Depois das vésperas,[ 1 ] o reverendo guardião convidava o presidente da província, seu séquito, autoridades, clero e música, para ceia na primeira mesa, seguindo-se outras, que se demoravam até meia-noite.
Logo depois das vésperas ardia um variado fogo de artifício, sendo a última peça o retrato da virgem por entre uma brilhante iluminação.
Nestes dias, nestas noites, Vila Velha remoçava. O povo dali pobre, as casas pequenas se fantasiavam para partilhar as cenas neste teatro de tantos quadros risonhos e poéticos. A areia era menos movediça; os pássaros gorjeavam novos acentos; os bosques fluíam a amenidade de fecunda primavera; os astros cintilavam com mais veemência; o sol dardejava com mais intensidade; a lua tinha mais inspirações para os poetas; a natureza toda louçã, e plena de satisfação, vinha por si mesma depositar ao pés de sua rainha suas grinaldas e seus mais ricos florões… Vila Velha era um turíbulo fumegando em chamas ardentes os perfumes de seus encantos e alegrias, para aromatizar o ambiente que cerca o trono de sua Virgem Protetora.
No dia da Penha, muito cedo, esse povo devoto, que ali se aglomerava, subia parte para o convento, para ver dali os primeiros aljôfares[ 2 ] da manhã que reverberam ao saltitar das ondulações majestosas do oceano, esse símbolo das liberdades humanas, radiante espelho onde um Deus mira e se recreia em seus infinitos atributos! Parte vagava pelas praias, colhendo os curiosos despojos que as ondas vomitam de seu seio, em que se ocultam tesouros imensos da avareza humana. A tão agradáveis impressões, um poeta, escrevendo ao longo da praia o nome da Virgem da Penha, viu a onda apagá-lo em um instante por seu arrojado impulso, e compôs o seguinte mote,[ 3 ] que depois glosou:[ 4 ]
Teu nome escrevi n’areia,
Ao pé do vizinho mar;
As mesmas ondas quiseram
Teu nome vir adorar!
Houve um ano (1848) em que as vésperas foram solenizadas com a hora canônica desse nome, tal foi o numeroso concurso de sacerdotes assistentes! Formaram uma colegiada[ 5 ] no coro e, ao som do órgão tocado pelo carmelitano frei Vicente, sal mearam os hinos do poeta rei, que os dedilhava ao som de seu maravilhoso saltério ou harpa divina. Era guardião o estimado frei Valadares.
Em 1844 frei Gustavo de Santa Cecília e Souza solenizou a festividade com tanta profusão, por ser rica a colheita das esmolas, que obsequiou o povo, colocando em cada quina da ladeira barris de vinho para reparar-lhe a fadiga!…
A festa do dia era esplendida! Naqueles corredores o povo regurgitava, e franqueava-se-lhe tudo para seu cômodo. Não sei como o pobre guardião se podia repartir para tantos pontos, para tantas preocupações e afazeres! O que mais o recomendava era a afabilidade para todos e a nímia deferência com que tratava os seus colegas. Sua modéstia chegava ao ponto de ceder-lhes todos os lugares de honra e ir tomai’ o turíbulo, lugar de sacristão, na lesta, a mais solene de seu convento!
Nela orava o mais afamado pregador, e a missa era assistida por oito a dez sacerdotes!
Terminada a festa, tinha lugar o banquete, todo oficial, cuja presidência o reverendo guardião cedia ao presidente da província, tomando ele parte no serviço das mesas. Tudo ali era bem disposto: iguarias, sobremesas, vinhos, eram o produto de riquíssimas esmolas. Trocavam-se muitos brindes em prosa e verso.
Em 1855, quando se concluiu a reparação do convento e capela, o frei Valadares pediu aos convivas que o acompanhassem no brinde que fazia ao padre Antunes pelo sermão no qual assinalara seus serviços. Depois de entusiasticamente correspondido, o padre Antunes respondeu-lhe confirmando o seu juízo e o conceito em que era tido frei Valadares com o seguinte soneto, improvisado:
Bom ministro do ser Onipotente
Exímio guardião em grau profundo,
Salva-te o astro do dia rubicundo,
Que hoje surgiu resplandecente.
Coroa a natureza de contente
Os teus sábios trabalhos neste mundo,
No outro um Deus grato, um Deus jucundo
Louvores te dará num trono ingente.
Doze vezes o astro luminoso
Tua excelsa missão saudou com glória
Neste dia tão grato e tão bondoso.
Gravado fique sempre na memória
O nome de Valadares bondadoso,
Seja ele o farol de nossa história.
Aqui a turba dos campistas abraçou o nosso conterrâneo e o levou, em triunfo, até Vila Velha por entre aclamações.
A noite, pelas 8 horas, tinha lugar o Te Deum ainda com sermão.
Grandeza, pompa, luxo, profusão, nada arrefecia. Ninguém se retirava descontente. Voltavam todos cheios de relíquias, memória de tão saudosos momentos.
Em 1856 teve lugar a festa da restauração do templo, e a própria da Penha. Houve quatro sermões. Foi o supremo esforço, o último adeus da despedida!
Fundearam na baía do Espírito Santo dois vapores vindos de Campos, e o de guerra — Afonso. Nunca houve tanta concorrência de romeiros!…
O movimento festivo durou oito dias, e no último os campistas fizeram por si nova festa da Penha.
Que mutação dos quadros!… Que transição de espíritos!… Que diversidade de opiniões!… Que desencontros de pensamentos!… Que confusão de ideias!…
Os contemporâneos estudem, reflitam e concluam.
Quanto a fé é poderosa para esses lances da vida moral dos povos! Ela é a alavanca da sociedade, o sol da família, a bússola do navegante, o compasso do sábio, o esquadro do artista, o prisma do infinito, o único horóscopo da felicidade humana.
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NOTAS
Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto), Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense, Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)