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Banda de Congos

Festa de São Benedito. Registro feito por François Biard em seu livro Deux années eu Brásil, Paris, 1862, p.190.
Festa de São Benedito. Registro feito por François Biard em seu livro Deux années eu Brésil, Paris, 1862, p.190.


No século XIX

São as Bandas de Congos conjunto musical típico do folclore capixaba.

A primeira referência impressa (mas não a mais remota) figura no livro do Padre Antunes de Sequeira, Esboço histórico dos costumes do povo espírito-santense,[ 1 ] onde — segundo tudo indica — se faz menção a uma das primitivas Bandas de Congos, integradas por índios Mutuns (do rio Doce). Eis o tópico: “Nas danças acocoram-se todos em círculo, batendo com as palmas das mãos nos peitos e nas coxas, e soltando guinchos horríveis. Fazem caretas e trejeitos, acompanhados de uma música infernal”. E o padre passa a descrever o instrumental que, mutatis mutandis, ainda se usa nas atuais Bandas de Congos: “Os cassacos, um bambu dentado, corrida a escala por um ponteiro da mesma espécie, e tambores feitos de um pau cavado, às vezes oco por sua natureza, tendo em uma das extremidades um couro, pregado com tarugos de madeira rija.” E prossegue: “A eles juntam o som produzido por um cabaz, cheio de caroços ou sementes do mato, hoje grãos de feijão e milho”.

Também há registro da presença de uma Banda de Congos, quando da visita que, a Santa Cruz, fez, em 1858, o viajante francês François Biard, que a descreve em seu livro Deux années eu Brásil.[ 2 ] No relato, conta-se o encontro do autor com indígenas por ocasião da festa de São Benedito: à frente o “capitão” com bastão enfeitado; depois o portador da imagem do Santo; as velhas devotas que dançavam le cancan em torno da imagem e, por fim, os músicos e instrumentos: uns batendo tambor, “pequeno tronco de árvore, oco, coberta uma das extremidades por um pedaço de pele ou couro de boi”, e outros “rascando, com um pequeno bastão, um instrumento feito dum pedaço de bambu denteado de alto a baixo”.

Não se cingiu o visitante a descrever o que viu. Desenhista que era, fixou em traços firmes a cena que lhe pareceu tão estranha, como se vê da ilustração reproduzida adiante.

Da mesma forma, como documento valioso, o registro feito, em Nova Almeida, por D. Pedro II, quando por ali andou em fevereiro de 1860. Nessa visita imperial, rabiscou D. Pedro alguns dados interessantes sobre o conjunto musical, do qual desenhou o nosso reco-reco de cabeça esculpida, anotando-lhe, inclusive, o nome “cassaca”.[ 3 ]

A esses documentos, posso acrescentar mais um: o depoimento de D. Pedro Maria de Lacerda, Bispo do Rio de Janeiro, que esteve em visita episcopal pelo interior capixaba, em 1880 e 1886.[ 4]

Atendendo, talvez, a velha praxe, D. Pedro Maria recolheu, diariamente, em cadernos, tudo que achou interessante registrar: desde os fatos de maior importância para o bom andamento das coisas da diocese do Espírito Santo, até as ocorrências mais singelas. Com letrinha firme, o prelado apontou, em forma de diário, casos curiosíssimos e, entre estes, o seu encontro com índios, integrantes de autênticas Bandas de Congos. E, minuciosamente, se referiu aos instrumentos então usados, fixando-lhes os nomes; descreveu com a possível fidelidade os passos das danças a que, interessado, quis assistir; impressionou-se com as toadas que ouviu cantar, “monótonas e lúgubres”. Enfim, sem o querer, procedeu a uma pesquisa de campo nos domínios do folclore capixaba. Foi assim em Nova AImeida; assim foi em Fundão e em Santa Cruz.

