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Benvinda

Havia dois trens que passavam por Beleléu, sem contar o que transportava gado e café. Dos que faziam parada, quase sempre para desembarcar alguém, porque ninguém queria deixar Beleléu e todos que partiam acabavam voltando, o das 4:15 da tarde era britanicamente pontual, e também o que ficava mais tempo: exatos 5 minutos, uma vez que tinha de estar em Santa Cecília às 6:45. O outro passava sempre por volta das 8 da noite, mas era como certos amores: “hoje beija, amanhã não beija, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será”.

Piero Negri, todos os sábados, durante 4 anos, 3 meses e 18 dias, esperava a noiva chegar pelo trem das 4:15. E ela chegava sempre, como o destino, exata e sua. Faziam o que fazem todos os apaixonados: descobriam segredos do universo, admiravam-se com o mundo, criavam desejos um para o outro, e, mesmo quando nada de novo havia, havia o silêncio em que tudo cabia.

Uma tarde —o velho Klaus havia acabado de não-ver com sua cegueira congênita a parábola perfeita que um urubu solitário descreveu no ar, aproveitando uma corrente de ar ascendente—, uma tarde, quando o trem chegou, em vez da namorada —esta se chamava Benvinda, e, além de Benvinda, era Perpétua—, o Negri recebeu foi um envelope tarjado em verde e amarelo e, dentro dele, uma carta, mais dolorosa que comprida, dizendo que ela, aquela que sempre fora bem-vinda, não viria mais: nunca mais tardes de sábados e domingos, nunca mais beijos, nunca mais corpo, nunca mais futuro. Tudo em volta era passado.

Klaus também não percebeu o looping seguinte do urubu, mas, em meio ao partir cansado do trem, ouviu perfeitamente a explosão da primeira lágrima de Piero no cimento rústico, feito se fosse o primeiro tiro que lhe tirara o filho único, Friedrich, na guerra. Não falou nada. Apenas olhou, como se enxergasse —e não?—, para o vazio em que se tornara Piero e compreendeu tudo. Não falou nada, porque sabia do que se tratava, sem que precisassem lhe dizer. Porque durante anos se acostumara ao ressoar dos quatro passos em allegro e agora o que ouvia era o ruído de uma alma excessivamente destroçada, sendo arrastada, à força, para a rua.

Klaus Möller sabia o que era o vazio e a solidão. Só não podia era imaginar que Piero Negri, em meio ao seu desespero particular, fosse em casa, pegasse a velha bicicleta com farol queimado e pedalasse, no escuro, em menos de 3 horas, todos os 88 quilômetros que o separavam da amada, só para ouvir dela que era irremediável, que já não lhe bastavam os pequenos mundos em Beleléu, que havia outros grandes mundos que ela precisava pra que conhecer.

Mas Piero insistiu e, nas 9 semanas seguintes, todas as tardes, pedalou a bicicleta sem farol ida e volta, percorrendo um total de 11.088 quilômetros, para ouvir sempre o mesmo não. Na segunda-feira da décima semana, porém, adoeceu e não pôde ir, mas, então, uma outra carta da amada já estava a caminho. Dizia apenas: “Amar de verdade é um risco. Talvez valha a pena corrê-lo. Estarei aí no próximo sábado, no trem de sempre, às 4:15. Se eu não estiver nele, me esqueça. Não me procure mais, que meu mundo será outro destino. Beijos infinitos. Benvinda”.

Nenhuma outra notícia ou fórmula mágica poderia curar um doente mais rapidamente do que estas poucas, ainda que ambíguas, palavras. Piero apegou-se à forma tradicional de despedida entre eles (“beijos infinitos”) e nem foi necessário o chá de limão bravo com mel e folhas de eucalipto que lhe receitaram, para que a pneumonia desaparecesse por completo. Na quarta-feira, ele voltou ao trabalho e até pensou em fazer a oferta que sempre quis fazer a Klaus pela casa em que o cego não mais entrara desde a morte da mulher: trocar um bocado de suas terras pela casa e fazer dela um lugar cheio de crianças benvindas.

