Os rapazes pobres, que não frequentavam a escola, iam para a pesca em canoas e redes. Outros aprendiam o ofício de tecelão.
Havia então três teares: um do Silva, na ladeira da Várzea, e dois na rua do mesmo nome, hoje Sete de Setembro — de dois velhos, ambos chamados Batista.
Ali se teciam colchas de fino fio caseiro com emblemas e flores frouxas, redes delicadas e até meias para o uso ordinário das tais botas que estragavam muito as meias finas, de fora.
Tivemos até um sirgueiro[ 1 ] — o sexagenário Eustórgio, pai do Matos, empregado aposentado da tesouraria de fazenda, que tecia, orlava e franjava borlas para chapéus dos clérigos, galões de retrós e seda.
Uma filha muito o ajudava nessa indústria, fiando a seda de nossos bichos, que se alimentavam nas folhas de mamona! Ali pelos quintais do Mulundu[ 2 ] e Palame havia abundância, e se reproduziam admiravelmente, enchendo os jardins de formosas borboletas que esvoaçavam, pousavam e sugavam por suas trombas delicadas os estames de nossas odoríferas flores! Era a natureza se oferecendo espontânea aos olhos e às mãos dos homens para os trabalhos e obras mistas do progresso. O que é a indústria? O amplexo estreito do homem com a natureza, de cujos concursos depende a nossa felicidade, que consiste no estudo e aperfeiçoamento desses poderosos agentes.
Os meninos, imbuídos por esse espírito e práticas religiosas, só cuidavam, durante as horas de recreio, em festas daquele caráter ou em representações teatrais. Armavam oratórios, arremedavam as cerimônias da igreja e, ao lado do templo, nas casas particulares, estava o cenário de Talma.[ 3 ]
Um púlpito, um altar, uma sineira…
Instrumentos de toda a brincadeira!
Coração, espírito e todos os sentidos estavam inebriados pelo fumo do incenso!
Nas noites de Santo Antônio, São João, São Pedro, meninos e meninas nas mais inocentes diversões se entrelinham. Punha-se em jogo o anel de salto, o colóquio do vigário, o alfinete, as sortes da clara de ovo, o segredo, a berlinda.
Assavam-se as batatas nas fogueiras; cozia-se ali mesmo a água para o café; aquecia-se nas brasas o churrasco; bebiam, só os velhos, o vinho das adegas de Antônio Luís e comendador Souto.
Não se davam essas pândegas esbodegadas… essas orgias tempestuosas… esses guinchos estúpidos… essas risadas despregadas… enfim essa soltura… que eclipsam as glórias da proclamada civilização.
Estacionado aqui o brigue Andorinha[ 4 ] para estudar nossa baía, os rapazes começaram a imitar os exercícios de náutica e aparelho. Armaram um barquinho, aparelharam-no, envergaram-no, e eis já outras aspirações, mais arriscadas para o espírito juvenil. Nomearam-se oficiais, pilotos, comissário, rancheiro e toda a equipagem. Eu cheguei a ser primeiro-tenente, imediato do Basílio Emílio dos Santos Leal, que era o comandante.
Ali pela cidade alta outros rapazes montaram uma companhia de caçadores que declarou guerra à nossa marinha! Deram-se encontros, houve tiroteios, mas os nossos bravos Inácio Braga, Teodorico Leal, Sindulfo, Silvério Farias (sobrinho do Abreu Costa), Marinho e a troça do Porto das Lanchas e Capixaba rechaçou o inimigo!… As balas eram as frutas de mamona, e as baionetas grelos de gravatá-pita!
O nosso brigue içava bandeira e sinais; embandeirava-se em cruz; dava salvas, tomando para modelo as evoluções do Andorinha, cuja oficialidade aplaudia-nos.
Na rua de Cristóvão Colombo, antiga Capixaba, os rapazes pelas festas de São João corriam parelhas em cavalos de folha de bananas presas por uma alça que atravessava o ombro esquerdo. Era um pequeno corpo esguio com uma cabeça e cauda de papel em tiras, frisado, que fingia cauda, tendo ao pescoço um guizo. Vestidos de branco, com sapatos de marroquim escarlate, armados de uma lança, corriam uns após outros e, passando por baixo da forca, atiravam o golpe para alcançar as rodinhas de prata e ouro, que dali pendiam.
Terminava a função quebrando o palhaço um boião ou pote que continha melaço, rapaduras e doces diversos. Os moleques famintos caíam sobre o doce e quando, entretidos, satisfaziam a gulodice, quebrava-se um outro pote, cheio de casas de marimbondos, que esvoaçavam, mordendo-os horrivelmente! Risadas, confusão e atropelo eram o desfecho da festa, que se chamava cavalhadas.
Esta última parte cu chamaria cavalada, pois acabava por escoicear tudo!…
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NOTAS
Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto), Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense, Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)