Umas festas provocavam outras, segundo o gosto e o espírito da época. Brancos e pardos haviam levantado suas bandeiras; os pretos com todo direito hasteavam também a sua. É daí que nasce o estímulo, e seu incentivo produz a atividade, vida do progresso moral e alma de todo o empreendimento.
No Rosário e em São Francisco, por causas que não convém lembrar, para evitar o odioso que jamais alimentaremos, máxime em matéria religiosa, onde deveria ressumbrar[ 1 ] sempre a mais cordial fraternidade, para unidade da fé, estabeleceram-se festas religiosas e profanas, quase as mesmas, com algumas alterações para salientar-se melhor, como êmulas[ 2 ] terríveis no jogo da perfeição e no apregoamento da fama.
Seria vicioso e até amolação repetir esses quadros.
Convém acrescentar que, no adro ou terraço da igreja do Rosário, no dia do levantamento do tradicional mastro, percorria a bandeira com a efígie pintada do santo as ruas da cidade, atirando-se sobre ela das janelas flores e doces secos, os quais, ao fazer grande carga, lançavam-se nas calçadas, por onde a turba dos moleques se arrastava, se acocorava, se acotovelava, se beliscava, para fartar a gulodice!
Bem amargo lhe custava um doce!
O tal mastro era uma gigante peroba ou garabu de nossas selvas, árvores seculares, arrastado, bruto como vinha, pelas ruas, quebrando as quinas, ao qual se prendiam dois cabos de linho, no qual seguravam duas filas de uma multidão numerosa, que o iam arrastando até chegar ao cume da colina em que se assenta o templo.
Fincado e aprumado o mastro, doze negrinhas, pretinhas como azeviche e galantes, tendo por chefe um menino, executavam cânticos ao som de uma viola, acompanhada de uma flauta do (maestro) Alexandre, vulgo Peroá. Feita uma pausa, ou dado um intervalo, cada uma, dando princípio o guia, recitava em honra do santo uma décima, terminando-a por uma longa mesura. Choviam então as palmas…
Darei o modelo de uma:
Numa manhã calmosa,
Deste mês grato e gentil,
Eu colhi de flores mil
Esta cesta preciosa.[ * ]
Achei o cravo e a rosa,
Alecrim, perfeito-amor,
E querendo dar valor
A um ramo tão bonito,
Oferto-o a Beneditino,
Como glória de primor.[ 3 ]
Seguiam-se as outras. Provocou uma delas, em certo ano, muitos aplausos e prolongada hilaridade pela décima seguinte:
Nunca na vida gozei
Um momento mais ditoso,
Mais doce, mais primoroso,
Como agora experimentei.
Apaixonada não sei
Esse gosto explicar…
Acho melhor não dar
A ninguém satisfação…
Prossigamos na função
Que o povo quer desfrutar!
O que nunca me agradou, e enfeava o baile, era o tal guia, um estafermo com a mão esquerda metida entre a abotoadura da jaqueta branca e a direita sobre a ilharga, se requebrando como um boneco desconjuntado e saltando como um macaco! Tinha por cobertura da cabeça uma grande cartola, um verdadeiro cano de vapor, em cuja frente se dependuravam uns brincos velhos de topázio e pedras de cores, que ao longe era um verdadeiro pastel aberto com todos os enchimentos!…
Terminava a função um samba ou lundu, durante o qual, ora se transversando, avançando, retrocedendo, volteando e circulando, todos faziam movimentos obscenos que hoje seriam um insulto positivo à moral e aos bons costumes.
Por ocasião da procissão, em que a imagem do santo se mostrava a seus devotos e à qual acompanhava o Sacramento, ao diante dela ia uma chusma de pretos, tendo por chefe um rei, de coroa de folha de flandres, com espada de pau, acompanhado de ministros mui mal fardados e uma rainha, todos pretos, sob a direção de um estandarte branco, com negros pintados, e marchavam todos, fazendo trejeitos e caretas, ao som de camundás (paus côncavos, em uma de cujas extremidades pregam um couro) que atordoavam os ouvidos desse povo paciente! Não era só esse o instrumento dessa banda infernal! Havia chocalhos, cassacos, paus dentados, e outros ocos, que feriam som, batendo-lhes um mais forte e resistente!
Quanto mais estrondo produziam, mais solene era o festejo!
A meia noite em ponto, quando soava a última badalada do relógio público, que tristes aguardavam, como o escoar da última baga na ampulheta do condenado, o Maneta, Mestre Bino, Mestre Augustinho, Mestre Romualdo, Mestre Bernardo, armados de machados, começavam a golpear o gigante, cantando:
Adeus garabu-pequiá,
Quem não gostar,
Não venha cá!…
Então ouviam-se choro, prantos, soluços e ais!…
Terminava assim a festa! Era em verdade uma mistura do sacro com o profano, do gentilismo com o cristianismo!
Tem sido dificílimo extirpar essas rabugentas antigualhas!
_____________________________
NOTAS
Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto), Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense, Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)