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As cristas dos Aimorés

Mapa da Província do ES, 1856 - Biblioteca Digital Luso-brasileira
Mapa da Província do ES, 1856 – Biblioteca Digital Luso-brasileira

O que os primeiros cartógrafos a serviço da Coroa informaram – com suas linhas de fácil leitura e com seus desenhos que descrevem topografias e hidrografias evidentes – é que os cocurutos dos montes alinhados ao longo desta serrania, por onde passo, é que estabeleciam os limites a oeste do território do Spirito Sancto.

Isto é: a linha demarcatória da divisa entre esta província e a das Minas Geraes teria que ser desenhada pegando, de crista em crista, a sucessão de montanhas que compõem a Serra dos Aimorés.

Assim, todas as águas que vertem para leste seriam águas capixabas. Bem como as terras que compõem os seus respectivos vales, desde as cumeeiras desta cordilheira fronteiriça.

O desenho esfrangalhado com que o Torreão Noroeste é retratado agora é resultado de disputas que se resolveram, ao longo da história, ao sabor da força política nacional dos contendores e das, por algum tempo, recorrentes escaramuças locais.

Nosso estado que, sempre teve pouca representação no conjunto que se constituiria federativamente, foi estrepado amiúde.

É o caso, por exemplo, do que aconteceu quando a riqueza que era arrancada das minas gerais começou a se esgotar. Os mineiros, em diáspora, vieram se bandeando pra este lado de cá, até acharem anchos nacos devolutos deste vilão farto, na virada da Serra.

Aí, ali, as fronteiras se moveram.

Os geógrafos e historiadores – disponíveis numa superficial navegação inquiridora pela rede – acabam de ensinar pra este ciclista aprendiz que as fronteiras – econômicas, políticas, culturais – são móveis, sim.

E por conta do movimento delas, os limites, as divisas – geográficas – também se deslocam.

No realinhamento, geralmente, há tensão.

Neste confronto quem sai – quem saiu, aqui – perdendo é o nativo que sempre esteve ali ou o agricultor que chegou, plantou suas raízes e dali colhia o seu sustento.

O nativo, a sua cultura e a sua língua foram dizimados, extintos.

O homem do campo foi expulso pra uma nova fronteira agrícola ou pra periferia de uma grande cidade.

Os donos do poder se abraçaram num pomposo encontro oficial, assinaram papéis e brindaram ao final.

Os novos donos oficiais das terras – os de sempre, confortavelmente instalados – aplaudiram.

Agora era só revisar os mapas e o seu desenho informativo.

Ao fim das contas, incontestável leitor, o que a cartografia de agora tem para nos oferecer é este Torreão escalafobético.

Não há o que discutir.

Assim, obedecendo ao que está escrito ali, ao descer esta Serra margeando o Ariranha, já estamos – eu e a indiferente magrela – entrando, de novo, em território mineiro.

Depois de uma jornada ao meu passado mais remoto – e de um almoço frugal – em Barra do Ariranha, cheguei no meio da tarde a Mantena.

A cidade, sonora e colorida, me recebeu numa atitude festiva.

O que não era de se esperar.

Naquela tarde de quarta-feira, 11 de junho de 2014, em que eu vinha ainda buscando chão para retornar de uma visita à infância, o comportamento da fronteiriça cidade me surpreendeu.

Mantena, capital não só do município, mas de todo o grupo de pequenas cidades que estão no território deste visível enclave mineiro que entorta, ali, o Torreão, também abriga algumas das minhas lembranças infantis.

Mas o que me chamou mesmo a atenção e merece registro foi o brado festivo com que a cidade veio ao meu encontro.

Por conta das cores, do ritmo e da retumbante sonoridade com que me deparei, atribuí logo aquela ambientação à expectativa para a Copa das Copas, no Brasil, que começaria no dia seguinte, 12 de junho.

Por isso elegi, imediatamente, Mantena como A cidade mais Festiva daquela Copa brasileira.

Claro que eu tinha que considerar que chegava ali no dia que antecedia a tão esperada data de abertura dos jogos. Mas mesmo assim, aquela festa exuberante e com visível chancela oficial, superava em muito, tudo o que eu vinha vendo até então.

Assim, já tinha destinado a Mantena o título – e o prêmio! – pela sua distinção entre os municípios que compunham o roteiro daquele meu Giro pelo Arco Norte Capixaba.

Afinal, considerar que Mantena possa estar num terreno invadido, não podia ser motivo para negar sua superioridade no quesito alegoria pra Copa das Copas.

Só depois de anunciar o resultado – pra mim mesmo, o único sabedor do concurso – é que fui informado de que, embora paramentada no estilo torcida organizada, o que a cidade estava comemorando mesmo era o seu aniversário de fundação, que acontece no dia 13 de junho, depois de amanhã pra quem, como eu, passava por ali naquele dia 11.

Os mantenenses, deduzi então, vibravam naquela tarde de quarta-feira rotineira é com a divertida – e rara – oportunidade de antecipar a festividade natalícia da sua cidade.

Informado disso, retirei educadamente a medalha que acabara de lhe outorgar; fiquei por ali um pouco tentando, em vão, identificar por baixo da sua roupa festiva algum aspecto da cidade esquecida na infância; assisti, bem abrigados – eu e a pretinha –, à passagem de uma rápida e volumosa chuva que chegara das brumas do inusitado; e, finalmente, piquei a mula – quer dizer, o camelo para o território oficial do Espírito Santo, no caso, Barra de São Francisco.

É lá que eu tinha combinado com a pretinha que íamos, sossegados e pacíficos, dormir.

E foi lá que dormimos.

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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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