Quando de sua visita a Nova Almeida, em agosto de 1880, D. Pedro Maria pôs-se em contato com um conjunto musical formado por indígenas da região. Tudo indica fosse uma Banda de Congos, embora essa expressão não figure nos apontamentos diários do ilustre Bispo. Destes se lê, com data de 18 de agosto daquele ano, o trecho referente à Freguesia dos Santos Reis Magos da Vila Nova de Almeida: “Os índios, desde que cheguei à porta da Matriz, em número de seis, com seu capitão à frente, estavam à porta da Igreja a bater seus guararás (tambores), a esfregarem seus cassacos (paus dentados) e a agitarem seu manacá (chocalho) e a soltarem monótonas e lúgubres vozes sem modulação, como usam.” Depois, descreve os figurantes do conjunto: “O capitão estava de calças brancas, sobrecasaca cor de rapé, velha, com dragonas de retrós amarelo, e chapéu mal ornado, tendo na mão sua varinha com fitas, e era ele quem dançava compassadamente e com graça, a seu modo; os mais estavam vestidos com suas jaquetas e sem sapatos, e só tocavam seus instrumentos de sons surdos. Eu, da janela, estive vendo um pouco aquela dança. E lá se foram para o lado oposto a tocarem seus instrumentos, a soltarem seu canto, com o capitão a dançar à frente.”

Nas anotações do dia 20 do mesmo mês, o Bispo escreveu a respeito do Capitão: “Visitou-me o Capitão dos índios por nome João Maria dos Santos.” E explica: “Um Capitão de índios hoje é apenas um nome, como o do Imperador do Divino e Rei de Congado. Para as danças é ele o Presidente.”

No domingo, dia 5 de setembro, lá estava, nas ruas de Nova Almeida o curioso grupo folclórico: “Depois da missa cantada, apareceram, de baixo da janela, alguns índios a dançarem ao som do seu tambor, chocalho e cassacos, e monótono canto.”

Na quarta-feira (dia 8) — “dia designado para solenizar-se o aniversário três vezes secular da fundação da Igreja dos Jesuítas da Aldeia dos Reis Magos — hoje Matriz da Freguesia da Vila Nova de Almeida” — registrou o Bispo visitante algumas observações mais minuciosas: “Depois do jantar, o Capitão dos índios veio à frente da casa, com alguns (… ) índios a tocarem seu guarará (pequeno tambor cilíndrico) e sua cassaca (pau dentado que esfregam com uma vara) e sua massaracá (chocalho) e ali esteve o Capitão a dançar e mais outro curioso índio, e também um negro velho, ao mesmo tempo que os batedores do tambor e os outros instrumentos soltavam, a espaços, seu monótono e tristonho canto inarticulado e que não passa de um som prolongado.” A seguir, observador, anota a maneira de conduzir e tocar os tambores: “É de saber que os tocadores do guarará, quando vêm, os trazem debaixo do braço, e, quando param, montam-se sobre ele e com ambas as mãos batem no couro de uma das bocas.” E prossegue: “Os mais ficam em pé. Adiante do tambor é que se dança, que é simplíssima, mas tem sua graça; o capitão, esse tem na mão a vara, que ele empunha com muito garbo.”

Essa maneira de tocar o tambor (o “congo” como também se diz), cavalgando-o, é de ontem e é de hoje. De hoje é fácil a comprovação. De ontem, além do registro de D. Pedro Maria, temos a prova em velha fotografia reproduzida neste trabalho, tirada lá por 1905, quando pelo rio Doce andou o Capitão de Corveta Veríssimo Costa, conforme se pode ver na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo.[ 5 ] Na foto se vêem seis “conguistas”, montados nos seus tambores e neles batendo com as mãos, tal como viu os índios o Bispo D. Pedro Maria de Lacerda, em Nova Almeida, no recuado ano de 1880.

Por ocasião de sua visita pastoral a Fundão, encontrou o Bispo outro conjunto musical de indígenas que também lhe despertou a curiosa atenção. Aliás foi ele próprio quem provocou a demonstração folclórica, segundo se depreende dos seus apontamentos do dia 19 de setembro. Leia-se: “O tempo tinha melhorado e até aparecia a lua. Perguntei por que os índios até hoje não tinham cantado nem tocado seus guararás e dançado, e me foi dito que receavam incomodar-me. Então disse que, visto estar tudo acabado e com tanto fruto, era justo se divertissem, não toda a noite mas até duas horas. Ficaram alegres e vieram todos para defronte da pequena capela e eu quis assistir, assentando-me ali um pouco, com os padres.” Belo exemplo de compreensão o desse Bispo!

