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Cachoeiro de Itapemirim — um Clube Republicano e um herói

Introdução

O trabalho dos propagandistas espírito-santenses dá alguma razão ao que Alfredo Varella afirmou. Não foi pequena a propaganda na antiga Província que viu nascer Domingos Martins, o mártir republicano de 1817. (Mário Freire)

Falar sobre o Movimento Republicano capixaba e as suas construções simbólicas e míticas, constitui uma importante tarefa, dado o seu riquíssimo conteúdo e a sua herança que tanto interferiram e contribuíram para a formação do povo capixaba.

Geralmente, os estudos feitos sobre o Movimento Republicano Brasileiro destacam os projetos dos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, isso se reflete até na produção bibliográfica básica sobre a República. Nos últimos anos, algumas obras foram produzidas no Espírito Santo, enfocando a história política capixaba. Mas ainda falta destacar a intensa participação política dos municípios sul-capixabas (Cachoeiro de Itapemirim) nesse período (1887-1889), onde podemos definir que tratava-se de lutas pelo controle do aparelho do Estado.

Diante da importância do tema, este trabalho tem como objetivo, no segundo capítulo, analisar o percurso histórico de Cachoeiro de Itapemirim e o seu destaque na produção cafeeira.

…Cachoeiro foi o centro político-administrativo de toda a região cafeeira do Sul até a República, centro comercial e porto fluvial obrigatório do café de grande parte da região até o início do século XX, quando a ferrovia substituiu o transporte fluvial. (NARA, 1996: 62)

No terceiro capítulo analisa e reflete as produções republicanas em Cachoeiro de Itapemirim e os seus verdadeiros interesses. Vale ressaltar que no Espírito Santo, principalmente na região sul do Estado, a propaganda republicana foi muita ativa e intensa, tendo o seu grande incremento com a fundação do Clube Republicano, em 1887, em Cachoeiro de Itapemirim.

A região sul, além de ter sido pioneira na fundação de clubes republicanos, concentrou o maior número desses clubes atuando como centro de maior difusão dessas idéias na Província. (SILVA, 1995:65)

E no último capítulo farei uma análise em torno das produções simbólicas e heróicas, criadas pelo novo regime político.

…a criação de símbolos não é arbitrária, não se faz no vazio social. Herói que se preze tem de ter, de algum modo, a cara da nação. Tem de responder a alguma necessidade ou aspiração coletiva, refletir algum tipo de personalidade ou de comportamento que corresponda a um modelo coletivamente valorizado. (CARVALHO, 1990: 55)

No caso capixaba, não foi grande o esforço em promover um herói. Domingos José Martins, representava o candidato mais óbvio ao papel de herói republicano. Assim, o culto heroico da pessoa de Domingos Martins foi uma produção simbólica do regime republicano.

Cachoeiro de Itapemirim — Evocação de cenários e personagens

Durante os anos de 1865 a 1888, Cachoeiro apresentou um extraordinário desenvolvimento econômico acompanhado de uma agitada vida urbana. Ocorre que em 1864 Cachoeiro foi elevada à categoria de vila, que foi habitada por pessoas vindas das províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais que se dedicavam principalmente ao comércio e à lavoura. O comércio, que começara em 1846 feito por tropas organizadas pelos mascates, desenvolveu-se tanto que em 1853 foi instalada, por Manoel Cipriano da Franca Horta, uma casa comercial, a primeira que teve esta localidade. Nessa época a vila de Cachoeiro possuía 295 casas e 3.895 habitantes, inclusive grande número de escravos.

Esse “perfil” demonstra que a agricultura, pecuária e comércio foram os setores responsáveis pela produção necessária para manutenção da vila e, em muitos casos, até da Província do Espírito Santo. Antônio Marins, destaca que Itapemirim “até em 1887 foi uma Vila que abastecia de açúcar e aguardente toda a província e exportava ainda em grande quantidade para a praça do Rio de Janeiro.”[ 1 ]

Com sua formação territorial firmada, Cachoeiro de Itapemirim apresentou uma intensa vida “de relações” com os valores “literários, teatrais, musicais e jornalísticos”. As respostas aos perigos e desafios vividos pela população era demonstrado com uma significação e lógica próprias através das criações de ambientes ricos em obras (entidades culturais) e em eventos “urbanos”.