O tempo se arrastava e nada parecia conseguir apressá-lo. Na quarta à noite, Piero fez a oferta a Klaus. Na quinta pela manhã, ela foi recusada. O cego não podia se desfazer da casa exatamente porque, por estar vazia de lembranças, era onde as lembranças poderiam sempre se aninhar. Na sexta-feira, Piero já tinha prontas todas as palavras que trocaria com a amada e, no sábado, sentiu vontade de adiantar todos os relógios do mundo para chegar logo às 4:15. Saltava as lacunas do tempo que não passava, procurando coisas para fazer (mas todas as coisas pareciam já estar feitas) e tentando dormir, mas era tanto não-passar que todo dormir parecia excessivo.

Às 4 horas, Clara Bravim apareceu na estação com a irmã, como costumavam fazer há vários anos, trazendo para Klaus o lanche da tarde, cobertas (que Beleléu tem temperaturas de Saara à noite) e travesseiros limpos. Ele agradeceu com aqueles olhinhos vidrados, seguindo os movimentos delas com o olfato e a audição, e ficou esperando, talvez mais que o próprio Piero, ouvir o apito do 4:15.

E o apito coincidiu, como de hábito, com o toque do sino da igreja. Quando o trem parou na estação, dessa vez havia uma pequena multidão a esperá-lo, torcendo por Piero Negri —a notícia se espalhara.

Mas ninguém desceu do trem e, às 4:17, o maquinista deu a partida, deixando para trás, sem saber, um coração incontavelmente perdido. Aos poucos, as pessoas foram se aproximando de Piero, consolando-o sem dizer palavra, mas só Klaus, pelo ritmo das lágrimas no cimento e pelo pulsar, audível apenas aos que não enxergam, de sua carótida, sabia que a decisão dele já havia sido tomada e era irremovível.

Foi assim que, às 8:49 daquela noite, quando uma lua aracnídea se pendurava no céu com sua teia de luz leitosa unicamente por conta de seu desejo de presenciar as tragédias humanas (as paixões que não se resolvem com poesia ficam à espreita do drama), foi assim que Piero Negri, com a carta da amada no bolso da camisa nova, foi assim que Piero deitou a cabeça no trilho do trem, como tantas vezes fizera no colo de Benvinda, foi assim que dele só restou da sétima vértebra cervical para baixo. O maquinista, no escuro, acostumado a atropelar coelhos, gambás e pacas, nem se deu ao trabalho de verificar o que era dessa vez. Duzentos metros adiante, parou na estação de Beleléu, como já se sabe que raramente fazia, e do trem saltou uma única passageira. Klaus se assustou ao reconhecer os passos e perguntou baixinho, em corpo 9, temendo a resposta que já conhecia de antemão:

— Benvinda?

— Sou eu, Klaus —ela respondeu.

O silêncio circundou os dois, como uma multidão enfurecida. Então, ele continuou:

— Por que não veio no 4:15?

— Eu me atrasei. E Piero?

Klaus então pesou bem as palavras e as atirou no chão, com estardalhaço de cristal se quebrando:

— Ele não se atrasou.

Foi assim que, pelo tom da voz dele, ela compreendeu. Nunca mais Benvinda, nunca mais Piero, nunca mais, nunca mais, insistiu um corvo em algum lugar.

* * *

A beleza, para Klaus, sempre fora algo concreto, palpável. O pôr-do-sol, por exemplo, ele via como o barulho do movimento de algumas flores se fechando, recolhendo seus perfumes, como as mães recolhem suas crianças do sereno, e dos animais noturnos começando sua caminhada em busca de estarem de volta na noite seguinte. Mas desta vez ele não conseguiu identificar em Benvinda nada que lhe desse a mais remota que seja pista do que viria a seguir. Klaus estava, finalmente, cego. O tal corvo ecoava intermitente de algum lugar “nunca mais”, “nunca mais”.

[Conto do livro inédito Beleléu e adjacências.]

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Miguel Arcanjo Marvilla de Oliveira nasceu em Marataízes, ES, em 29 de setembro de 1959 e faleceu em Vitória, em 2009. Mudou-se com os pais para Vitória em 1964. Poeta, concluiu em 1996 o curso de graduação em Letras-Inglês na Ufes e cursou o mestrado em História na mesma universidade. Publicou diversos livros. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui.)

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