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As cachoeiras pluviais

Cachoeira pluvial. Foto Gilson Soares, 2014.
Cachoeira pluvial. Foto Gilson Soares, 2014.

Quando a barra do dia despontou sobre Barra de São Francisco na manhã daquela quinta-feira, trouxe estampada na lapela uma evidente – e urgente – promessa de toró.

Eu – bem como a cordata magrela – transitava risonho e despreocupado, a caminho da saída da cidade, na primeira hora daquela manhã turva.

Mais de um motivo contribuíam para que eu – como se desdenhasse do pé-d’água que o dia anunciava – exibisse, ali, aquele semblante sereno.
O primeiro é que acabara de concluir, em Barra de São Francisco, o percurso do desenho cartográfico do Torreão Noroeste do Espírito Santo.

E isso, pra minha alegria, tinha se dado com razoável proximidade do que fora previsto no meu esforçado – coitado – projeto de viagem.

No dia anterior, eu tinha chegado a São Chico – depois de romper as últimas fraldas desgrenhadas dos Aimorés – a tempo de deixar exemplares de Minério na Biblioteca Pública Municipal e na biblioteca da Escola Estadual de EEEFM João XXIII.

Além dessa tarefa, digamos, protocolar, tive tempo, ainda, de fazer um solitário passeio noturno por esta cidade que esconde, nos recônditos da sua conformação urbana, um remoto – pueril, mesmo – sentimento de admiração.

Eu, quando criança, gostava de passar por aqui e apreciar esta bela catedral de São Francisco de Assis, pousada num pequeno outeiro no centro da cidade.

Gostava também de ver a praça ajardinada que sempre exibia pequenas árvores torneadas, em diferentes formas geométricas, por algum jardineiro misterioso – e engenhoso – que eu nunca via em ação, nas minhas fugazes passagens pela cidade.

Este passeio noturno ao passado, ofertado por São Chico agora, brindava, então, o desfecho do contorno do Torreão.
O arremate do passeio se deu, claro, na companhia providencial de uma silenciosa (e saborosa) cerveja num botequim francisquense.

Já o outro motivo para o meu cenho sorridente nesta manhã chuvosa é que eu gosto, mesmo, de chuva.

De chuvas.

E como eu já tinha, por precaução, agasalhado com impermeável segurança na garupa da magrela a rotunda bagagem – roupas, livros e utensílios de viagem –, estava, agora, livre para o belo banho ambulante que se me apresentava matinal e gracioso.

Por tudo isso eu, franciscano, ia, ali, sereno – lírico! – deixando pra trás São Francisco.

E olha que, àquela hora, nem me passava pela cabeça o que estava à minha espera: a profusão de cachoeiras altaneiras que iriam saltar aos meus olhos durante toda aquela manhã.

Coisa que há muito tempo eu não via.

Essas quedas d’água, feitas de enxurradas altas que despencam ziguezagueando dos cocurutos das montanhas de pedra, eu as conheço desde outros temporais.

Eram elas que ilustravam com frequência – no anfiteatro que compõe Ecoporanga – minhas sonoras e iluminadas tormentas infantis.

Entre estrondos e relâmpagos, as enxurradas deslizavam pelas montanhas de granito que circundam, ali, o vale do rio Dois.

E depois se jogavam por despenhadeiros escuros, feito efêmeras cachoeiras brancas e esguias.

Como estas que agora, pedalando pela manhã de uma quinta-feira invernosa, eu via.

Que dia!

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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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