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Arrumando gavetas

O meu amigo Edgar Feitosa, o cronista da cidade da Vitória, está rememorando aspectos da velha cidade em magistrais artigos domingueiros de A Gazeta, jornal de todos nós. Feitosa escreve com alma e evoca dias “idos e vividos” de uma época que não volta mais e não pode voltar mais.

O progresso não tem coração. Porque este tem a lógica do sentimento que não se confunde com aquela, formal, da inteligência.

Blaise Pasqual já disse que o coração tem razões que a inteligência desconhece. Se fôssemos obedecer a esta faculdade humana, Vitória, em 1900, deveria ter sido arrasada e sobre seus escombros se traçar cidade que viesse condizer com seu destino. Mas então as coronárias se enfartariam por fulminante pressão da saudade. Está certo Dr. Moisés?

Todos nós temos apego sentimental ao passado que vivemos. A vida vale pela soma das sensações acumuladas. Os insucessos engrandecem os triunfos e, peço vênia ao Edgar Castro para esta sentença que se não nasceu da inteligência, brotou do coração.

Feitosa está desenovelando a fita gravada, há seis décadas, e a projeta no caleidoscópio de sua sensibilidade, para avivar nossa imagem do passado. É uma piedosa peregrinação que eu acompanho com o missal embolorado de lembranças sentimentais.

Leio meu arquivo. Deparo com o primeiro painel Vila de Nossa Senhora da Vitória, pintado por Augusto Saint Hilaire, quando aportou, em 9 de outubro de 1818, e foi dormir em Jucutuquara, na casa do capitão Pinto Homem de Azeredo, hoje “Solar Monjardim”:

[…] a capital da província acabou por adquirir importância, e, por volta da metade do século XVIII, era considerada uma das principais cidades da América portuguesa (…) O mais belo ornamento da capital do Espírito Santo é, sem contestação o antigo convento dos jesuítas (…) Diante da parte que dá para o mar, há uma espécie de terraço coberto de grama ao qual se chega, vindo da baía, por uma escadaria ladeada por duas filas de palmeiras. Um ‘arctocarpos’ e uma ‘manjifera’, plantados a direita da escadaria e bem entrelaçados contrastam com a simplicidade elegante das palmeiras, pela sua espessa folhagem, e pelos seus numerosos galhos.

Como pintava bem este francês ilustre!

Vejamos este outro tópico:

As ruas de Vitória são calçadas, porém o são mal, tem pouca largura, não oferecendo nenhuma regularidade. Entretanto não se vêem, aqui casas abandonadas como na maioria das cidades de Minas Gerais […] Vitória não está sujeita aos reveses dos cavadores de ouro e sua gente não tem razão de abandonar a terra natal. Cuida-se bem de embelezar as casas. Um número considerável delas tem um ou dois andares: janelas com vidros e lindas varandas trabalhadas na Europa.

Porém Marcos Inglês de Souza, governador da Província em 1882, depois membro da Academia Brasileira de Letras e professor de Direito, não gostou e não trabalhou pela cidade. Em sua fala à Assembléia Legislativa, aconselhou a mudança da capital sem dizer para onde.

Moniz Freire (1896), lastima as condições da cidade não esboça plano geral para atualizá-la. Tenta abastecê-la de água. Contrata com a Companhia Torrens o serviço. Foi funesto este contrato. No passou da construção do reservatório de Santa Clara, do plano da Vila Moscoso e dos terríveis arruamentos da “Cidade de Palha”, hoje vila Rubim, oriunda dos trabalhadores da Estrada da de Ferro Sul do Espírito Santo.

Moniz construiu o Quartel de Polícia e o Teatro Melpômene. Obras estas desaparecidas. Seu eminente engenheiro, Francisco Saturnino Rodrigues de Brito notável urbanista patrício, nascido em Campos, desaconselhou obras no perímetro urbano. Optou por novo arrabalde. Conciliou os interesses do Estado comprometido com a construção da Estrada de Ferro Sul do Espírito Santo. E surgiu o plano da Praia Comprida, modelar, não obstante seus 75 anos de concepção. Só apresenta a lacuna de não ter tratado dos mangues da Ponta Formosa à Ponte da Passagem. São dignos de registro, pela exatidão da locação do projeto e respeito ao alinhamento, os senhores Carlos Frederico da Silva, Joel da Escossia, Wilson Neves Cunha, agrimensores da Secretaria de Agricultura, Divisão de Terras e Luiz Serafim Derenzi, diretor municipal de Obras. Implantara o projeto 20 anos depois, restaurando os arruamentos e testadas dos lotes. Os defeitos surtidos posteriormente(1955-60), (1964-70) correm por incúria das autoridades fiscalizadoras. A divisão do Patrimônio Nacional conspira contra o progresso da cidade, notadamente o da Praia do Canto.

Fez e faz concessões de arrendamentos com atentados frontais ao plano geral. Concede ruas e praças do projeto Saturnino. Legaliza áreas sem o menor respeito aos logradouros públicos. A demagogia de muitos vereadores passados primou em favelar as encostas dos morros que dividem as ruas do bairro elegante da Capital. A Avenida Norte-Sul, antes de ser construída, já ganhou nome de Leitão da Silva, um bonifrate qualquer. Este logradouro, no futuro próximo, terá importância primordial comunicação prioritária da Avenida Vitória à ponte da Passagem. Está toda infectada de favelas nas suas encostas.

Já tem um bairro clandestino: “Tereré”.

A pedreira, sobre cuja aba, se ergue a Escola Politécnica, é um aglomerado de barracos que jamais poderão ser alinhados e servidos de esgoto. Dentro de pouco mais, a remoção destes obstáculos, vai custar mão de obra e paciência de amansar leão.

Jovem e brilhante vereador Manoel Miranda, faço-lhe um apelo: restaure o nome de Avenida Norte-Sul e faça uma lei interditando essas favelas. A denominação dos logradouros públicos deve obedecer a uma pragmática: importância, simbologia, recompensa e tradição nobre. Tempo houve em que se comprava o batismo da via pública, em desrespeito aos honrados merecimentos dos “homens bons”.

Faça a lei distinto vereador, o austero Prefeito a sancionará porque é culto e independente.

[DERENZI, Luiz Serafim. Arrumando gavetas. 1970. Reprodução autorizada pela família Avancini Derenzi.]

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Luiz Serafim Derenzi nasceu em Vitória a 20/3/1898 e faleceu no Rio a 29/4/1977. Formado em Engenharia Civil, participou de muitos projetos importantes nessa área em nosso Estado e fora dele. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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