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“Atirei um limão verde…”

Sob o título acima — conhecido pé-de-verso da poesia popular — Mestre Câmara Cascudo publicou, na revista Douro-Litoral (n° V-VI, 4ª série) interessante estudo acerca das trovinhas portuguesas e brasileiras “referentes ao arremesso do limão”.

Depois de transcrever nove quadras, recolhidas em coletâneas brasileiras entre as quais o nosso Cancioneiro Capixaba — faz, o consagrado folclorista de Natal, meticuloso estudo de confronto entre elas e trovas de Portugal, Espanha e Itália, e, aprofundando-se na apuração do ritual do arremesso de frutas — gesto de declaração amorosa ou rito de fecundidade — vai até às fontes eruditas mais remotas, numa comprovação da ancianidade do “conteúdo simbólico e ritualístico” do arremesso, ora esquecido pelo povo, mas resguardado no conhecido pé-de-verso das quadrinhas populares.

A esse belo estudo do eminente Câmara Cascudo, quero apenas aditar a pequenina amostra que aqui vai, recolhida diretamente da fonte oral tão cara à minha saudade:

Atirei o limão correndo
Da Vila-Nova ao cais:
Pensei que te esquecia
Cada vez me lembras mais…[ 4 ]

A não ser o pé-de-verso, que é igual ao das outras quadrinhas portuguesas (os do Brasil são, quase sempre: “atirei um limão verde”, ou um “limão doce”, ou um “limão n’água” etc.), não se assemelha a trovinha citada acima a nenhuma das que referiu Câmara Cascudo.

Também não há semelhantes nas que cita outro erudito autor, Rodriguez Marin, em Cantos populares españoles (p. 353), obra a que se reporta o ilustre folclorista de Natal. Somente uma delas, de procedência galega, diz, indicando os locais:

“Eu tirei una laranxa
De Martín a Portonovo
Dentro d’aquela laranxa
Iba o meu corazón todo.”

Mas, no Cancioneiro popular ribatejano, de Afonso do Paço, publicado na excelente revista Douro-Litoral (n° I-II, 5ª série, p. 123), vamos deparar versão portuguesa bem próxima da que aqui recolhemos:

“Atirei uma laranja,
Da Ribeira-Nova ao cais,
Para ver se me esquecias:
Cada vez me lembro mais.”

A diferença apenas se restringe à laranja em vez do limão; à Ribeira-Nova em lugar de Vila-Nova, e à troca de regência dos verbos esquecer e lembrar.

Em seus clássicos Opúsculos (tomo VII, 2ª parte, p. 928-41) o eminente etnógrafo português, Leite de Vasconcelos, estuda os “arremessos simbólicos na poesia popular portuguesa”. Nessa exposição citam-se 42 quadrinhas, várias delas com o mesmo pé-de-verso: “Deitei o limão correndo”.E entre essas variantes, vamos topar versão também quase igual à que aqui estudamos. Diz assim:

“Botei o limão correndo
De Vila Nova ó caçais
Pensando que me esquecias,
Cada vez me lembras mais.”

Como se vê, são mínimas as divergências — Botei por atirei, pensando por pensei e me esquecias por te esquecia.

Confrontando essas duas trovas, pode-se apurar que a nossa mantém o sentido originário e perfeito da expressão lírica. De fato: o jogo dos dois verbos opostos — esquecer e lembrar — se ajusta melhor na quadrinha de Leça da Palmeira, do que na que cita Leite de Vasconcelos. Aquele: “Pensei que te esquecia” (setessilábico, se contarmos com a pausa natural entre o te e o verbo) está evidentemente mais adequado ao pensamento lógico do enamorado, que o “Pensando que me esquecias”.

A antítese nuclear da trova é esta: Eu pensei que te esquecia, mas cada vez me lembras mais, isto é, cada vez tu me és mais lembrada, mais me lembro eu de ti. Na versão dos Opúsculos: Pensando eu que tu me esquecias, cada vez me lembras mais, ou seja: mais me lembro eu de ti — o que, no fundo, inverte a idéia e desajusta o contraste perfeito que bem se nota na quadrinha nossa,[ 5 ] a não ser que aquele “tu me esquecias” equivalha a “eu de ti me esquecia”.[ 6 ] Na Etnografia portuguesa, de Leite de Vasconcelos, lê-se ( tomo II, p. 619) que “em muitas das povoações nomeadas por Vila em todo o Portugal, o nome vem seguido do epíteto Nova”. Adiante, baseando-se em Silva Lopes, indica o número de Vilas-Novas em Portugal, distribuindo 19 ao sul e 124 ao norte e à Beira, num total de 143.

A qual dessas se refere a Vila-Nova da nossa trovinha? Difícil a resposta. Note-se, porém, que, como se vê do Mapa da antiga província de Entre-Douro-e-Minho, datado de 1762 (apud L. Vasconcelos, Etnografia portuguesa, tomo III, p. 25) havia, nas proximidades de Leça (ou Lessa), terra natal da querida informante nossa — a “Vila Nova da Telha”, ao norte, e uma “ViIa Nova”, próxima do Porto. A esta última, talvez, se referisse a nossa quadrinha popular.

NOTAS

[ 4 ] Informação colhida de Albina da Silva Neves, mãe do autor.

[ 5 ] Idem.

[ 6 ] Frise-se aqui a construção clássica do verbo lembrar em ambas as quadrinhas: “cada vez me lembras mais” — construção do tipo destas, por exemplo: “Senhora, pois me lembrais, / não sejais desconhecida” (Gil Vicente, Farsa “Quem tem farelos?”) e “Já me deixais? / Lembre-vos que me lembrais / e que não fico comigo /.. / Não sei porque me matais / nem o que digo”.(Gil Vicente, “O velho da horta”, Obras completas, Coleção Sá da Costa, vol. V, p. 66 e 151, Lisboa, 1944).

[Alto está e alto mora — Nótulas de folclore. Vitória: edição do autor, 1954.]

Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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