Centenares de vidas foram expostas à mercê das ondas, além do Atlântico, sujeitas aos maus tratos; mergulhadas no fundo dos porões dos navios; privadas de luz e ar, respirando auras infectas, para satisfazer o egoísmo de homens que pelo ouro sacrificavam seus irmãos!
Os portugueses, perdidas as esperanças de escravizar os aborígenes, que se achavam sobre a influencia imediata dos jesuítas, lançaram mão desse meio, tão reprovado, para manter a sua negociação e sustentar a lavoura de nosso país. Erro grave, que comprometeu o nosso presente e complica o futuro da sociedade brasileira.
Os escândalos repetiram-se até 1845, em que, dentro da própria fortaleza de São João, se expuseram à venda 200 escravos pelo ínfimo preço de 250$000! Ali pelo Campinho e Porto Velho abriu-se praça para essas vendas! Ainda em 1848 o brigue Feliz Ventura desovou em Santa Cruz grande número desses infelizes! Foram levados para a fazenda que hoje pertence ao Dr. Guaraná, guardados em grande depósito para esse comércio imoral e torpe! José Alves, Rafael e Mota eram agentes e os capitães de bandeiras e seus signatários.
Como desapareceu a fortuna colossal desses homens!…
Ainda nos seguintes anos os navios mercantes, para os quais eram baldeados no alto mar, os transportavam nos porões, feitos pelos lados, estibordo e bombordo, estreitos corredores, onde se os agrupavam a esmo transidos de fome, de sede, acocorados, e donde saíam à noite, distraídos os guardas da alfândega, ou quando entregues a um sono profundo!
O clima do país lhes era favorável; os tratos, porém, o penoso trabalho exigido além de suas forças; e o entorpecimento de suas ideias pela falta de educação; tido por uma raça maldita, o escravo aviltou-se e, como um instrumento cego, representou entre nós o papel de uma máquina bruta, só impelida pela força de uma vontade estranha!
Felizmente o espírito da época, esclarecido pelas radiantes luzes da civilização, levantou o brado uníssono da liberdade em prol desses infelizes que por tanto tempo gemeram, agrilhoados ao bárbaro império da escravidão; verdadeiro atentado ao poder divino; absurdo ante a filosofia, descaridade ante a religião, e o maior escárnio à independência do Brasil. Nossa autonomia não será perfeita enquanto assistir esse cancro que a feia a face da família brasileira no grande quadro das nações cultas!
A cidade da Vitória não ficou estacionária diante do movimento emancipador. Uma plêiade de cavalheiros filantrópicos põe-se a postos na vanguarda dessa luta gloriosa pela liberdade de seus irmãos. A propaganda caminha, faz prosélitos, e a grande ideia está implantada em todos os corações.
Os retrógrados querem sustar a onda… não o podem! É uma loucura esse tentâmen!
Vitória, despe os andrajos de tua pobreza; toma o vestido nupcial no banquete da civilização!…
Terminei a tarefa cujo temerário empreendimento, inspirado por um afetuoso patrício, arriscou-me a grande indiscrição! Não sei se o estilo é próprio de narrações deste gênero; se observei o método prescrito pelas regras da dialética; se guardei ordem; respeitei conveniências… Tenho um gênio sôfrego; por isso a pressa faz imperfeito o meu trabalho e, na associação de ideias, coito longas digressões. É defeito que ainda não pude corrigir, apesar de meio século de vida.
Ambição de escrever, desejos de agradar, glória de corresponder à confiança, tudo isso me exalta, a ponto de esquentar-se a cabeça pela ebulição de ideias que, às vezes, chegam a engurgitar o pensamento! Essas cavas do oceano em que naveguei ora sacudiram-me à superfície das ondas, ora entreabriram-me os abismos de suas profundidades!
Elevei-me algumas vezes, e parece-me que rastejei…
A viagem foi longa, e vi-me quase a soçobrar! Estarei desarvorado? Torci o mastro rendido? As amuradas destabuadas? As vergas desmanteladas? Sendo os mastros reais inteiros, o casco perfeito, fácil será reconstruir o navio.
Dei um testemunho de minha atividade e serviços em graça de um amigo; deitei uma pedra desse lastro custoso no edifício das letras, e consagrei uma memória ao passado, revivendo o quadro, quase apagado, de suas glórias e aventuras!
Peço, portanto, indulgência aos meus leitores, aos quais me confesso agradecido por me terem acompanhado nas folgas dos meus pensamentos, que vão correr o mundo da imprensa, expostos aos comentários e à moralidade dos fatos que sucederam na Vitória através de meio século.
Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto), Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense, Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)