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Artigo 26

Quando não se dava este incidente, então a coisa mudava de face, estava eu em mar de rosas no meu parreiral!

Reunido à magna concumitante caterva[ 1 ] desempenhava eu meu papel, pois era um bom cabo de guerra.[ 2 ] Sem o tal Chiquinho nada se fazia no meu quarteirão, onde era ele o pater conscriptus;[ 3 ] pudera não!… Tinha venda, oratório, teatro e sineira com bons sinos representados por alavancas ou pés de cabra, e um grande tacho que nos cedera o velho Quadros.

E isso pouca coisa para meninos?! Enganam-se: valem mais do que os tesouros da Cólquida,[ 4 ] e as riquezas de Átalo,[ 5 ] rei de Pérgamo, aquele toleirão que deixou por herdeiro o povo romano!

Como é apreciável aquele tempo em que nem o mais leve cuidado vem perturbar o pleno gozo da mais real e indizível felicidade! Em tudo se descobre motivo para o prazer… Cai-se, risadas; corta-se um dedo, risadas; apanha-se uma sova, risadas; tudo acaba em galhofa!…

Além daqueles chamarizes, ainda linha eu um tambor, uma rabeca, e foles![ 6 ]

* * *

Divertíamo-nos com o anel de salto, que consistia em colocarem-se duas filas de meninos, sem número determinado, em oposição, escondendo um dos chefes delas um anel para descobri-lo o outro. Aquele em que se o achava dava um salto por sobre a perna do último companheiro estendida horizontalmente. Iam assim sucedendo, de modo que o partido vencedor era o que ganhava maior distância pela viveza do chefe em descobrir o anel. Esses saltos, dando movimento ao corpo, era um exercício de ginástica útil à saúde e ao vigor físico. Decidiam por último de seu valor, pegando-se uns aos outros pelas ilhargas, em filas singelas, dirigidas pelos chefes, que se davam as mãos, ferrando-se por cias, para exibirem suas forças, colocada uma cruz no chão, que, na luta de repulsão, evitavam pisá-la. Era do bom de ver o esforço para forçá-los a chegai- ao lugar da cruz, entreabrindo todos as pernas, para fugir à nota de judeu!

Afinal lá um, mais fraco, pisava a cruz, e por ele sofria todo o partido! Então caíam uns sobre outros, bradando: galinha podre, figas, rabo de porco, pé de judeu!

Havia ainda o vilão do cabo. Era uma fila também de meninos, em cujos extremos se colocavam dois chefes, os quais entretinham um colóquio sem sentido algum, perguntando um ao outro: “Vilão do cabo? Cabo, senhor! Quantos queimados tem por lá na minha roça? Vinte um queimados!…” Lá ia essa ponta ou extremo passando por baixo do braço do primeiro, fazendo voltar-se para o lado oposto, cruzando assim os braços, cujas mãos se prendiam aos outros como os elos de uma cadeia. Depois desta evolução, iam todos experimentar a rigidez dessa corda. Caíam sobre o fraco, apupando-o bastante! Havia o tempo-será,[ 7 ] escondendo-se todos, para um outro, que ficava na baliza, ir buscá-los e apanhá-los. Que negaças, que retiradas fingidas, que carreiras, que saltos!… Brincavam ainda o maconguê[ 8 ] que por sua inconveniência os meninos honestos repeliram.

No tempo do verão, quando as brisas do nordeste eram rijas, soltavam-se papagaios do ar. Os lugares das reuniões eram o Campinho, forte de São João, largo da Conceição, praça do Colégio e largo de São Gonçalo.