O ensino primário data de 27 de julho de 1857, época em que foi instalada a primeira escola pública, e em 1866 circula o primeiro Jornal cachoeirense — O Itabira. Também são criadas as entidades culturais Tirocínio Literário (1867), sociedade marcada por uma curta duração em virtude da oposição que aderiram, e a Sociedade Literária Grêmio Bibliotecário Cachoeirense (1883), composta por fazendeiros, negociantes, padres e bacharéis, que mais tarde se tornaram propagandistas republicanos.

No jornal A província do Espírito Santo, de Vitória, edição de 19 de julho de 1883, noticiou-se o seguinte:

No dia 01 de julho de 1883 instalou-se, perante numeroso concurso de senhoras e cavalheiros, o Grêmio Cachoeirense. (…) O negociante Araújo Machado ofereceu gratuitamente uma propriedade para funcionar o Grêmio, além de cento e tantos volumes que doou. Os livros oferecidos já sobem a 1.000. E no dia 21 de outubro, instalou-se a aula noturna de primeiras letras mantida pelo Grêmio Cachoeirense a qual funcionará nas segundas, terças, quartas, sextas e sábados. (…) Foi nomeado diretor das aulas noturnas Dr. Joaquim Pires de Amorim.[ 2 ]

Com isso, o Grêmio passou a constituir um centro de interesse (uma sala de leitura com um formidável acervo literário), prestigiado pela população Cachoeirense, pois prestavam serviços educativos e sociais.

As apresentações teatrais tornaram-se freqüentes, o drama Helena (1882), a comédia Manda quem pode e O diabo a quatro (1881) e o boneco Manoel Gostoso (mágico) foram levados à cena nos dias de sábado para a comunidade. Em julho de 1883, a Companhia Óptica (família Boldrini e Corrêa) apresentou durante um mês espetáculos dramáticos brilhantes em Cachoeiro.

Conforme Oscar Gama, essas apresentações podem ser enquadradas na fase “familiar comunitária”,[ 3 ] pois eram apresentadas nas fazendas, praças, prefeituras ou em residências particulares. As poucas opções de diversão eram essas peças teatrais e, apesar das péssimas estradas e do atraso no recebimento de notícias e outros, eram criadas alternativas de lazer particulares para a comunidade.

Já em 1877, tem início o sistema de iluminação pública a querosene e no mesmo ano foi fundado o jornal O Cachoeirano, que serviu à coletividade até 1924. Seu destaque foi determinado pela contribuição ao Clube Republicano local na divulgação de suas idéias.

A ponte municipal, no dia 10 de junho de 1887 fora concluída e, no dia seguinte, a banda de música “Estrela do Norte” e muita gente compareceram à festa da inauguração.

Assim indicadores de mudanças pontilhavam a história social, econômica, cultural da vila de Cachoeiro de Itapemirim. Essas mudanças só podem ser compreendidas quando vinculadas ao desenvolvimento da produção cafeeira da região sul da província do Espírito Santo.

A produção cafeeira

A cultura do café permitiu um amplo desenvolvimento e uma expansão populacional à província do Espírito Santo. Essa cultura agrícola não foi desenvolvida exclusivamente no Espírito Santo, outras províncias já se encontravam envolvidas com ela, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro.

No Espírito Santo, em particular, a grande expansão cafeeira ocorreu de 1856 a 1872, com um maior destaque para a região sul do estado. Nesse período, segundo João Gualberto

…a grande expansão cafeeira concentrou-se na região sul, com uma estabilização da produção na região central e mesmo um retorno à cultura da mandioca na região de São Mateus. (1995:111)

Exportação de café (em arrobas)

REGIÃO 1851 1857 1859 1861 1867 1873 VAR.(%)
Itapemirim 18.600 23.287 46.770 62.813 125.254 141.654 661,58
Província do Espírito Santo 83.790 156.883 154.703 223.806 395.950 450.303 437,41
Província sem Itapemirim 65.190 133.596 107.933 160.993 270.696 308.658 373,47
Fonte: Relatórios dos Presidentes da Província.[ 4 ]

Quais foram os principais fatores que permitiram a expansão cafeeira no sul da província do Espírito Santo?

