Os falecidos dessa moléstia apresentavam um aspecto medonho! Olhos profundamente encovados; mãos e pés hirtos de um frio congelado; cútis toda contraída; queixos cerrados; abdômen e ventre completamente dessecados pela irritação dos intestinos; pescoço, pernas e braços contorcidos; enfim, inteiramente desfigurados! Era horroroso! A última e mais fatal crise manifestava-se por uma algidez penetrante, rouquidão, desfalecimento e vômitos de um líquido transparente e gomoso. Seguia-se um estado comatoso, e daí a morte, que se pronunciava em cinco ou dez minutos!
A colerina cedia a pós de Dower,[ 1 ] pólvora, calda de limão e sudoríficos. Ou então a súlfur e arsênico alternados. Doses homeopáticas.
Com isso salvei-me, achando-me em perigo de vida!
O Aires Tovar, eu e José Francisco, em uma noite tenebrosa, naquele imenso jacapezal de Carapina para Manguinhos carregamos, revezando, uma pesada ambulância[ 2 ] que nos mandara o Dr. Godói, por terem na lida cansado os cavalos! Na pequena freguesia o número dos mortos tocou a cifra de 245!!! E isso em um mês e poucos dias…
O viático[ 3 ] foi transportado para uma casa daquele quarteirão!
Em Piraém[ 4 ] o tenente-coronel Sarmento em uma noite perdeu catorze escravos! Eu, Cirilo, Manoel Augusto da Silveira e Bernardino Araújo fomos testemunhas desse espetáculo desolador!
Foi uma época calamitosa, que mergulhou esta província no caos o mais profundo e nos transportes de dor a mais veemente e acabrunhadora.
Nesses tempos bons ou maus, felizes ou infelizes, como os devem considerar as opiniões emitidas pelo bom senso, ainda se davam práticas supersticiosas, porquanto a ignorância se irradiava em nossos horizontes e [a] ciência não havia franqueado ao povo os pórticos de sua sabedoria.
Tomava-se por causa o que era efeito, por efeito o que era causa; por elemento eficiente, o que não era senão a combinação de agentes que, de comum acordo, produziam um só resultado, e tão íntimo, que somente o estudo pôde isolá-lo. Atribuía-se a uma causa misteriosa o que era natural e, pelas leis físicas, explicável.
A física e a química, penetrando as leis dos corpos, estudando suas propriedades, deu-nos severas lições para o conhecimento pleno da verdade. Novo fiat lux que espancou as trevas de erros tão grosseiros quão vergonhosos para uma geração inteira!
O estudo do organismo humano, suas funções, a sede das enfermidades, seus efeitos, seus sintomas, afugentou e condenou as banalidades com as quais se locupletavam alguns espertos, que fizeram vida folgada à custa da credulidade do pobre povo.
Havia uma classe de vadios, prognósticos, que vendia bem caro a sua buena-dicha.[ 5 ]
Existia aqui uma célebre pitonisa, chamada Vitória Bibi, que preparava arroz doce, vendido nas quintas-feiras, a que se atribuíam virtudes sobrenaturais como a de curar feitiços. Chamava-se arroz do Sacramento!
Homens e mulheres, perdidos pelos excessos da embriaguez e libertinagem, manhosos e vadios, atacados de loucura (deliriam tremens), lá iam consultar a sibila, que lhes aplicava o seu virtuoso arroz! Impingido suavemente esse carapetão,[ 6 ] ia essa sanguessuga chuchando[ 7 ] os cobres dos afetados, que nunca se curaram dos males que lhes afligiam! Habitava a nova profetisa uma loja escura na rua das Flores,[ 8 ] ali junto à casa do nosso patrício Gonçalves Fraga.
Defronte tinha ela uma sua competidora, chamada Chiquinha do Diabo, que se metamorfoseava em pata nas sextas-feiras, pela meia-noite!
Vade retro… eu a desconjuro.
Acreditava-se em sonhos, olhados, ventre caído, espinhelas abertas, mãe do corpo fora de seu lugar, e para tais influências diabólicas iam consultar ao Manuel Cortado, morador na rua da Lapa, que lhes aplicava bênçãos do credo em cruz, dentes de jacaré, anéis de lagarto, banhos de água fria em noites de São João e outras bugiarias que o bestunto lhe sugeria!
Quantos não sucumbiriam, vítimas de tais aplicações!
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NOTAS
Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto), Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense, Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)