Dando-se uma dissidência cuja causa nunca busquei indagar, formaram os influentes da festa de São Miguel em um ano duas facções, o que deu lugar a levantarem-se dois teatros: um na rua Fresca,[ 1 ] nos fundos que deitam para o mar, e outro na praça do Colégio. Eram seus chefes: João Pinto Gomes Resendo, do primeiro, e Venceslau da Costa Vidigal, do segundo. Com eles dividia-se a turma dos atores — Gomes Neto, Terceira, Cândido de Miranda Freitas, Pai vinha, Luís Paiva, eu, e mais outros sustentávamos a escola do Resendo. Bernardino, Ladislau, Torquato Simões, Bernardo Bastos, Teodoro e outros, a do Venceslau.
Vingamos nós, cá debaixo, as represálias, e era mais numeroso o concurso dos dilettanti.[ 2 ]
Triunfou o partido praieiro e foi derrotado o latino; isto é, o dos estudantes de latim.
Inflamaram-se os brios, e a arte dramática primou na cenografia do teatro, no desenvolvimento do gênio, e no fiel desempenho dos papéis!
O Gomes Neto obteve do repertório dramático do teatro de São Januário da corte peças de muito engenho e aparato, que deram fama ao nosso palco.
Os papéis de centro e principais galãs eram desempenhados por este seu criado, Gomes Neto, Paivinha, Amaro e Emílio da Silva Távora, e Feijó. Eu, ainda menino de 14 anos, era a prima dona, e colhi estrondosas palmas…
Para ridicularizar a fábula da bicha representávamos a nossa coberta de musgo; o Perseu, que era então um chistoso Peixoto, caracterizado de preto, e da mesma forma a Andrômeda, o Cândido Miranda. Quando a bicha lhe saía ao encontro, para devorar a preta, o Perseu bradava com força:
Serpente horrorosa,
Que vieste buscar?
A Chiquinha Cardosa!
Não hás de papar.
Gargalhadas estrepitosas e prolongadas se ouviam dos espectadores!
Como falei no entremez do Dr. Araújo, que foi pela vez primeira levado à cena nesse teatro, com aplauso geral, narrarei, por ideia associada, ainda este evento da festa de São Miguel.
Não baralharei o plano deste escrito, que tem por fim o retrospecto de eras antigas, seus costumes, hábitos, festas, para fazer-se o devido paralelo, tirarem-se comentários e a moralidade que possam sugerir ao espírito curioso e indagador.
A vista disso, permita o leitor que ponhamos em relevo mais uma diversão, nos festejos de São Miguel.
O tal Peixoto, de que falamos, lá pela roça teve a habilidade de ensaiar-se nos exercícios de ginástica, e ei-lo a oferecer-se para dançar na corda bamba e tesa, no largo do Palácio, em 1846. Executou, portanto, ali vários equilíbrios ao som da clássica música do major Paula, o que foi admirado por todos, servindo- lhe de palhaço Venceslau Vidigal. As velhas fechavam os olhos, ou volviam o rosto, dizendo, como a Ana Joaquina, que eram astúcias do diabo, que o homem tinha relações com o porco sujo! Benziam-se, rezavam o credo em cruz, e buscavam água benta para aspergir-se! Isso é uma abusão,[ 3 ] diziam, o homem tem o demônio no corpo! Se existissem hoje, morriam de susto!
Pois se elas criam que o homem se transformava em porco, como o José, hospitaleiro;[ 4 ] as mulheres em patas, como Vitória Bibi, a tia Rosa, Vitória- Peroba, e ainda mais que as barregãs[ 5 ] dos padres viravam-se em cavalos-sem-cabeça comendo pelos quintais folhas de mamoeiro. Com que comiam?!…
Muito pode a ignorância e a porquidade!
Houve um tempo em que as mulheres perdidas iam à Pedra do Bode ter comércio com Satanás!… As audiências com o diabo tinham, como todos os outros sucessos supersticiosos, lugar nas sextas-feiras, dia aziago, e na dita pedra — que está situada por detrás da Fonte Grande — em terras do Dr. Rebelo, ali junto da chácara do Odorico Mululo!
Se, morto um inocente, acontecia que baratas, ratos ou morcegos, na ausência de vigias, durante a noite, roessem os olhos da criança, diziam ter sido as patas e, para esconjurá-las, colocavam junto ao cadáver uma tesoura aberta, em forma de cruz, e um ramo de alecrim ou arruda, tirada das flores bentas no domingo de palmas!…
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NOTAS
Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto), Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense, Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)