Primeiramente, Itapemirim apresentava condições naturais favoráveis ao cultivo do café (solo virgem resistente à erosão, fértil, clima úmido etc.) e terras desocupadas limítrofes com as regiões cafeeiras do Rio de Janeiro e Minas Gerais, atraindo mineiros e fluminenses para investirem recursos nessa região que apresentava condições propícias ao desenvolvimento e crescimento dessa produção agrícola.

…fazendeiros mineiros e fluminenses desmataram grandes áreas da floresta tropical ao longo do rio Itapemirim e ali fizeram fortunas. Nessa região foi construída em 1887 a primeira estrada de ferro da província, e a cidade de Cachoeiro de Itapemirim tornou-se florescente centro comercial voltado para o Rio de Janeiro.[ 5 ]

Há, portanto, uma estreita ligação entre povoamento e produção cafeeira no sul da província do Espírito Santo, o que infelizmente ocasiona uma subordinação direta às demandas da província do Rio de Janeiro e um deslocamento e perda das riquezas geradas para esse centro comercial. Essa subordinação se reflete também no processo de comercialização do café, que distinguiu a produção cafeeira do sul da das demais regiões da província.

O café era comprado por comissários do Rio, misturado por ensacadores ao do Vale do Paraíba e ao mineiro para formar o tipo Rio, e exportado por aquele porto. Parte da produção não passava sequer pelas repartições fiscais do Espírito Santo, sendo transportada diretamente das fazendas para a província vizinha, onde pagava o imposto.[ 6 ]

Curiosamente entre 1897 a 1910, com a longa crise cafeeira, os exportadores passaram adquirir, diretamente dos fazendeiros, o café para exportação, anulando o papel anterior do comissário que se encarregava de fazer essa intermediação. Foi com o surgimento da empresa de exportação Vivacqua e Irmãos — de propriedade de imigrantes italianos —, que o monopólio da comercialização do café produzido no sul do estado adquiriu expressão. Apesar disso, as relações sociais e econômicas de dependência da praça do Rio de Janeiro continuaram a existir e se reforçaram em 1903, com a ligação ferroviária entre Cachoeiro e Rio de Janeiro.

…tudo isso, ampliou as relações sociais e econômicas da província e criou novas categorias sociais, que possuíam outras demandas políticas. Essas categorias sociais, associadas às elites do café, participaram ativamente do movimento republicano e se transformaram no embrião de uma classe média. (Gualberto, 1995: 121)

Portanto, Cachoeiro de Itapemirim se tornou o centro de entroncamento de capitais em função do café e das idéias políticas republicanas.

O Clube Republicano

Foi um setor da população urbana de Cachoeiro de Itapemirim formado por profissionais liberais, pequenos proprietários, e jornalistas para o qual o regime monárquico representava um entrave, limitando as oportunidades políticas, econômicas e sociais. Foi estudando nas faculdades das províncias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais que esses elementos tomaram conhecimento das lutas pelos ideais republicanos nessas províncias. Joaquim Pires de Amorim, um dos principais propagandistas republicanos, teve contato com essas idéias estudando Direito em São Paulo. Na entrevista dada por seu neto, Joaquim Pires, pudemos perceber essa influência.

Já havia cursado seus estudos preparatórios no Rio de Janeiro. Mais tarde, matriculou-se na Faculdade de Direito de São Paulo, onde em 1862 se formou com os colegas de turma, como Prudente de Morais, Campos Sales, Bernardino de Campos e Rangel Pestana.

Ao proclamar-se a República, eles ficaram conhecidos como a “turma dos Republicanos Históricos”, e no início do século, no governo de Campos Sales, passaram a ser identificados como a “turma dos Estadistas”.

