Voltar às postagens

As vinhas da ira ou mulher à beira de um ataque de nervos

Sábado, manhã de agosto, um começo de verão despachando o falso inverno capixaba pela porta dos fundos. De repente, um entrevero irrompe no meio da livraria Logos, na Praia do Suá.

“Isto é um absurdo!” disse a mulher, num brado adamastor.

Não era nem alta nem baixa, nem gorda nem magra, nem bonita nem feia, nem jovem nem velha – em suma, liberdade à imaginação para compor a personagem que liberava os primeiros vinagres da ira, naquela manhã em que o veranículo de agosto chutava o traseiro do inverno capixaba para além do trópico de Capricórnio. Havia perguntado o preço do dicionário do Houaiss e, quando a atendente informou, giganteou o berro.

“É por isso que brasileiro não tem o hábito da leitura! Podem fazer quantas bienais do livro quiserem que não dá para comprá-los pelos preços que são vendidos! Os livros didáticos então, nem se fala! É uma vergonha! Um país que precisa incentivar a educação e os livros para os estudantes custando os olhos da cara! E na cara do governo! Um governo que não é capaz de nomear um ministro da Educação que preste. Ainda bem que os livros da Internet vão acabar com este mercado negro, com esta ciganagem de editoras e livreiros!”

“A senhora me desculpe, mas eu não posso fazer nada,” disse a  atendente toda atrapalhada.

“É óbvio que não pode,” replicou a nem alta nem baixa.  “Mas também não precisa dizer isso como se tivesse me tocando da livraria…”

“Mas eu não a estou tocando…” explicou a atendente, sentindo a situação complicar-se. “Jamais me passou pela cabeça…”

“Passou sim,” cortou a nem gorda nem magra, alteando a voz vários decibéis na escala Ritcher. “Eu sei que pensou! Eu notei claramente pelo modo que você falou. Além de querer me cobrar um preço abusivo por um dicionário, praticamente me mandou às favas porque não tenho condição de comprá-lo. A senhorita me impôs uma dupla humilhação.”

No fundo da livraria, o grupo de amigos que ali se reúne aos sábados, perto do balcão do café, interrompeu sua diletante conversa prosaico-provinciana em torno do que prosaico-provincianamente desse e viesse (ou seja, em torno de nada e de tudo), para se concentrar na diatribe da nem bonita nem feia. Coincidência ou não, a nem jovem nem velha percebeu que estava sendo observada e, fisgando um dos integrantes da roda com o olhar de facada, perguntou à atendente, enquanto apontava para Pedro:

“Aquele ali não é escrivão de polícia?”

“É sim senhora,” rendeu-se a atendente entregando Pedro sem dó nem piedade.

“Pois então vou falar com ele” disse a nem velha nem alta partindo em direção à rodinha das conversas provinciano-prosaicas para o que desse e viesse.

Pedro estava sentado, de cigarro nos dedos, perto da porta que dá acesso ao banheiro dos fregueses, um verdadeiro “quartinho” que fica na área externa da livraria, onde mosquitos costumam fazer domicílio, dizem as boas línguas que domicílio intelectual. Por se tratar literalmente de um beco sem saída, o atacado Pedro ficou à mercê do furibundo assalto da nem alta nem gorda.

“O senhor viu o que aconteceu?” perguntou a nem gorda nem baixa vis a vis com o escrivão, sem nem sequer dar bom dia às demais figurinhas do grupo.

Apesar de escrivão de polícia, Pedro é antes de tudo um gentleman. Creio até que a frase merece retoque: mesmo sendo escrivão de polícia, Pedro é antes de tudo um gentleman. Razão pela qual respondeu calmamente à nem baixa nem magra:

“Para ser sincero, não vi direito…”

“Mas o senhor ouviu?” corrigiu-se a nem magra nem bonita, contrapondo-se à evasiva de Pedro.

Pedro olhou para o beco sem saída do banheiro e teve de reconhecer:

“Ouvir, eu ouvi, porque a senhora excedeu-se no tom de voz”.

“Excedi-me, uma vírgula! O que eu fiz foi reagir ao agravo de que fui vítima.”

“Tudo bem, minha senhora. Mas o que tenho eu a ver com isso?” perguntou Pedro, não mais tão gentleman como antes.

“O senhor não é escrivão de polícia? Pois quero lavrar uma queixa contra a livraria” disse a nem bonita nem velha (e Pedro teve a impressão de ver o vinagre da ira escorrer pelos cantos da boca da nem velha nem gorda).

“Se é isso que a senhora quer, apareça na delegacia que eu a atenderei,” respondeu o escrivão achando que estava encerrando o assunto com a nem gorda nem feia estacionada desafiadoramente no limite do seu cigarro.

“Não, meu caro! Eu quero lavrar a queixa aqui e agora. E quero invocar o testemunho dos presentes nesta mesa para a injúria que sofri,” retumberrou a nem feia nem alta.

Antes que Pedro dissesse qualquer coisa, Grijó agitou-se na cadeira e sapecou a martelada:

“Se a senhora está contando com o nosso testemunho pode ir tirando o cavalinho da chuva…”

“Quem é este senhor?” perguntou a Pedro a nem alta nem magra sem se intimidar com o corpanzil de quem a aparteara.

