para a construção desse engenho. É noite. Meu pai e o Schorling continuam discutindo problemas do funcionamento da máquina. O projeto foi desenhado por meu pai. De repente, o Schorling tem um estalo. Lembra-se de uma sucata de Ford de bigode que está depositada num armazém localizado na periferia da vila. No dia seguinte os dois vão até lá e meu pai faz negócio com essa sucata. Logo depois o Schorling começa a construir o engenho em sua oficina usando esse material. Mais tarde, ao vê-lo funcionando no corte de tábuas que depois se transformariam em mesas, cadeiras e armários, confesso que nunca tive uma sensação tão marcante do poderio da técnica humana.

Mas afinal o que tem Tchaikovsky com isso? Tem. De forma indireta por me fazer recordar de meu pai e de um tempo bem posterior.

Nesse tempo posterior, muitos cabelos brancos depois, meu pai ainda não pôde se aposentar e vai em missão de trabalho para Mimoso do Sul construir uma ponte de madeira.

Ao voltar, um mês depois, traz um presente para aquela ouvinte imparcial de “Contrastes & confrontos”, minha mãe. É um disco de 78 rotações onde, numa das faces, está esse tema de Tchaikovsky da “Bella ragazza” e que faz parte do “Capriccio”.

Não sei bem como terminar estas anotações. Talvez seja preferível dizer apenas que a música acabou e a noite já vem vindo.

[Transcrito de Crônicas de Roberto Mazzini, SPDC/Ufes, 1995.]

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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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