Assim, só a partir de 1870, quando o governo do Império validou os exames de preparatórios feitos nas províncias impulsionando a difusão do ensino secundário, foi que a mocidade capixaba se afeiçoou ao estudo das coisas da Pátria e pouco a pouco pode entrar no conhecimento das falhas da construção monárquica de 1824.

Por essa mesma época, saía do prélo de República, o Manifesto do Clube Republicano do Rio de Janeiro; e a impressão que a leitura desse documento político produziu nos espíritos juvenis foi de molde a empolgar os ânimos tão intensamente.[ 7 ]

A insatisfação pelo poder monárquico, provocou nesse grupo social o desejo de alcançar oportunidades de destaque na região de Itapemirim, entendiam que através da luta pelo idealismo republicano, conseguiriam substituir o governo estabelecido e construir uma nova nação.

Foi assim que no dia 23 de maio de 1887, fundou-se em Cachoeiro o Clube Republicano, na residência de Joaquim Pires de Amorim, onde atualmente está localizado o Colégio Cristo Rei. Através de comícios, reuniões e conferências, os princípios republicanos foram propagados e outros clubes foram fundados na província do Espírito Santo.

Não foram pequenos os embaraços que os republicanos tiveram que enfrentar na entrevista realizada com Joaquim Pires. Ele comentou curiosamente um fato de desentendimento entre monarquistas e republicanos em Cachoeiro, envolvendo Bernardo Horta, propagandista republicano exaltado. Ao pesquisar este fato, encontramos referências no livro de Manoel Gonçalves Maciel, Voltando ao Cachoeiro antigo:

…a 02 de dezembro de 1888, um desentendimento entre republicanos e monarquistas… Segundo consta nos registros, a Câmara Municipal de Itapemirim, nesse dia, promoveu uma festa em comemoração ao aniversário de Sua Majestade o Senhor Do Pedro II, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil. Dessas festividades, além de numeroso público, compartilhavam o então Presidente da Câmara Municipal, o tenente João Cândido Borges de Athayde, ex-combatente da Guerra do Paraguai, José Feliciano Horta de Araújo e toda a Guarda Municipal. (…) No calor das alegrias, distribuíam-se ao povo vinho e carne de boi. Chegando a tarde reuniu-se o povo na cabeça da ponte Municipal, ao lado norte, hoje praça Dr. Gil Goulart. No auge dos discursos eloquentes, o tenente Borges de Athayde e sua Guarda bradaram: FORA A REPÚBLICA! Isso ecoou como um insultante desafio a um grupo de republicanos que, de onde estavam, ouviam os brados dos monarquistas. Imediatamente se aproximaram deles e rebateram. Bernardo Horta, na liderança, gritou: VIVA A REPÚBLICA! FORA A MONARQUIA! (…) seguiram-se momentos de grande confusão. Alguns monarquistas exaltados ameaçaram jogar da ponte abaixo o revolucionário republicano Bernardo Horta.
Às vezes, numa família existiam simpatizantes dos dois regimes, por exemplo, o Dr. José Feliciano Horta de Araújo, partidário monarquista e um dos principais organizadores da referida manifestação, era o pai de Bernardo Horta. Portanto, pai e filho [eram] politicamente adversários.[ 8 ]

Realizou-se também em Cachoeiro de Itapemirim, no dia 16 de setembro de 1888, o primeiro Congresso Republicano do Espírito Santo, com a presença de todos os representantes dos clubes provinciais. A comissão permanente do Partido Republicano ficou assim composta: Eugênio Brandão do Vale, Afonso Cláudio, Pedro José Fernandes Medina, João Loiola, Bernardo Horta de Araújo.

Essa comissão seguiu para a corte, como delegada do Espírito Santo, ao Congresso Federal Republicano do Rio de Janeiro.

Foram então, nos três últimos anos, que precederam à queda do Império, que os princípios republicanos vinham evidentemente sendo pregados, com muito entusiasmo, no sul do Estado. A monarquia só serviu para iludir a lavoura, tendo sido roubados com os pretos, com a má lei de 13 de maio. Ficamos pobres e, por isso, a monarquia tome rumo; o governo deve ser feito pelo povo.[ 9 ]

As elites do café, que não viam mais razões para defender o sistema monárquico, passaram a apoiar os adeptos do movimento republicano.