A seguir, descreve o que foi a função: “Fizeram uma boa fogueira, de cavacos, que pouco durou, e não se fazia necessário porque a noite estava clara e fazia algum luar, embora embaçado. Sobre os guararás (tambores) assentaram-se os tocadores que eram três; atrás outros arranhavam com varinhas os dentes de seus cassacos; faltou a massacaia (sic) ou chocalho.” Referidos os instrumentos do grupo, passa o Bispo a descrever com impressionante minúcia a dança a que assistiu: “Começou a dança o Capitão mui seriamente, com sua cortesia e barretada antes e depois, e sua varinha com fitas enroladas mui garbosamente empunhada como um capitão a marchar com espada em punho. A dança é mui modesta e decente: consiste em algumas piruetas, sem saltos, elevação do pé estendido para diante, algum cruzamento de pernas, e sapateados.” Registra, a seguir, o fenômeno de aculturação ou empréstimo, com a ingerência do negro na dança ameríndia: “Outros dançaram, mas a dança não foi puramente índica (sic), mas já com mistura de dança de negros, com mais animação, alguns saltos, muitos cruzamentos de pernas, que também às vezes separavam e logo uniam, e que outras vezes arqueavam.” Depois, observando dois meninos do grupo: “Dous meninos dançavam assim, mas com muita graça. Quando um acaba aponta outro, que deve apresentar-se pertinho ante os guararás e dali começa a dança.”

Já em Nova Almeida (como se viu) notara D. Pedro Maria a presença de um “negro velho” no grupo de índios. Essa intromissão do elemento negro no folguedo ameríndio é que deu agitação e vida ao conjunto musical e dançante. Leio em Gilberto Freire: “Pitt-Rivers confronta as danças dos negros com as dos índios, salientando naqueles a espontaneidade de emoção exprimida em grandes efeitos de massa mas sem rigidez nenhuma de ritual com o compassado e o medido das danças ameríndias.” E prossegue o sociólogo brasileiro: “Danças quase puramente dramáticas. Esse contraste pode-se observar nos xangôs afro-brasileiros, ruidosos, exuberantes quase sem nenhuma repressão de impulsos individuais; sem a impassibilidade das cerimônias indígenas.” [ 6 ]

Não deixa de ser interessante a observação de D. Pedro Maria de Lacerda, fixando, em 1880, esse intercâmbio, esse empréstimo, essa aculturação entre o folclore negro e o folclore brasilíndio.

Mas, prossigamos.

Pouco antes de chegar a Santa Cruz, a 28 de setembro desse mesmo ano, o curioso prelado teve seu primeiro contato com integrantes da banda local. Escreve ele em seu caderno de campo: “Pelas três e meia, estávamos em uma planície e campo verdolengo de relva, perto da Vila de Sta. Cruz, entre uns montes e o larguíssimo rio de Sta. Cruz. Aí estava uma fileira de índios e índias (de raça e mais nada), com dois capitães: o do Destacamento, de sobre casaca (…) com seu chapéu enfeitado de fitas e de um vidro de espelho; e o do Cachoeirinho, de calça e jaqueta. Batiam eles seus guararás e esfregavam seus cassacos e soltavam suas monótonas e tristonhas vozes inarticuladas, e os Capitães dançavam e faziam suas piruetas do costume.” E acrescenta: “Gostei de ver. Daí a pouco estávamos em Sta. Cruz.”

Já na vila, Freguesia de Nossa Senhora da Penha da Vila de Sta. Cruz, anotou o Bispo a presença de duas bandas de índios (atente-se para a expressão — Bandas de índios —, o que pode indicar que a esses conjuntos rústicos também se dava o nome de “Bandas”): “Neste ínterim, chegaram duas bandas de índios a tocarem seus instrumentos, e o Capitão de uma delas, o mais enfeitado, pôs-se a dançar, o que foi imitado por outro (…) pobremente vestido.” E depois: “… e lá vieram os índios a tocarem seus tambores e a cantarem a intervalos seu monótono e lúgubre canto (…) até quase meia-noite. “

Em nenhum momento assinalou D. Pedro Maria em suas notas diárias o que cantavam os índios, e é uma pena. Poderia ele, se o quisesse, indagar do grupo ou do Capitão o que significavam aqueles cantos lúgubres. Através do seu Diário relatam-se as conversas que manteve com vários indígenas, com os quais trocava palavras e frases, preocupado em aprender a língua deles (da qual registra alguns termos e expressões). Não lhe seria, pois, difícil apurar o sentido daquilo que mais lhe parecia “canto inarticulado”, monótono e tristonho.

