Tratando das festas religiosas, presa minha mente a esses movimentos que dão tantas largas às válvulas do coração, desafogo de opressões íntimas, caladas pelas inconstâncias da vida, não posso esquivar-me ao dever que me impus, referindo com todas as suas particularidades a rainha das festas de nossa província, que tem por assunto a Virgem da Penha, assentada no píncaro da mais bela e pitoresca rotunda brasileira.
Um leigo da Arrábida, em Portugal, frei Pedro Palácios, foi o portador desse mimo divino, penhor de nossas esperanças, seguro porto de nossas venturas… A natureza do país, fértil em produções, tinha-lhe de antemão preparado essa simples, agreste, e grandiosa rocha, que representa o Calvário, onde fomos solenemente adotados por seus filhos, entre os preciosos legados do testamento de Cristo, escrito pelas letras de seu próprio sangue!
O convento foi edificado por uma grande força de vontade do seu virtuoso empreendedor, secundada pelo espírito religioso da época em que ele vivia. E preciso examinar bem de perto essa obra, seus fundamentos sobre uma pedra viva e escabrosa,[ 1 ] para calcular a fé que a presidiu e animou.
O elemento mais difícil a haver-se era a água que demora[ 2 ] ao longe e na raiz da montanha. O frade leigo fez levantar junto à rocha uma cisterna, depósito das águas em tempo de chuvas torrenciais. A obra em sua totalidade não Ficou construída, segundo o plano projetado pelo modelo do Bom Jesus em Sintra. A ladeira, tirada pela encosta da montanha, sombreada pelas árvores seculares, deixa em seus diversos termos conhecer que neles pretendia fazerem-se pequenas capelas ou ermidas, para memorarem-se os Passos do Cristo em sua heroica peregrinação nas cruentas horas que precederam o sacrifício sobre o Gólgota. Os intervalos que cortam a sua continuidade deixam prever esse projeto, substituído por cruzes aí colocadas e pela capela do Bom Jesus, que representa aquele último holocausto da vítima inocente.
As casinhas, chamadas do Jogo e a grande do Banquete, tendo no pavimento inferior largos fogões e fornos, mostram as disposições providentes que tomavam os guardiães do convento para agasalhar e sustentar a imensa multidão de romeiros que anualmente vinha de toda a província e de Campos dos Goitacazes pagar à Virgem votos e impetrar novos favores à sua fé eficaz e infalível.
Havia ali, pelo lado do sueste, no fim de uma escadaria que parte de um largo portão, duas fileiras de senzalas, onde conviviam os escravos, doados à Nossa Senhora da Penha.
Os frades antigos, da ordem franciscana, a cuja administração um bispo em visita confiara os bens daquele convento, pela austera e regular vigilância do geral[ 3 ] que quatrienalmente procedia à sindicância de suas contas e dos outros anexos, empregavam muita economia e zelo na sustentação do culto e no movimento financeiro da receita e despesa.
Assim, no tempo de frei Cecília, José do Patrocínio, Vitorino, Gustavo e Valadares, as obras se reparavam, a própria lavoura e pastoreação dos rebanhos prosperavam, fornecendo receita prodigiosa para o equilíbrio de todas as suas finanças.
Festas pomposas faziam o culto da Virgem deslumbrante! Precediam à sua festividade nove noites de hinos em louvor de tão miraculoso Penate,[ 4 ] guia dos navegantes, consolação dos aflitos, tida com justa razão protetora da província do Espírito Santo. Em todas as manhãs, quando as ondas, ainda livres do impulso dos ventos, dormiam em seu leito de verdura, espreguiçando-se docemente, pirogas, escaleres e outras miúdas embarcações transportavam o povo para a antiga cidade de Coutinho, em busca de cômodos[ 5 ] para a festa anunciada, soltando foguetes e ao som de instrumentos.
Na véspera todos os sacerdotes aqui existentes e alguns de fora, [com] música de coro e de barbeiros[ 6 ] ou de porta, eram conduzidos em canoas de propriedade do convento e de algumas influencias maiores da terra, como de José Ribeiro Coelho, comendador Souto e Sebastião de Araçatiba. O clero compunha-se de padre Antunes, padre Ramos, padre Quadros, padre Joaquim Duarte, padre Joaquim, capelão do hospital, padre Santana, padre Sales, padre Fraga, frei Antônio das Neves, padre Brito, da Serra, padre Matias, frei Vicente, padre Souza, de Linhares.
Todos se prestavam[ 7 ] gratuitamente.
O convento e sua igreja achavam-se primorosamente decorados! As portas das celas onde se agasalhavam os reverendos padres eram ornadas com cortinas de damasco escarlate. Em cada uma delas duas camas, decentemente preparadas com aparadores simples, tendo suas serpentinas[ 8 ] e todos os mais objetos necessários à sua economia,[ 9 ] além de vasos de flores.
No aterrado[ 10 ] do convento, desde matinas[ 11 ] tocava a música e no coro harmonioso órgão acompanhava as diversas missas, que principiavam às 4 da madrugada e terminavam às 8 para 9 horas da manhã. Todos os sacerdotes queriam celebrar no altar da Virgem, para gozar os favores que ela exauria dos eternos tesouros nos dias de seus prazeres!
Ao meio-dia faziam os sinos os seus repiques festivos. A música executava as peças de seu repertório e o ar estrugia à detonação das bombas ardentes. Era um brado uníssono, festival, publicando o êxtase de um povo cuja piedade, não podendo mais conter em si, rompia as lavas de seu coração para expandir bem alto o seu entusiasmo religioso.
Daí em diante reinava uma confusão de inocentes prazeres, uma mistura de risos e lágrimas impossíveis de descrever-se! Doentes, arrancados à morte, subiam aquela ladeira, carregados de oferendas — testemunhos de seu reconhecimento.
A noite, iluminada aquela extensa ladeira por fogueiras e às vezes por cabeças de alcatrão, o povo comodamente subia para assistir aos atos religiosos e ao sermão sempre distribuído ao melhor orador sagrado.
À frente da capela, o terraço e as janelas eram iluminados com lanternas de cores.
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NOTAS
Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto), Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense, Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)