Assim

…o programa republicano ia pouco a pouco integrando os grupos de interesses contrários à estrutura de poder que a monarquia mantinha. Assim, agiram poderosamente, condensando as contradições existentes: os conflitos na área militar, a campanha abolicionista, as exigências de descentralização e a ação propagandística dos positivistas. Seus efeitos se fizeram presentes na estrutura global da Formação Social Brasileira com a posterior mudança do Regime político.[ 10 ]

A insatisfação geral e o desgaste da imagem do governo imperial foram as “molas” necessárias à divulgação dos ideais republicanos em Cachoeiro de Itapemirim. Os apelos à luta pela liberdade, igualdade e participação ofereciam um saída aos vícios (lentidão do sistema, excessiva centralização, longevidade de alguns segmentos políticos e a corrupção) praticados pelo governo imperial e denunciados pelos republicanos.

O movimento Republicano foi produto de uma certa modernização do sistema social, ao mesmo tempo em que se alicerçou, paradoxalmente, em antigas relações imaginárias.[ 11 ]

A patronagem (amparo, proteção e patrocínio) política era um dos principais interesses dos republicanos frente a política local. O sul representava um forte distrito eleitoral, para alcançar o objetivo de participação nas casas legislativas locais. Quando proclamada a República, as elites regionais, promoveram a divisão do poder político.

Alguns políticos, curiosamente, que não eram adeptos da República, aderiram a ela repentinamente (manifestações espontâneas de adesismo), e outros, que realmente lutaram pela campanha Republicana, se decepcionaram com os resultados políticos. Segundo entrevista realizada com Joaquim Pires do Amorim

Depois de proclamada a República, houve um período de adesão. Muniz Freire que era monarquista convicto, torna-se republicano. O voto secreto e a revisão constitucional foram de seu interesse para projeção política (…) mas que cabia aos republicanos de fato essa luta.

Assim, Muniz Freire nunca havia apoiado o movimento que lutava para a implantação da República, no entanto, em maio de 1892 a Assembléia estadual o elegeu presidente e ele se tornaria o líder político do Estado por mais de dez anos, tendo ocupado por duas vezes a presidência do Estado. Nas eleições de 4 de março de 1906, seus correligionários saíram vitoriosos.

Essas manifestações de adesão ao novo regime político, precisam ser entendidas como instrumento decisivo para a participação pessoal na política local, e foram justificadas através de uma prática carregada de significados e emoção, institucionalizando códigos e princípios baseados na patronagem política.

Levantamento oral — entrevista

(Transcrição da fita cassete de entrevista feita com Joaquim Pires de Amorim, neto de Joaquim Pires de Amorim, um dos fundadores do Clube Republicano de Cachoeiro de Itapemirim. Data da entrevista: 03/09/99)

Deane: Primeiramente perguntas sobre os dados biográficos. Onde nasceu e cresceu Joaquim Pires de Amorim?

J.P.A: Ele Nasceu em Passa Três (Rio de Janeiro), filho do português José Pires de Amorim e Joaquina M. de Oliveira, família tradicional na magistratura (Rio de Janeiro), os Oliveira. Aos 14 anos Joaquim veio para aqui, seu pai tinha adquirido a fazenda Boa Esperança. Já havia cursado seus estudos preparatórios no Rio de Janeiro. Mais tarde, matriculou-se na Faculdade de Direito de São Paulo, onde em 1862 se formou com os colegas de turma como Prudente de Morais, Campos Sales, Bernardino de Campos e Rangel Pestana.

Ao ser proclamada a República eles ficaram conhecidos como a “turma dos Republicanos Históricos” e no início do século, no governo de Campos Sales ficaram conhecidos como a “turma dos Estadistas”.