Outras notícias a respeito das antigas Bandas de Congos no século XIX podem ser colhidas, talvez, nos livros dos viajantes estrangeiros que por aqui passaram, nos apontamentos de outros visitantes interessados, ou nos jornais que, à época, circulavam em Vitória ou no interior. Todas, ou quase todas, dirão da presença de índios e de negros nas antigas Bandas de Congos, o mais típico e curioso conjunto musical do folclore capixaba.

Congo de Manguinhos, anos 1950. Foto Guilherme Santos Neves.
Congo de Manguinhos, anos 1950. Foto Guilherme Santos Neves.

No século XX

Com o decorrer do tempo, nossas bandas — inicialmente indígenas — foram alterando alguns dos seus primitivos aspectos: desapareceu o nome guarará, substituído por congo ou tambor, passando, por isso, o conjunto a ser denominado Banda de Congos, expressão que lembra melhor a velha África. Desapareceu o termo massaraca ou massacaia, mudado para chocalho, ou como dizem chucaio ou sucaio. Ajuntou-se ao instrumental a puíta ou cuíca, de origem africana. Manteve-se, porém, o cassaco, cassaca, também chamado casaca ou casaco, ou ainda, por contaminação, canzaco, evidente influência de canzá ou ganzá, termo quimbundo, segundo alguns entendidos em línguas africanas. Acrescentem-se a isso o modo peculiar de dançar dos negros e mais as toadas, onde se encaixam, aqui e ali, termos e expressões africanas, referências à escravidão, entoadas dentro do ritmo negro, quente e sensual:

No caminho de Minas
Tirei ouro na terra de Congo
       Camundá
É congo, é congo, é congá
Ó rainha do Congo Mariá…
(Cariacica.)

Eu nunca trabalhei
Na sexta-feira da Paixão.
O povo estão dizendo:
Já acabou a escravidão.
(Cariacica.)

Em 1951, por ocasião dos festejos comemorativos do IV Centenário da fundação de Vitória, quando se realizou a primeira concentração de Bandas de Congos, entre os conjuntos participantes apresentou-se, no Estádio de Jucutuquara, um de Caieira Velha (Santa Cruz), formado por figurantes que tinham todas as feições dos antigos indígenas da região. Entre eles, nenhum negro. Também o instrumental diferia do das demais Bandas, por ser mais rústico: os tambores (troncos ocos) e os cassacos não apresentavam a mesma forma dos outros, não sendo, na sua feitura, utilizados pregos, mas tarugos de madeira. Da mesma forma, os cânticos eram monótonos ao extremo, repisando indefinidamente dísticos ou quadras simples. Um deles, por exemplo, dizia apenas isto:

Quem descobriu o Brasil
Foi o português…

Tudo nos leva a crer que os componentes da Banda de Congos de Caieira Velha seriam possivelmente descendentes daqueles que, precisamente em Santa Cruz, tanto interessaram ao espírito curioso do Bispo D. Pedro Maria de Lacerda.

A casaca

Chama-se casaca, no Espírito Santo, um instrumento idiófono, formado geralmente de um cilindro de madeira — numa de cujas extremidades se esculpe uma cabeça — escavado numa das faces, em que se prega uma lasca de bambu com talhos transversais, sobre os quais se atrita pequena vara ou haste de pau.

Esse instrumento é também conhecido, entre nós, pelos nomes de cassaco, canzaca, canzá, ganzá, caradaxá, reque-reque e reco-reco.

Entre as mais remotas referências a este instrumento em terras do Espírito Santo encontra-se a do já citado livro do Padre Antunes de Sequeira, Esboço histórico dos costumes do povo espírito-santense.

Em inquérito realizado, em 1952, pela Comissão Espírito-santense de Folclore, da Secretaria de Educação e Cultura do Estado e a participação de professores do interior, estava assim distribuído o instrumento nas localidades e municípios capixabas, segundo a sua denominação:

