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Artigo 23

Relevem os leitores, a quem já tenho tanto fatigado pela monotonia de minhas longas descrições, que eu confesse urbi et orbi que sou entusiasta pelos homens, varões e coisas desta minha terra. É uma fraqueza, muito natural, e até da própria idade, quando já estão perdidas as esperanças de se poder a gente inspirar em outros climas, escrevendo impressões de viagem que dilatam o coração e elevam o espírito! Tenho sido um tanto difuso, faltando à regra do mestre Horácio — Esto brevis, etplacebis.[ 1 ]

A delonga é vicio dos velhos…

Multa senem circumveniunt incommoda…
Dilator, spes longas, iners, pavidus que futuri 
Difficillis querulus laudator temporis acti 
Se puero, censor castigator que minorum…

………………………………….Ao velho cercam
Mil cuidados, ou seja porque ansioso;
Tímido e sem ardor; irresoluto
Nos negócios tardo, para tudo inerte
De viver enfadonho e sempre pronto
A queixar-se; só louva o tempo antigo!
                                    (Horácio, Arte poética)

Eis um novo preâmbulo, rodeio, prólogo, exórdio, e até cavaco, segundo as diversas matérias ou assuntos em operações…

É ainda história sobre coisas antigas, sob outro aspecto tão curiosas como as que tenho referido. Antigualhas de muita doutrina, de muita essência, de muito espírito, e que acentuavam mais do que as fantasias do tempo presente; — Facta non verba[ 2 ] — com palavras não se adubam sopas, com gritos não se afinam rabecas… Tinham razão aqueles velhuscos, tão condenados pela moderna![ 3 ] Falavam por sentenças que embasbacavam a gente!

* * *

As nossas igrejas, onde as devoções primavam, possuíam órgãos cujos acentos melodiosos de uma música grave e religiosa acompanhavam a celebração dos ofícios divinos. Nas capelas de São Gonçalo, da ordem terceira[ 4 ] da Penitência, do Carmo, Matriz, e São Francisco, as missas principais de seus oragos eram acompanhadas por variações daquele instrumento, quando a música entre nós não se tinha tanto aperfeiçoado! O mestre Adriano, irmão do Couto, famoso marceneiro, ex-escravo do convento da Penha, adestrado por frei José do Patrocínio, hábil organista, era chamado para todos os atos dessas capelas e igrejas.
Lembra-me bem das emoções que produziam as notas plangentes, abafadas por ocasião do sanctus[ 5 ] quando se principiava o cânon[ 6 ] da missa. Elas traduziam viva e perfeitamente o segredo dos grandes mistérios que se comemoravam no novo sacrifício da lei da graça.

Depois da consumação[ 7 ] desabafavam-se as notas tristes e comovedoras, e um alegro prestíssimo desencadeava umas semifusas que desprendiam a alma daquele abismo em que se mergulhara durante a contemplação da Paixão e Morte do Cristo. Eram os sons alegres e festivos de sua Ressurreição gloriosa!

O próprio cantochão figurado, da missa dos anjos, acompanhado pelo órgão, produzia mais efeito do que todas as novas músicas, cheias de solos, duetos, tirados de Bellini, de Verdi, e das composições profanas de outros autores. O miserere[ 8 ] e o Te Deum tinham magias que arroubavam, retemperando os corações como o fogo o ouro nos cadinhos de sua perfeição. Os pensamentos dos poetas que compuseram aqueles hinos sublimavam-se nas transposições acordes daquele teclado que se movia nas oitavas baixas e altas, como as ideias predominantes daquelas divinas inspirações; ora, querendo alcançar os páramos do céu, ora, baixando para descobrir os segredos nas entranhas da terra.

* * *

Em 1848, a grande custo, desceu o órgão da matriz do coro da igreja para o espaço entre a grade da nave e a da capela-mor, para acompanhar o ofício de trevas na quarta e quinta-feira da semana santa.

Esses ofícios foram os mais solenes, imponentes e grandiosos de todos quantos presenciei aqui na capital.

Funcionaram, como capitulante,[ 9 ] o cônego Antunes, regentes, frei Vicentc e padre Alvarenga, e cantores, padre Fraga, padre Sales, padre Duarte, frei Valadares, Irei José Soares, padre Quadros, frei Antônio, e o sacristão Pinto Homem. Foi um coro cheio, uma colegiada completa!

Em frente à capela-mor colocou-se o candeeiro das trevas, com suas treze velas acesas, em forma triangular, representando a Trindade, centro de luz e vida. As doze velas representavam os doze apóstolos e a do centro, a décima- tcrceira, a figura de Cristo. Iam-se apagando no final dos noturnos,[ 10 ] até que, restando esta, já no fim de laudes[ 11 ] o sacristão, descendo o triângulo, tirava-a e, levando-a acesa, ocultava-se por trás do altar-mor, quando rompiam as trevas, sinal de confusão, ao prender-se o Cristo!

As lamentações de Jeremias, esses trenos[ 12 ] do profeta, pressagiando as desgraças de Jerusalém, eram cantadas ao som dos graves acentos do órgão, inspirando a mais profunda tristeza! A música do major Paula com seu único baixo cantava os responsórios,[ 13 ] e cada um dos sacerdotes feria a antífona[ 14 ] que precede os salmos.

Que acompanhamento soberbo do órgão nas lições e salmos!

O frei Vicente dedilhava com uma rapidez harmoniosa aquele imenso teclado, e supria vozes para o pleno canto. Como eram arrebatadoras aquelas variações, intercaladas ao correr da cantoria! Eram umas engenhosas digressões que se destacavam do assunto principal, deixando um elo na última nota, desprendida, para reuni-la de novo à cadeia, ou ao enlace do canto! Que trinados! Que arpejos! Que transportes! Nada faltava ao valor das notas nem ao tempo dos compassos!
Tudo significava bem a altura e a grandeza dos mistérios cristãos!

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NOTAS

[ 1 ] Sê breve e agradarás.
[ 2 ] Fatos e não palavras.
[ 3 ] Modernidade.
[ 4 ] Ou terceiros — irmandade de leigos vinculados a uma ordem religiosa (franciscanos, carmelitas).
[ 5 ] Parte da missa que se inicia com a repetição tríplice dessa palavra, recitada ou cantada, em aclamação ao Senhor.
[ 6 ] Parte central da missa católica.
[ 7 ] Comunhão.
[ 8 ] A primeira palavra do 51° salmo e esse salmo.
[ 9 ] Oficiante principal.
[ 10 ] Uma das partes do ofício divino.
[ 11 ] Uma das horas canônicas.
[ 12 ] Cantos plangentes, elegias.
[ 13 ] Série de responsos, versículos rezados ou cantados alternativamente pelos dois coros, ou pelo coro e por um solista.
[ 14 ] Curto versículo recitado ou cantado pelo celebrante.

Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto)Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense,  Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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