Assim veio advogar em Itapemirim (Cachoeiro era subordinado a Itapemirim). Foi eleito, aos 28 anos, Deputado provincial (1866-1868). Talvez pelas idéias republicanas, ele foi advogar em Vitória, onde foi procurador fiscal. Lecionou no Ateneu (Vitória).

Foi nomeado Juiz Municipal de Obras (1868-1886). Havia uma prática de recondução, e como ele tinha idéias republicanas, não foi reconduzido. Passou a advogar em sua residência, onde começou a se dedicar à Propaganda Republicana em 1887 — sua residência era a antiga chácara do Gil Goulart e atualmente é o local onde funciona a Escola de Filosofia.

Esteve participando do Congresso Provincial Republicano. Veio o movimento Republicano e ele quis retornar a magistratura, então foi nomeado Juiz de Direito de São Mateus.

Criada a Justiça Federal, Joaquim foi eleito o primeiro juiz Federal do Estado do Espírito Santo. Assumiu em Vitória, onde legislou até se aposentar em 1905.

Deane: Como se deu a aceitação dos pais — José Joaquim Pires de Amorim e Joaquina M. de Oliveira — no tocante à participação do filho, Joaquim Pires de Amorim, nos movimentos republicanos?

J.P.A: Eu me lembro que quando veio o primeiro Clube Republicano, meu bisavô já havia morrido. Seus irmãos, Eugênio e Emiliano, eram monarquistas e conservadores. Dona Joaquina conversava sobre o assunto. Diogo e Joaquim eram republicanos exaltados. Depois de proclamada a República, houve um período de adesão, e assim, Muniz Freire, que era monarquista, tornou-se republicano. O voto secreto e a revisão constitucional foram de seu interesse. (…) cabia aos republicanos, de fato, essa luta.

Mas Muniz Freire era culto, enquanto Jerônimo Monteiro era um grande articulador dos interesses, e deixou o Estado financeiramente prejudicado, mas valorizou Vitória, capital ainda com dificuldades de infraestrutura.

Curiosamente, Dona Maria Stella de Novaes, recomendava que, ao sair por Vitória pela noite, era necessário guarda-chuva.

Deane: Quais eram os principais interesses defendidos pelos republicanos?

J.P.A: Primeiramente, queriam a adoção do sistema federativo e a chance de participarem nas casas legislativas. As províncias não tinham autonomia e os seus presidentes eram nomeados. Depois de proclamada a República, como não havia ainda nada organizado politicamente, Afonso Cláudio fora nomeado. Depois vieram as eleições.

Deane: Como se deu o processo de propaganda do Clube Republicano, além do jornal O Cachoeirano? J.P.A: Comícios, reuniões e encontros que buscavam adesão popular em Cachoeiro de Itapemirim. Parece que não foi nada, mais repercutiu muito no Brasil o processo de abolição da escravidão. Provocou desgosto dos monarquistas e engrossou as fileiras republicanas.

De um modo geral, quase todos os republicanos eram abolicionistas. Em Cachoeiro de Itapemirim, os republicanos não pregavam o fim da escravidão, mas admitiam a causa e a necessidade, como uma forma de tolerância.

Deane: Após proclamada a República, quais foram as atuações políticas locais alcançadas pelos republicanos?

J.P.A: No dia 6 de dezembro de 1889, Cachoeiro de Itapemirim foi elevada à categoria de cidade. Alegre se separou de Cachoeiro de Itapemirim. O Curioso é que em 25 de março de 1867, Cachoeiro se separou de Itapemirim, mas a designação Cachoeiro de Itapemirim continuou.

Domingos Martins, um mártir para a República

A missão do historiador não é lisonjear, nem adular a ninguém, e menos aos vivos no País. (Francisco Adolfo de Varnhagen)
Heróis são símbolos poderosos, encarnações de idéias e aspirações, pontos de referência, fulcros de identificação coletiva. São, por isso, instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de regimes políticos. Não há regime que não promova o culto de seus heróis e não possua seu panteão cívico”.[ 12 ]

Se pesquisarmos as datas comemorativas e os rituais tradicionais de nosso Estado, perceberemos que no dia 12 de junho é celebrado a morte de Domingos José Martins, definido como um “herói capixaba”.