Reco-reco – Em Vitória e Goiabeiras (Mun. da Capital) — Aribiri e Vila Velha (Mun. do Espírito Santo) — Boa Vista, Piranema e Cariacica (Mun. de Cariacica) — Jabaeté Pitanga, Manguinhos, Jacareípe, Nova Almeida, Putiri, Campinho e Serra (Mun. da Serra) — lconha — Anchieta — Guarapari — Santa Teresa — Santa Leopoldina — Alfredo Chaves — Alegre — Ibiraçu — Muqui — Cachoeiro de Itapemirim — Afonso Cláudio e Laranja da Terra (Mun. de Afonso Cláudio) — S. Silvano, Novo Brasil, Patrão-mor, S. Gabriel da Palha e Colatina (Mun. de Colatina) — S. Mateus — Linhares — Conceição da Barra — Itaguaçu — Fundão — e, possivelmente, em todo o Estado.
Casaca – Vitória e Goiabeiras (Mun. da Capital) — Manguinhos, Jacareípe, Nova Almeida, Pitanga, Putiri, Campinho e Serra (Mun. da Serra) — Caieira Velha, Riacho, Barra do Riacho, Santa Rosa, Sauaçu e Aracruz (Mun. de Aracruz) — João Neiva e Ibiraçu (Mun. de Ibiraçu) — S. Silvano e Patrão-Mor (Mun. de Colatina) — Fundão e Timbuí (Mun. de Fundão).
Cassaco – S. Silvano e Novo Brasil (Mun. de Colatina) — Nova Almeida (Mun. da Serra) — Ibiraçu e Pendanga (Mun. de Ibiraçu).
Canzaca – Nova Almeida (Mun. da Serra).
Canzá – Nova Almeida (Mun. da Serra) — Anchieta.
Caracaxá – S. Silvano (Mun. de Colatina).
Ganzá – Nova Almeida (Mun. da Serra).
Reque-reque – S. Silvano (Mun. de Colatina).

Outras informações decorrentes de observação própria e do inquérito:

— A designação que se dá aos músicos que tocam a casaca difere conforme o lugar. Em área maior é a de tocador de reco-reco ou reco-requista. Depois casaqueiro, canzaqueiro, conguísta, casaquista e folgador.

— A vareta que rasca os talhos da casaca não tem nome apropriado.

— Para se tocar a casaca, o tocador, com uma das mãos — a esquerda — a segura pelo “pescoço”, enquanto com a outra rapidamente atrita a vareta sobre os dentes da taquara.

— A casaca pode ser segura verticalmente ou inclinada para a frente ou para trás.

— Difere o formato do instrumento conforme a área. Na maioria das localidades o reco-reco assume a forma generalizada no Brasil.

Na área compreendida pelos municípios de Aracruz e Serra a casaca é feita como na descrição do início deste capítulo. O bambu ou taquara, denteada em comprida lasca, entra como cobertura da caixa de ressonância escavada no cilindro de pau. Mas a característica principal da casaca é a cabeça esculpida a canivete ou facão. No lugar dos olhos, põem, por vezes, tentos ou sementes rubro-negras, ou pequenas esferas de chumbo. Pintam-se os olhos, boca e faces da cabeça com tinta comum ou de frutas do mato.

O formato da peça, ora é cilíndrico, da mesma largura em todo o corpo, ora apresenta ligeiro alargamento na parte inferior, como leque entreaberto.

A casaca não se utiliza isoladamente. Em regra geral se usa como integrante das Bandas de Congo. Também em grupos de Jongos e Caxambus se pode encontrar a casaca, bem como no rito fúnebre da “encomendação das almas”, como ocorre no município de Afonso Cláudio, por exemplo.

As festas de que participam as Bandas de Congo e, conseqüentemente, a casaca, são, em sua maioria, festas de santos: Cortada e Puxada de Mastro de S. Pedro, S. Sebastião e principalmente S. Benedito.

No carnaval, usa-se o reco-reco (a casaca sem cabeça esculpida). Em Vitória, porém, é comum encontrarem-se, nas ruas, durante o tríduo carnavalesco, Bandas de Congos completas, inclusive com casacas, cantando suas tradicionais toadas, tão diversas, no ritmo e sentido, das canções do carnaval.

As cantigas

As cantigas das Bandas de Congos, ainda não contaminadas pelo rádio nem pelo carnaval, conservam o sinete característico da alma popular. A tristeza é a nota sensível das cantigas de Congo, como se observa em textos recolhidos em Manguinhos (1949), numa povoação de pobres pescadores, próximo a Vitória. São temas constantes dessas canções o mar e o amor e, por vezes, a morte. Exemplos:

Do mar:

Sereia do má
qué nadá…
Os carinho da menina
qué brincá…

Por aí se vê que os pescadores da praia de Manguinhos — homens do mar — também têm a sua sereia, espécie de D. Janaína. Essa Iemanjá, todavia, só lhes aparece nas toadas de congo…

De amor:

Eu tô chorando, ô Maria,
vem me acalentá, ô Maria
por causo do amô, ô Maria,
que me faz chorá
ô Mariaaaaa…

Do feixe de cantigas de congo que ouvimos, esta é, sem dúvida, a mais triste. Aquele “ô Maria”, que o coro entoa e repete, é tão lânguido e demorado que, além de monotonizar a toada, provoca mesmo certa angústia em quem a canta ou ouve.

