O culto dos próprios santos, os heróis da cristandade, estava sob práticas inconvenientes, e o espírito religioso reduzido a distrações,[ 1 ] licenças,[ 2 ] orgias, que em nada se compadeciam com a sua dignidade e frutos de doutrina moral. A desenvoltura[ 3 ] trazia tédio aos espíritos sensatos e ainda depõe contra a civilização e progresso do século atual. O desleixo, a condescendência e uma condenável indiferença enervam ainda a disciplina de nossos costumes.
Estes partidos — Peroá e Caramuru — foram extremados e acamparam-se até em arraiais diversos, com bandeiras diferentes, para determinar os dois partidos políticos — liberal e conservador, disfarçados pelo caráter religioso.
O padre Inácio Bermude, frade egresso[ 4 ] (todo frade pela natureza de sua constituição e congregação é republicano), levantou essa dissidência que os espíritos não compreenderam!…
Frades não fiz, de frade não preciso;
Quando o mundo souber o que são frades,
Há de acabá-los se tiver juízo…
Estou por isso… Conventos são republiquetas dentro de um mesmo estado!
E as cores? O que me dizem? A azul do peroá quer dizer fidalguia, nobreza, elementos da monarquia — ou o governo de um certo número, designado pela coroa para o ministério público. A verde? Esperança de que vingue um dia a democracia, o governo de todos quantos tiverem direitos de o ser. O governo da igualdade e da liberdade, traduzindo a expressão da natureza, verde no seu aspecto risonho, alimentando por si mesma as esperanças do nosso futuro!
Aqui o espiritualismo puro, o progresso, a vida: ali, o materialismo, o gozo dos sentidos (sensualismo de Epicuro), o retrocesso, a morte!
Eis o que significa Peroá e Caramuru…
Volvamos para um outro lado, e recordemos as cenas que oferecia o teatro da igreja no convento de São Francisco em memória do taumaturgo da Sicília, cujo culto era sustentado pelo partido que ali se erigira, sob a denominação de Caramuru, para diferença do outro, que no Rosário se apelidara Peroá.
As festas religiosas eram as mesmas; algumas alterações se davam na ordem profana.
A iluminação ali, no Rosário, era produzida pelo azeite de peixe e algodão, contidos em tigelas de barro, e algumas vezes nas cavidades de mamões (fruta), divididos em duas partes, extraindo o miolo com suas pevides!
As lanternas eram feitas de sarrafos de madeira, em forma quadrangular, fechadas na parte inferior para assento da vela, que se fincava em um bolo de barro; a superior tinha um orifício para dar entrada ao ar, sendo as três faces fechadas por papel ordinário, transparente, que fingia vidros! Quando o vento era forte, as chamas incendiavam o papel-vidro, e eis tudo às escuras!… Eram pirilampos no espaço ou estrelas cadentes!… As tais tigelinhas se colocavam pelas cimalhas[ 5 ] da igreja, que ficavam todas sujas por causa do corrimento do azeite e fumo!
Aqui, porém, havia gosto e limpeza, devidos a Resendo e Araújo Malta. Aquele, hábil funileiro, artista de inventos, preparava a iluminação em arcos de madeira, com copinhos de cores cheios de azeite doce que alimentava a luz, presa a torcidas[ 6 ] postas em grisetasgrisetas[ 7 ] apropriadas.
Não havia em São Francisco tantas profanações!… O baile das raparigas era mais modesto, reservado e aprimorado.
As poesias tinham mais engenho e graça. Eis uma delas:
MOTE
Só aqui neste convento
Existe minh’alma e vida.
—–
Prazer e contentamento,
Momentos só de ventura
Acha toda a criatura,
Só aqui neste convento:
Neste pio monumento,
Ond’existe a paz contida,
Nesta morada querida,
Onde há só prazeres belos,
Existem os meus desvelos,
Existe minh’alma e vida.[ 8 ]
Palmas, flores, prata, ouro, caíam sobre as dançarinas…
O capitão Fabiano Meireles era o mais pródigo na efusão de seu entusiasmo… Morreu pobríssimo, desconhecido, sendo um rico fazendeiro e de uma distinta família!
Sic transit gloria mundi!
Extrema gaudii luctus occupat.[ 9 ]
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NOTAS
Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto), Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense, Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)