Quem entra no antigo prédio da Assembléia Legislativa do Espírito Santo se depara com a estátua de um homem que dá nome ao palácio, onde está sediado o Legislativo Estadual — Domingos Martins, respeitado como mártir e catalogado entre os heróis da libertação do Brasil, figura ao lado de nomes como o de Tiradentes, na lista de “traidores” que Portugal mandou executar nos séculos 17 e 18.[ 13 ]

Na praça Dr. João Clímaco no Centro de Vitória, encontramos um monumento de homenagem à Domingos Martins. Constituído por um busto de bronze e que está amparado pela “liberdade”, representada pela figura de uma mulher. O Monumento está bem talhado sob um pedestal de granito, e está inscrito a seguinte frase: “Vinde executar as ordens de vosso sultão e morro pela liberdade.”

Nos livros didáticos sobre a História de nosso Estado, utilizado pelas séries iniciais do Ensino Fundamental encontramos:

12 de Junho de 1817 — refere-se ao dia do fuzilamento daquele que é considerado o maior herói espírito-santense, Domingos José Martins. Nascido no município de Itapemirim, no sul do Estado, foi ele um dos chefes da Revolução Pernambucana que pretendia transformar uma parte da Região Nordeste num país, quando o Brasil ainda não era independente de Portugal. Domingo José Martins foi Fuzilado na cidade de Salvador, Bahia.[ 14 ]

Em Pernambuco, ele se aliou aos revolucionários que dominaram o Governo e proclamaram uma República.[ 15 ]

Também no livro O Estado do Espírito Santo e os espírito-santenses, de Eurípedes Queiroz do Valle, Domingos Martins é destacado como o primeiro herói capixaba.

Então, quais foram os verdadeiros conteúdos iniciais e razões de perpetuação que devem ser somados à figura de Domingos José Martins? Como surgiram e como se estabeleceram essas construções simbólicas?

Todas essas tradições e formulações simbólicas construídas e formalmente institucionalizadas sobre a figura de Domingos Martins promovem o culto ao passado. Preenche o calendário local e as produções culturais num “tom” festivo e saudosista (as lembranças de um passado), que se perpetuam através das “tradições inventadas”. Essas forças tradicionais agem de modo decisivo sobre os valores sociais da comunidade capixaba.

…inculcam certos valores e normas de comportamento através da repetição e perpetuação, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado.[ 16]

Assim, a memória, materializada em seus símbolos, é a escolha de acontecimentos de outros tempos que ser lembrar. São escolhas feitas por grupos sociais que possuem poder ou estabelecem acordos para atuarem na construção temporal e histórica do mundo e das sociedades.

Nas sociedades de classe, a história faz parte dos instrumentos por meio dos quais a classe dirigente mantém seu poder. O aparelho de Estado procura controlar o passado, simultaneamente, no nível da política prática e no nível da ideologia. O Estado e o poder organizam o tempo passado e moldam sua imagem em função de seus interesses políticos e ideológicos.[ 17 ] O historiador José Murilo de Carvalho, no seu trabalho sobre a construção do imaginário republicano brasileiro, conta:

Só quando se voltou para tradições culturais mais profundas, às vezes alheias à sua imagem, é que [a idéia republicana] conseguiu êxito no esforço de se popularizar. Foi quando apelou à independência e à religião, no caso de Tiradentes; aos símbolos monárquicos, no caso da bandeira; à tradição cívica, no caso do hino. Eram freqüentes as queixas dos republicanos em relação à falta de capacidade do novo regime de gerar entusiasmos. Em maio de 1890, um deles escrevia na Revista Ilustrada que, seis meses passados desde a proclamação, quase não se via a nova bandeira. Os símbolos monárquicos, continuava, ainda se viam em quase todos os edifícios públicos. O articulista apelava ao governo para que se esforçasse mais por despertar o entusiasmo nas almas, por meio desses poderosos instrumentos de propaganda. (CARVALHO 1990: 128)