De morte:

Mariquinha morreu onte,
onte mesmo se enterrô;
na cova de Mariquinha
minha arma [alma] presa ficô…

Aliás, nas cantigas de congo, em geral, concorre para fazê-las tristes a maneira dolente de cantá-las, alongando exageradamente as vogais finais do último verso do refrão, que mais parecem lamentos e gemidos em âââââ, em êêêêê, em ôôôôô.

A não ser isto, poder-se-ia dizer, embora pareça, à primeira vista, impossível a comparação — poder-se-ia dizer que certas canções de congo lembram as cantigas de roda do tipo de estribilho. De fato, como nas rodas infantis, algumas canções de congo têm o seu refrão que o coro entoa de início, e também após tirar o solista os seus versos ou trovas.

Vejamos um exemplo:

Coro:     Sô do norte, virei!
Sô do norte, virá!
Lá de casa
me mandaro chamá, ôi…
Eu não vô lá, ôi…
| bis
|
     
Solo: Botei minha barca nágua,

toda noite andava nela.
Aonde foi perfundá?
— no pé de tua janela…
 
     
Coro:  Sô do norte, virei!
etc…
 

Às vezes, o coro repete o estribilho, simples e curto, no final de cada verso da quadrinha tirada, como é o caso desta cantiga colhida em congo da cidade de Serra:


Coro:      
Amanhã eu vou-me embora
— Cajuêro abalô
Eu não vou m’embora não
— Cajuêro abalô
Ainda que meu corpo vá
— Cajuêro abalô
Lá não vai meu coração
— Cajuêro abalô.

Na cantiga de congo — Dalina — de Manguinhos, a interferência do coro e do solista se opera de maneira original.

Canta o coro:  Dalina, minha Dalina,
Dalina, minha irmã,
Pergunte por quem morreu,
       Dalinaaaa…
       Dalina, ai…
   
Solo: Se fôre no má pescá,

matai pêxe de doente;

não matais o baiacu
   
Coro: Dalina… Dalina
   
Solo: Não matais o baiacu
que é pêxe que mata a gente
   
Coro: Dalinaaa
   
E continua: Dalina, minha Dalina
etc. etc.

Outro tipo, igualmente interessante. O estribilho é curto — Êi manaiê, êí manaiá.

Canta o coro: Êi manaiêêê…
Êi manaíáááá…
 
     
Solo: Nossa Sinhora da Penha
em que artura foi morá
| bis
|
     
Coro: Ôi… êêêêê  
     
Solo: Em cima daquela Pedra
colocô a seu artá
 
     
Coro: Êi manaiêêâê…
Êi manaiáááá…
 

E vão “sameando” versos por aí afora, na toada da cantiga, entrecortados pelo estribilho alongado e plangente.

Da documentação realizada em Vitória, com a Banda de Congos “Panela de Barro” de Goiabeiras,[ 7 ] em abril de 1980, nos estúdios de som da Fundação Cultural do Estado do Espírito Santo, pelo Prof. Aloysio de Alencar Pinto, para o Instituto Nacional do Folclore, são os exemplos seguintes:

Congo de Goiabera[ 8 ]

Solo com suporte  
do coro:
Congo de Goiabera
Congo da União, ê, a
| bis
|
     
  São Benedito santo
Virge da Conceição, ê, a
| bis
|
     
Solo:
Coro:
Ai ou morro sinhá
A pitanga me mata
Eu morra sinhá
| repete 4 vezes
|
|

Nota — Toada de saudação ou chegada. Na gravação original não fazem o bis na 1ª vez que cantam a estrofe de S. Benedito. A última vez que cantam a 3ª estrofe, repetem-na 5 vezes em vez de quatro.

Dona Maria s’eu pidi você me dá

Dona Maria s’eu pídi você me dá
Seu boi turino qu’está preso no currá
Pra laçá tem minha corda

Pra matá tem meu machado
Pra cortá tem meu facão
  bis
  bis
   
S’eu montá em canarinho
Não conhêce boi
Não conhêce boi
Não conhêce boi, não
| bis
|
|
|

Nota — Toada. Na gravação do Instituto Nacional do Folclore, a 2ª estrofe é cantada sem bis quando cantam pela última vez. Conhêce é contração de conheço esse.