Em agosto e setembro dominava o jogo dos piões e cigarras, feitas estas de cocos de airi,[ 9 ] escolhidos os mais redondos. Perfuravam-se no vértice das linhas angulares e deixavam-se por dias em formigueiros para as formigas extraírem-lhes o miolo. Colocava-se um pé de pau, e eis a cigarra dançando e cantando; dançando pelo movimento rápido que se lhe imprimia; cantando por efeito do ar, que se introduzia por um buraco aberto no bojo do tal coco. Como nos ajudavam as formiguinhas nessa operação delicada! Pequeninas como nós, parece que interpretavam bem nossos desejos. Durante uma noite trabalhavam com tanto empenho para acabar a tarefa, pois, no dia seguinte, estávamos de cigarra pronta!… Convidavam, parece, toda a vizinhança para se regalarem daquele mimoso p ratinho!

Benditas formigas, scilicet, as ruivas, tão prestimosas.

* * *

De tarde, ao descambar do sol, sob lufadas de uma fresca brisa, a rapaziada juncava-se em grande roda em terreno bem sólido e nivelado para jogar pião.

Só se ouvia: buliu ou não buliu! Vá para a mesa! Resvalou!… Lascou! Rachou!

Para os piões os rapazes enchiam as casas dos mestres: Amorim, na rua do Rosário; Barcelos, na do Piolho; e o Manoel vulgo Minhoca, na do Beco, hoje Sacramento. Para os ferrões punham em dobadoura[ 10 ] o mestre Lúcio, o Tilium, e o mestre Fernande.

Que amolações!. Uns gritavam: “Quero o meu com quinas vivas…” Outros: “Pé redondo, senhor mestre!… Bem pontiagudo! Pé de abrir gusano![ 11 ] Pé de rachar!…” Era uma grita infernal! “Meninos dos diabos! Deixem-me, não me atropelem!” gritava o Lúcio, levantando os óculos ao alto da testa. “Mando já malhar ferro na bigorna, e os espalho todos…” Fogo! Fogo! Voavam os rapazes pela praça da banca velha, evacuando a loja do mestre, onde hoje o José Goulart tem negócio.

Nas noites de Santo Antônio, São João, São Pedro, Santa Ana, além dos jogos de que falei, brincava-se o limão que, bem cantado por vozes sonoras, tem magia que faz um coração pulular de gosto!… Ouvi a duas moças da roça cantar estas quadrinhas que jamais esquecerei:

Tenho visto muitos olhos,
Olhos de minha paixão;
Mas olhos, como os teus,
Meus olhos não viram; não!
Respondia o coro:
Chora, menina, chora,
Chora, porque não tem limão:
O limão anda na roda,
Procura o limão no chão!…
Bão… Bão…
Doce bem, quando teremos
Completas felicidades?
Vivendo junto a teu lado,
Matando tantas saudades?

O coro:

Chora, menina, chora, etc.

Quando terminava o jogo, que se condenavam os erros, o melhor castigo era servir de pedra para bater roupa. Punha-se a gente de cócoras, com o corpo inclinado, esperando que delicadas e carnosas mãos, mãozinhas de veludo, viessem bater e esfregar seus alvos lencinhos nas costas… Que suavidade! Que ambrosias! Que frio não penetrava até a medula dos ossos!… Diziam as mocinhas com voz açucarada: Tenha paciência… o senhor foi o culpado… eu não lhe estava mostrando o limão!… Ó tempos! ó tempos!

O passado não volta!…
Ó doces passatempos, que, em algum dia,
Me dáveis tão amável companhia!

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NOTAS

[ 1 ] Grande chusma de seus seguidores.
[ 2 ] Chefe.
[ 3 ] Senador alistado.
[ 4 ] Região da Asia, a leste do mar Negro e ao sul do Cáucaso, onde, segundo a lenda, os argonautas foram em busca do velocino de ouro.
[ 5 ] Terceiro deste nome, reinou de 138 a 133 a. C., sendo o último governante de Pérgamo, antiga cidade da Ásia Menor.
[ 6 ] Espécie de sanfona.
[ 7 ] Esconde-esconde.
[ 8 ] Espécie de folguedo.
[ 9 ] Palmeira silvestre, brejaúba.
[ 10 ] Neste sentido azáfama, roda-viva.
[ 11 ] Molusco bivalve que cava galerias em madeira submersa.

Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto)Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense,  Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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