Na Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, de 1917, n. 95 a 98, encontra-se o ato de oficialização da bandeira revolucionária de 1817 como a bandeira do atual Estado de Pernambuco e com os respectivos comentários:

…o governador do Estado, considerando que Pernambuco vai celebrar a 06 de março próximo o primeiro centenário de Revolução de 1817, que antes do Império proclamou o Brasil o sistema republicano.
Considerando que tal celebração, tem tido a mais simpática repercussão no país, a ele aderindo não só os municípios do Estado, como a maior parte dos estados da União, assim reconhecendo que esse movimento (…) visava e realizou, a Independência Nacional. (…) considerando que o sangue de mártires de então não foi derramado em vão, (…) entre seus ideais democráticos, contou com o governo civil representado pelas classes, independência da magistratura, (…) liberdade religiosa, liberdade de opinião.[ 18 ]

Assim, a memória coletiva é posta em jogo em prol de lutas das forças sociais pelo poder. A pequena densidade histórica de 15 de novembro no Brasil, não forneceu terreno adequado para a germinação de mitos.

No caso capixaba, Domingos José Martins foi o candidato óbvio ao papel de herói republicano, participou de um movimento que se confundia com impulsos libertários e de civismo, elementos que se tornam “senhores da memória” quando bem recuperados.

Cabe, portanto, ao ensino de História apontar para a direção da construção de conhecimentos críticos e desconstrutores da universalização da história humana, resgatando as diferenças de interesse de grupos e de indivíduos.

Bibliografia

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VIANA, Oliveira. O acaso do Império. Recife: Massagana.

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NOTAS

[ 1 ] MARINS, Antônio. Minha terra e meu município. Rio de Janeiro: 1920.

[ 2 ] MACIEL, Manoel Gonçalves. Voltando ao Cachoeiro antigo. Vitória: Gráfica e Editora Gracal, s/d. p.156.
[ 3 ] GAMA, Oscar. História do teatro capichaba: 395 anos. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1981. p.32.
[ 4 ] SALETTO, Nara. Transição para o trabalho livre e pequena propriedade no Espírito Santo (1888-1930). Vitória: Edufes, 1996. p.32.
[ 5 ] BANCK, Geert. Dilemas e Símbolos: Estudos sobre a cultura política do Espírito Santo. Vitória: Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, 1998, p.46.
[ 6 ] Idem. SALETTO, p.36.
[ 7 ] FREIRE, Mário A. A República no Espírito Santo, Separata da edição da Revista Instituto Histórico Geográfico do Espírito Santo, Comemoração do cinquentenário da Proclamação da República, 1939. p. 4-5.
[ 8 ] Idem, MACIEL, p. 185.
[ 9 ] Idem, FREIRE p.13-4.
[ 10 ] ALBUQUERQUE, Manoel Maurício. Pequena história da formação social Brasileira. Rio de Janeiro: Gracal, 1984. P.420.
[ 11 ] GUALBERTO, João. A Invenção do coronel: ensaio sobre as raízes do imaginário político brasileiro. Vitória: SPDC, 1995. P.121.
[ 12 ] CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o Imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 55.
[ 13 ] CONTEXTO Jornalismo e Assessoria Ltda. Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo: Assembléia Histórica. Vitória: 1996, p. 09.
[ 14 ] KILL, Miguel A. Estado do Espírito Santo: Estudos Sociais 1º Grau. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 59.
[ 15 ] MORAES, Lídia Maria de; AROEIRA, Maria Luísa C.; e CALDEIRA, Maria José. Gente, terra verde, céu azul : Espírito Santo. São Paulo: 1989, p. 68.
[ 16 ] HOBSBAWM, Eric. & RANGER, Terrence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p. 09.
[ 17 ] CHESNEAUX, Jean. Devemos fazer tábua rasa do passado? — Sobre a história e os historiadores. São Paulo: Ática, 1995, p. 28.
[ 18 ] BAHIENSE, Norbetino. Domingos Martins e a revolução Pernambucana de 1817. Belo Horizonte: Littera, 1974, p. 75.

[Reprodução autorizada pela autora.]

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Deane Monteiro Vieira Costa é professora de História e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo

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