Madalena, Madalena

Refrão:   Madelena, Madelena
Você vai me prendê
Vou falar a todo mundo
Vou falar a todo mundo
Qu’eu só quero é você
| bis
|
|
     
Solo: Sôbi no morru da serra
De cansado me assentei
Chorandu por pai e mãe
Chorandu por pai e mãe
Pelo leite que mamei
| bis
|
|
     
Refrão:   Madalena, Madalena
Você vai me prendê
Vou falar a todo mundo
Vou falar a todo mundo
Qu’eu só quero é você
| bis
|
|
     
Solo: Meu amigo Riginaldo
Agorá vou lhe falá
O congu de Goiabera
O congu de Goiabera
É congu de amargá
| bis
|
|
     
Refrão:   Madalena, Madalena
Você vai me prendê
Vou falar a todo mundo
Vou falar a todo mundo
Qu’eu só quero é você
| bis
|
|
     
Solo: Meu amigo Dr. Guilherme
Esta vai em seu louvor
Na solá do seu sapato
Na solá do seu sapato
Corre água e nasce flor
| bis
|
|
     
Refrão:   Madalena, Madalena
Você vai me prendê
Vou falar a todo mundo
Vou falar a todo mundo
Qu’eu só quero é você
| bis
|
|

Nota — A primeira vez que cantam o refrão bisam integralmente.

Meu São Benedito que veio de Lisboa

Meu São Benedito que veio de Lisboa
Com sua bandeira e a sua coroa
Que santo é aquele que vem na charola?
É São Benedito e Nossa Senhora.
 
Meu São Benedito que veio de Lisboa
Com sua bandeira e a sua coroa
Que santo é aquele que vem acolá?
É São Benedito que vem nos salvá.
 
Meu São Benedito que veio de Lisboa
Com sua bandeira e a sua coroa
Que santo é aquele que veio de Lisboa?
É São Benedito com a sua coroa.
 
Meu São Benedito que veio de Lisboa
Com sua bandeira e a sua coroa
Que santo é aquele que vem no andô?
É São Benedito e Nosso Senhô.
 
Meu São Benedito que vem de Lisboa
Com sua bandeira e a sua coroa
Que santo é aquele que vem lá de dentro?
É São Benedito que vem do convento.

Nota — todos os versos são bisados.

Adeus, meu pessoal[ 8 ]

Refrão:   Adeus, meu pessoal
Adeus, adeus
Vocês fica com saudade
Quem vai imborá sou ê ê eu
  | bis
  |
  | bis
  |
     
  Amanhã eu vô m’imbora
É mentira não vô não
digô que vô m’imbora
Pr’alegrá meu coração ã ão
  | bis
  |
  | bis
  |
     
Refrão:   Adeus, meu pessoal
Adeus, adeus
Vocês fica com saudade
Quem vai imborá sou ê ê eu
  | bis
  |
  | bis
  |
     
  Amanhã eu vô m’imbora
Que me dá pra mim levá
Tô levando saudade tua
Pois a minh’eu vá ficá
  | bis
  |
  | bis
  |
     
Refrão:   Adeus, meu pessoal
Adeus, adeus
Vocês fica com saudade
Quem vai imborá sou ê ê eu
  | bis
  |
  | bis
  |

Nota — Na gravação original o refrão foi bisado integralmente na 1ª vez.

Da Banda de Congos “Amores da Lua” de Santa Marta, foi selecionado o exemplo seguinte:

Meu navio[ 9 ]

No alto mar eu tenho o meu navio
Eu fui ao barco atender chamado
O galo canta o diá clareia
Às quatro horas da madrugada
  | bis
  |
  | bis
  |
   
O mestre chama vamos aprendê
Santa Maria já levou jornada
Segura o barco toda a marujada
Às quatro horas da madrugada
  | bis
  |
  | bis
  |
   
No alto mar eu tenho o meu navio
Eu fui ao barco atender chamado
O galo canta o diá clareia
Às quatro horas da madrugada
  | bis
  |
  | bis
  |
   
Fui ao conventu da Penha
De minhá mãe tão querida
Agorá possu morrer
Já entrei no céu em vida
  | bis
  |
  | bis
  |
   
No alto mar eu tenho o meu navio
Eu fui ao barco atender chamado
O galo canta o diá clareia
Às quatro horas da madrugada
  | bis
  |
  | bis
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Nota — Esta toada foi escolhida por ser representativa das festividades da banda. Outras toadas gravadas, que se encontram no acervo do Instituto Nacional do Folclore, cantadas por esse grupo, são: Amores de lua (canto de chegada), Viva a Penha (louvação a Nossa Senhora da Penha), Minha laranjeira, La vem canoeiro e Adeus, meu pessoal (despedida).

