Todavia, como não há feio sem sua graça, nem bonito sem seu senão, quem tinha seu talento e disposições sempre aproveitou alguma coisa. Ali aprendi a ler bem as operações de aritmética (4), os caracteres de bastardo e bastardinho, base e o segundo pavimento do edifício da escrita; a aparar penas, cujo corte e bicos deviam estar em proporção com os traços e tamanhos das letras. Escrevia- se nesse tempo com penas de ganso e outras aves, as quais muito se prestavam para rasgar letras à vontade, sem perfurar o papel nem encontrar embaraços.
Quando os delitos eram grandes, chamava ele o Constantino e João Evangelista, dois cabras robustos, muito vadios, que ainda com 18 anos liam pessimamente, e por eles mandava castigar com duas e três dúzias de bolos o delinquente que, às vezes, ficava sem poder curvar os dedos pela intumescência de suas falanges. Se erravam os bolos, condenava o mestre os dois carrascos a levarem de pé com os potes d’água na cabeça por duas e mais horas!
Dizem que houve ainda uma outra escola — ensino-mútuo —, onde o rigor chegou ao maior requinte! Aplicavam-se ali aos meninos rebeldes e contumazes disciplinas que consistiam em um cabo de pau, donde saíam muitas pernas, como as do polvo, em número de cinco, seis, oito e dez, tendo nas pontas pedacinhos de chumbo, com as quais eram verberados em plena aula, descidos os calções e debruçados em cavalinhos de pau!!!…
Horresco referens!...[ 1 ]
E havia pais tão desumanos que recomendavam ao professor lhes mandasse as unhas dos filhos dentro de um cartucho, quando caíssem pela força dos bolos!
A educação das meninas, sob certo ponto de vista, se achava em embrião. Pouco se tratava da cultura do espírito. Se a leitura para o homem o expunha a incômodos futuros, como o ser jurado, inspetor de quarteirão, subdelegado etc., para a iaiazinha era expô-la aos riscos do namoro, escrevendo e recebendo cartinhas para seu bem amado e lendo livros perigosos, que comprometiam sua honra e inoculavam o veneno da perversão! Lá nisso concordo, salvo algumas exceções!…
Cautela e caldo de galinha não fazem mal a doente…
As moças de então eram mais sisudas… As de hoje são muito travessas!…
Eu cá entendo que a menina deve ser honesta no olhar, no andar, no vestir e falar.
Os antigos educavam a mulher ensinando-lhe a ser reservada, modesta, circunspecta, grave, sisuda, assentada, enfim davam-lhe uma educação toda religiosa que as fazia boa filha, melhor mãe de família, e perfeita matrona de uma geração inteira!
Tinham eles muitíssima razão. Tirai a religião da sociedade, suas leis não repercutem bem o som delas… Arrancai-a do coração da família, e tudo se desequilibra… Olhava-se com horror para o adultério, o perjúrio da mulher e a ignomínia da família.
Não condeno a instrução da mulher, tanto que fui eu o primeiro a levantar minha humilde voz em 1863 para que se criassem cadeiras em todas as vilas da província. Serra e Santa Cruz foram as primeiras que deram o passo para a vanguarda do progresso.
A educação se limitava nas classes baixas a fiar no engenho e fuso, instrumentos bem preparados aqui mesmo na cidade. A seda e o algodão eram os materiais dessa indústria fabril.
Nas classes mais elevadas já se adotava por alguns chefes de família, onde se assentavam escolas (todas particulares), o ensino da leitura, escrita e contabilidade.
A maior e quase exclusiva instrução consistia em trabalhos primorosos de agulha, costuras e rendas de finíssimo gosto. Sentadas todas em esteiras, num salão, era bom de ver essas rendeirinhas trocando os bilros e acompanhando o seu sonolento estalar alguma cantiguinha inocente, como esta:
Santo Antônio de Lisboa,
Espelho de Portugal,
Ajudai-me a acabar
Esta tarefa real,
Que me deu senhora mestra
Para de tarde acabar:
Se eu, pois, não acabar,
Ela me há de castigar.
Cantavam duas adiante, e respondia o coro atrás. Certos meninos ajudavam também, pois alguns pais os mandavam fazer rendas e aprender a doutrina cristã para evitar ociosidade, durante a tarde.
Eram as mestras desse bom tempo a mulher do Antônio Ribeiro, vulgo dos Licores, a Sra. Mocinha, a Sra. Rochinha, a Sra. Joaninha do Coelho, e a Sra. Joaninha de João Pinto Seixas.
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NOTAS
Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto), Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense, Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)