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As meninas

A cidade inteira se reuniu, no cemitério, no morro atrás da Matriz. O velho Dr. Nunes estava sendo sepultado. Os quatro advogados da comarca, que o conheciam de fama, falaram ao pé do túmulo, exaltando-lhe a figura de magistrado, pai, cidadão, homem de bem.
“O Dr. Pelópidas Nunes é exemplo para a Justiça Nacional,” afirmou, com ênfase, o Dr. Cardoso, o mais jovem e falante dos causídicos locais, que nem conhecera o falecido.
Pois, na verdade, muita gente pensava que o velho juiz aposentado já havia morrido há muitos anos. Certa vez que ele, aos noventa anos, fora a uma reunião de magistrados, na Capital, a surpresa fora geral.
Na cidade, só viam à janela de sua casa “as meninas”, três, depois duas, a esta altura velhas também.
Terminou a cerimônia fúnebre. Cada qual procurou seu rumo. O atual juiz falou, ainda, às três senhoras enlutadas:
— Estou à disposição para apressar o inventário, e o que mais quiserem…
Desceram as três a ladeira, com seus pesados trajes negros: Maria José, Maria do Carmo e Maria Ângela.
Na ativa, o velho juiz reinara na comarca por mais de vinte anos. Viera viúvo do Rio Pardo, com fama de durão. E era. Recusou todas as promoções. Queria formar as três filhas professoras e pensava em casá-las com filhos dos prósperos fazendeiros de café.
Os filhos dos ricaços, entanto, iam para o Rio estudar medicina e voltavam (se voltavam) casados com moças da cidade grande.
Ninguém era suficientemente bom para casar-se com as meninas do Dr. Juiz. As colegas de escola se casaram, com bancários, funcionários públicos, pequenos comerciantes.
O pai vetava todos os possíveis pretendentes:
— No mínimo, um promotor público…
Anginha, a caçula, começou a namorar um caminhoneiro.
— Nunca. Não consinto. Só depois que eu morrer. Não vou rebaixar minha família. Ainda por cima ele é um curiboca…
A mocinha, escudada em sua maioridade há muito alcançada, fugiu com o namorado. Com o tempo, ele montou a próspera empresa Transportadora Reis, que está, hoje, com uma frota de mais de cem caminhões, três filhos sadios e muito dinheiro no banco.
O velho juiz nunca perdoou à filha.
Sua casa era em frente ao fórum, construído em meio a uma praça. Mesmo aposentado, da janela ele dava ordens aos serventuários:
— Ô Espinoza, leve-me esta carta ao correio… É para o presidente do Egrégio Tribunal…
— Ô Ademar, compre um quilo de carne para mim.
Era sempre atendido, quem foi rei…
Os novos juízes faziam-lhe uma visita de cortesia e nunca mais voltavam, enfadados com o seu monocórdio “No meu tempo…”
Maria José, a Zezé, diploma debaixo do braço, fora nomeada para o grupo escolar local.
Durante 25 anos ministrou aulas na cidadezinha, nem muito brilhantes, nem detestáveis. Os meninos e meninas tinham medo dela, que herdara o autoritarismo do pai.
Maria do Carmo, a Carmita, não trabalhava fora. Em casa, era pau para toda obra: cozinhava, arrumava a casa, fazia as compras, e tomava conta do pai que já dava sinais evidentes de esclerose. Às vezes ele a confundia com sua falecida esposa:
— Gilu, Gilu, vem cá meu bem…
— Papai, que modos são estes…
Com paciência, dava-lhe banho, fazia-lhe a higiene pessoal, considerava-se, a despeito do amor que dizia dedicar ao pai, uma infeliz sacrificada. Quando Zezé se aposentou as duas se revezavam na guarda do velho, trabalho difícil, porém necessário e quotidiano.
Mas Zezé sonhava mais que ajudava, pois passava horas lendo romances de amor, ou a relembrar um pequeno namoro que tivera, quando jovem, com um caixeiro viajante que se hospedava no Hotel da Estação, e que rompeu o proposto noivado, intimidado pelo velho juiz.
Naquele ano, o governo atrasou seis meses os pagamentos, e as meninas, sem que o pai soubesse, apelaram para a irmã caçula e proscrita.
Logo, logo, uma Kombi expressa da Reis trouxe mantimentos, dinheiro, e um pedido para trazerem os netos pra conhecer o avô, ainda lúcido, o qual, terminante e peremptoriamente, se recusou a receber seus descendentes.
Desceram as três irmãs a ladeira em seus vestidos negros, e o vento da tarde estava agradável, um grande sol se punha para os lados de São Miguel.
Ângela, em casa, lamentou que o marido estivesse em São Paulo, comprando novos caminhões, e os filhos estudando nos Estados Unidos. 
— Só sinto que ele não tivesse me perdoado… Velho casmurro, nunca vi igual. Tanto que eu podia fazer por ele… e por vocês…
Carmita desabou num sofá. Pegou um leque. Abanou-se. E disse:
— Graças a Deus estamos livres do pai…
— O quê?
— Pois é, eu matei o pai. Já não aguentava mais sua caduquice. Botei veneno no chá dele, quando Zezé foi à coletoria receber o dinheiro das aposentadorias… Deu um soluço só e morreu como um passarinho… Fiz bem, não? O próprio pai vivia dizendo “eu quero morrer”, não?
As irmãs olharam-na estarrecidas.
— Está completamente louca…
Internaram-na numa casa para idosos no sul do Estado, tudo com muita discrição.
Zezé foi morar na Capital do Estado, num pequeno quarto e sala, duas quadras da mansão da irmã, com quem refez a amizade há muito interrompida.
As “meninas” e seu pai juiz são fantasmas na lembrança dos velhos moradores da cidade. Sua casa foi demolida e deu lugar a um edifício de seis andares, pomposamente chamado Office Center Juiz Pelópidas Nunes.
[Reprodução autorizada pelo autor.]

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Renato Pacheco foi importante pesquisador da história e folclore capixabas, além de escritor, com vários livros publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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