A festa que descrevi era celebrada pelos caboclos também em Reis Magos (Vila Nova),[ 1 ] acrescentando apenas uma circunstância de cobrirem-se os indivíduos com máscaras, não de papelão, como hoje se usa, e sim, o que é muito notável, de cortiça ou pau mole, como raiz de sumaúma, etc. Tive em meu poder uma, cujo artifício muito me admirou! Custava-se em suportá-la, porque a cavidade não era bem arredondada.
O resultado desses festejos era lamentável, especialmente em Nova Almeida; porquanto, além da fadiga que traziam os trejeitos e saltos, ficava o povo em completo estado de embriaguez.
Ali, bem como em Santa Cruz e Linhares, têm os caboclos o costume tradicional de festejarem São Benedito trazendo diferentes imagens em diversos tempos do ano para assistir à sua missa, como dizem eles.
A primeira vinha à matriz a 24 de dezembro por ocasião da festa do Natal, do Riacho; a segunda, no 1,° de janeiro pela Circuncisão do Senhor, da Caieira Velha; a terceira, pelo Reis (Epifania), do Destacamento de Piraqueaçu; a quarta, a 2 de fevereiro (Purificação), do Cachoeirinho.
O santo era guardado com toda a reverência por um grupo comandado por um capitão que, saltando, fazia sinal aos dançarinos para pararem ou continuarem o seu bailado, seguido de uma música infernal, composta de cassacos, camundás, chocalhos e cabaças cheias de grãos de milho!
Os velhos e velhas que dançam chamavam-se negros e negras de São Benedito, e eram votados em mesa anualmente. Ao som dos instrumentos cantavam:
Cali-terendê, eia!
Erê a Tupã, bigá!
Cuman de Pay babá!
Adeus até logo, vou dançar!
Em honra de Deus brincar!
Ao padre vigário vou louvar!
O capitão, dançando em frente da turba, genuflexava à porta da igreja e depois fazia ao santo e às pessoas principais um grande cumprimento.
Gastavam nessa peregrinação quatro dias e retiravam-se embriagados!
Para completarmos o quadro dos jogos festivos que se executam em quase todas as vilas, freguesias e povoações da província, falaremos do baile, chamado de congos, o qual pelo bom gosto das épocas passadas teve lugar aqui mesmo na capital, no ano de 1846, por ocasião da festividade de São Benedito, dos Peroás.
O velho capitão João Crisóstomo de Carvalho, cidadão de inteira probidade, que mereceu com justiça tanta veneração exercendo entre nós legítima influência, para dar maior realce à festa fez vir de Viana o hábil tocador de viola Miguel Boto com rapazes de Piranema — fazenda dos frades carmelitanos, e deu um agradável espetáculo, ali, no terreiro de sua poética chácara, ao povo desta cidade.
Formaram-se os dois grupos ou partidos, um do rei Congo, outro do rei Bamba. Estes reis tinham embaixadores e secretários, que trocavam notas diplomáticas entre aquelas potências, fazendo valer os seus cultos em honra de Deus. Os primeiros eram adoradores do Cristo, e os segundos de Buda.
Traziam os Congos capacetes com penachos escarlates, e os Bambas turbantes à semelhança dos turcos, divididos em gomos, frocados de diversas cores, tendo na frente uma meia lua, de onde saía do centro dos cornos uma pluma branca. Uns e outros vestiam saiotes brancos e curtos cingidos com largo cinto de galão de ouro, de cuja frente pendiam laços presos a uma flor, feita do mesmo galão. Calçavam os Congos coturnos de marroquim vermelho, e os Bambas sapatinhos brancos de cetim, de entrada baixa.
Estavam armados com escudos no braço esquerdo e empunhavam espadas na mão direita.
Nós que somos
Valentes pretinhos,
Para dar bofetões
De quebrar os focinhos!
Retorquiam os Bambas:
Somos soldados
Do rei Maomé,
Matemos a todos
Com um só pontapé.
As notas diplomáticas eram em quadrinhas bem rimadas e chistosas. O Miguel Bolo, ou por si ou por tradição, o que e mais verossímil, compôs esse jogo, que nos deu gostosa distração por largas horas.
A varanda extensa do palacete de João Crisóstomo estava repleta de pessoas de elevada hierarquia e da nata da cidade, de que soube sempre acercar-se, o que lhe deu tanto prestígio!
A multidão foi imensa, a ponto de subirem às árvores, para melhor satisfazer a curiosidade. Um dos galhos do perinheiro, mais próximo ao lado esquerdo do terreiro, não podendo comportar o peso dos corpos, arriou, dando com toda aquela gente pelo chão!
Oh! Que hilaridade! Que assobios!…
Os moleques, que de tudo fazem assuntos, começaram a jogar perinhos sobre o mestre Martinho, que então executava o seu dançado, e interpuseram a quadra seguinte:
Nós todos agora
Com fruta perinho
Demos à morte
O mestre Martinho!…
É de notar que o mestre Martinho de todos era o mais velho, e caiu no ridículo, porque dançava mal, tendo apertado os pés cheios de calos!…
Entretanto a polícia acalmou a tempestade e concluiu-se a brincadeira, embora já os pretos um pouco desconfiados…
Nunca mais voltaram…
Seguiu-se uma lauta ceia em bem servidas mesas 110 próprio terreiro, respirando-se aquele ar livre, embalsamado pelo olor das flores!
_____________________________
NOTAS
Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto), Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense, Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)