Bibliografia

Revista Folclore. Vitória, Comissão Espírito-santense de Folclore, 1949.
A história da Banda de Congo “Amores da Lua”, contada por seu fundador. A Gazeta, Vitória, 18 jul. 1979.
SANTOS NEVES, Guilherme. Toadas de congos. Revista Folclore, Vitória, 1(3):5 e 3, jan./dez. de 1949.
___. “Casaca” — Instrumento musical indígena. Revista Folclore, Vitória, 5(30/31):15-17, maio/ago. 1958.
___. As bandas de congos do folclore capixaba. Paratodos, Rio de Janeiro, 1(36):9, 1957.
___. “Casaca” — instrumento musical indígena. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, Vitória, (18):103-111, 1958.
___. Registro da música folclórica no Espírito Santo. Revista Folclore, Vitória, 12(70/74):15-17, 22, jan./dez. 1961.
___. Tambor de São Benedito. Revista Folclore, Vitória, 13/14(75/78):13-15, jan./dez. 1962/1963.
___. Bandas de congos do século XIX. Revista Folclore, Vitória, 16(81):6-8, jan./dez. 1965.
___. A puxada do mastro. Revista Folclore, Vitória, 23/24 (89/90):9-10, jan./dez., jan-lago. 1972/1973.
___. Folclore brasileiro: Espírito Santo. Rio de Janeiro: MEC-DAC-Funarte-Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, 1978.

NOTAS

[ 1 ] Rio, 1893, p. 42.

[ 2 ] Paris, Lib. L. Hachette, 1862, p. 197.

[ 3 ] Cf. Viagem de D. Pedro II ao Espírito Santo, Rio de Janeiro, 1960, p.197.

[ 4 ] Nota da Estação Capixaba: os apontamentos do bispo D. Pedro Maria de Lacerda foram publicados em forma de livro intitulado Diários das visitas pastorais de 1880 e 1886 à província do Espírito Santo [Vitória: Phoenix Cultura, 2012.]

[ 5 ] N. 7, p. 205-33, março de 1934, que transcreve o seu trabalho, “Viagens pelos rios navegáveis do Estado do Espírito Santo viagem ao rio Doce”, e estampa o clichê, o mesmo reproduzido em Folclore, Vitória, 13/14(75/78):15, jan./dez. 1962, jan./dez. 1963.

[ 6 ] Casa grande & senzala, 2. ed. Rio de Janeiro, 1936, p. 202.

[ 7 ] O dono da banda é Arnaldo Gomes Ribeiro, que é também o proprietário da fábrica de panelas de barro em Goiabeiras, Espírito Santo. Daí o nome do grupo: Banda de Congos “Panela de Barro”. Os participantes do grupo trabalham na fábrica. O Mestre é João Ribeiro, vulgo João Bonitinho. O instrumental da banda compõe-se de 3 atabaques, 3 casacas; cuíca, chocalho, triângulo e apito.

[ 8 ] As ligaduras que terminam no compasso em branco representam o prolongamento do acorde anterior. A duração deste prolongamento varia entre 2 e 5 compassos.

[ 9 ] Nas toadas da Banda de Congos “Panela de Barro” a voz do baixo é cantada pela voz masculina. As vozes que se encontram uma 6ª, 8ª ou 10ª acima do baixo são as vozes femininas.

[ 10 ] No transcrever as toadas encontramos variações melódicas e rítmicas em cada repetição, o que é muito natural na música folclórica.

 [A transcrição das melodias e letras foi realizada pelos Profs. Aloysio de Alencar Pinto e Ruth Serrão O’Malley. Este texto foi publicado em 1980 na série Cadernos de Folclore, n.30, pela Funarte.]

[Rio de Janeiro: MEC/Funarte, 1980. (Cadernos de Folclore, 30)]

Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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