A monomania religiosa, a mais perigosa que tenho conhecido, exorbitou tanto que, em 1849, parte do povo de Carapina por ela se sublevou contra o seu legítimo vigário João Luís da Fraga Loureiro!
Em Camburi, quarteirão daquela freguesia, no tempo em que era subdelegado o honrado velho Cirilo Pinto Homem de Azevedo, um indivíduo, atacado daquela moléstia, arvorou-se em padre e arrebanhou para si aquela pobre gente! Sentado em uma poltrona, sempre alcoolizado, tendo na frente de um oratório um copo cheio de aguardente, coberto com um livrinho de Santa Bárbara, sobreposto um ramo de alecrim, dizia missa e era acreditado! O povo de joelhos junto dele, cantando hinos, o julgava inspirado por Deus! Fez casarem-se diversas pessoas, ligadas até por impedimentos dirimentes!!!..[ 1 ]
Sabido o caso, foi o padre preso e recolhido à cadeia. Custou a dispersar-se o povo, dentre o qual muitas pessoas desmaiaram!
A imprensa ocupou-se do assunto e os jornais da corte debicaram o povo espírito-santense! Para nosso desabafo tivemos ali, muito ao depois, as proezas de Juca Rosa.
Esta nossa língua castiga-os bem!
Não devia ser isso estranho para espíritos versados nos acontecimentos da história de povos cultos. Os Mistérios de Paris por Eugênio Sue envolvem muitas capadoçadas…
Os índios são, ainda hoje, inclinados a crer em feitiços, em duendes e fradinhos-da-mão-furada.[ 2 ]
Conheci um velho índio, muito prognóstico, que benzia de malefícios. Fingi- me doente e o fiz vir à minha presença. Pedi-lhe que me benzesse, pois sabia, disse-lhe eu, que ele tinha boas mãos para isso. Enchi-o de elogios e ei-lo em obras. Persignou-se muito mal, colocou-me sobre a cabeça um maço de melão de São Caetano e começou-me a salpicar, em forma de cruz, com água, lançada por um ramo de alecrim. Depois espreguiçou-se, bocejou muito, fazendo horríveis caretas, e resmungou umas palavras incompreensíveis. Colocou-me sobre a cabeça um copo d’água, e disse-me:
“Tem olhado muito forte, misturado com sol dentro da cabeça!”
Ora eu com o sol dentro da cabeça! E essa! E a casa em que me achava, de palha!… Contive a custo o riso, embora o meu companheiro, Pedro Tabachi, se risse estrondosamente! O índio ameaçou-o, dizendo: Não ride, eu tiro o sol daqui e ponho nas vossas cabeças…
“Non! Non! N’accord pá,” retorquiu-lhe Tabachi.
Instei com o índio para que ele me ensinasse o benzimento. Ele o fez, dizendo-me:
Deus é o sol;
Deus é a lua;
Deus é o centro da verdade.
Sai daqui ventosidade…
Senão te dou!…
Esteira velha, canto molhado,
Vai tá-ré, olhado!…
E… e… fiquei bom!
Hoje custaria caro o tratamento. Era uma pândega!
Uma outra vez, pelas 11 horas da noite, despertei ao barulho de rufos de tambores, tiros de espingardas e uma vozearia espantosa! Achava-me numa aldeia de índios.
Levantei-me assustado e indaguei a causa. Era a lua que estava em eclipse! Gritavam todos: “Vovó, acordai, acordai! Vós, dormindo, caís no mundo, matais vossos filhos!” Ri-me a valer e não pude aquietá-los. Cessou tudo depois que a lua iluminou-se, deixando o contato com a sombra, projetada pela terra sobre aquele planeta.
Hoje, qualquer menino explica esse fenômeno, e aqueles outros os discípulos de Esculápio.
Inda hoje, quanto mais in illo tempore, lá pelos sertões de Sauanha, Cachoeirinho, Piraqueaçu, Riacho, Caieira Velha, os índios executavam uma cerimônia, filha de estúpidas crendices, como as que vou referir. Nas noites de Santo Antônio, São João e São Pedro, armam uma rede em um varapau e buscam todo qualquer sujeito que tenha o nome daqueles santos e, depois de umas cantigas muito destoadas, tiradas pelas índias velhas (pois tem eles muito ciúme de suas cunhantains muchachas[ 3 ]) em saudação ou cumprimento à pessoa a quem se dirigem, fazem-no deitar-se dentro da rede e o levam em procissão para o rio mais próximo, e aí o mergulham três vezes com a própria rede, em memória do batismo de Cristo por São João, nas águas do rio Jordão, para não perder a graça do que receberam! O sujeito leva uma garrafa de cachaça para distribuir pelo numeroso séquito que lhe faz as honras, mais atraído por aquela do que por estas, pois, como sabem todos, aquela bebida é para o caboclo elemento principal da vida. O fogo para eles é tudo, com[o para] os discípulos de Pitágoras, Anaximandro e Anaximenes. Tanto é isso verdade que, ao aproximar-se a morte, lançam a mão desse seu único remédio, e aquecem constantemente o enfermo com um grande braseiro que estendem por baixo de uma rede em que logo o colocam, virando-o ora de costas, ora de frente.
Visitei um desses e achei-o nesse estado e bastante tremulento. Perguntei à família, para que embriagavam o doente? Responderam por estas formais palavras: “E para ele não sentir a dor da morte!”
Morto o indivíduo, pranteiam muito, mas com um choro forçado e até ridículo, embriagando-se todos completamente. Os parentes mais próximos cortam, depois de sepultado, os cabelos e os deixam crescer por espaço do tempo do luto.
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NOTAS
Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto), Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense, Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)