“Este senhor é o meu amigo Francisco Grijó Filho, um dos fundadores da confraria que se reúne aos sábados nesta livraria”, respondeu Pedro, cheio de orgulho e coragem cívica, vibrando com o marketing que fazia.

“Diz pra ela que eu não sou flor que se cheire,” interveio Grijó.

Pedro, porém, conteve o amigo com uma ligeira pressão em sua perna, e disse:

“Deixa que eu resolvo o caso.” E dirigindo-se a nem magra nem jovem explicou: “Minha senhora, não é por ser escrivão de polícia que tenho de atender às pessoas em qualquer lugar em que estejam. Aliás, como escrivão eu só posso atender na delegacia.”

“O senhor está querendo é fugir da sua responsabilidade. Para mim escrivão de polícia é policial. E policial tem a obrigação de atender os cidadãos onde os cidadãos precisarem de atendimento. Sou até capaz de apostar que o senhor tem carteirinha de policia no bolso,” rebateu a nem jovem nem baixa.

Inconformado com o que s vo na conversa Fernando Achiam velha eacabara de ouvir, Michel Minassa resolveu interferir com seu explosivo estilo verborrágico, envernizado de juridicidade.

“A senhora precisa compreender que numa sociedade organizada há padrões de conduta que têm de ser observados. Um escrivão de polícia não é a mesma coisa que um policial. O escrivão atende na delegacia e o policial fora da delegacia. É assim que o sistema funciona.”

A nem baixa nem feia encarou seu novo interlocutor e disse:

“O senhor parece até um adevogado falando. Mas como não pedi sua opinião, faça o favor de ficar com o pé fora da conversa porque….” mas não conseguiu terminar a frase pois, neste instante, chegavam Silvio Folli e o cronista Roberto Mazzini, quase de braço dado.

Já avisado pela funcionária da livraria do “quiprocu” reinante, Silvio aproximou-se disposto a apaziguar os ânimos, educado e gentil.

“A senhora está precisando de alguma ajuda?”

A nem feia nem velha olhou-o de cima em baixo e contratorpedeou:

“Quem é o senhor?”

“Diz pra ela quem você é,” embedelhou-se na conversa Fernando Achiamé.

“Modestamente eu sou o dono da livraria,” respondeu Silvio, sem tremer a voz.

“O senhor é o dono…?” perguntou a nem velha nem baixa, como se não acreditasse no que os seus ouvidos ouviram, nem no que os seus olhos viam.

“Pode não parecer, mas é o dono mesmo …” confirmou Roberto Mazzini, concluindo a frase com sua característica risada ultrassônica.

“Pois se é o dono chegou na hora porque estou querendo lavrar uma queixa contra a sua livraria,” investiu a nem baixa nem bonita.

“Queixa por quê?” perguntou o dono na defensiva.

“Porque fui humilhada duplamente: primeiro, pelo preço exorbitante do dicionário do Houaiss que a livraria está cobrando; segundo, porque fui desconsiderada por sua funcionária por não comprar o dicionário.”

“E agora esta senhora quer que eu registre a queixa contra a livraria aqui na livraria”, acrescentou Pedro, esboçando um sorrisinho sardônico.

Neste ponto da narrativa é bom que se frise que se Pedro é um gentleman, Silvio é um diplomata. E foi à sua diplomacia suíça que ele recorreu na tentativa de encerrar a situação constrangedora que envolvia a livraria e seus amigos.

“Vamos fazer o seguinte, minha senhora. Eu a convido para tomar um cafezinho e ainda lhe dou de presente o dicionário do Houaiss. Está bem assim?”

“Em absoluto,” reagiu a nem bonita nem jovem. “Esta proposta me ofende novamente. Pensa que eu não vi o risinho de superioridade debaixo do seu bigode? O senhor está querendo me engabelar com uma proposta que considero outra humilhação. Não entrei nesta livraria para ganhar livro de esmola. Vim comprar dignamente um dicionário sem pensar jamais em passar o que estou passando. Agora é que vou mesmo procurar os meus direitos.”

Neste momento, o silêncio aflitivo que se abateu sobre a roda dos amigos foi quebrado por dois fatos abruptos: primeiro, pela retirada ostensiva de Sergio Bechara que, abraçado a quatro livros que estava amaciando desde cedo, como é de seu costume e hábito, levantou-se irritado de sua cadeira para ir comentar com a funcionária que atendera a nem jovem nem gorda: “Esta mulher é doida!”; o segundo fato, foi o pedido desesperado que Pedro fez a Luiz Guilherme:

“Pô, companheiro, vê se dá um jeito neste pesadelo.”

“Você tem razão, Pedrinho,” reconheceu o solicitado. “Como a situação fugiu inteiramente a controle, só resta uma saída antes que a nem gorda nem bonita, nem bonita nem alta, nem alta nem jovem – em suma, liberdade à imaginação para compor a personagem com o seu vinagre da ira –, tenha um ataque de nervos e a coisa piore: vamos botar um ponto final nesta história.

E ponto final!

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Deixe um Comentário