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Cadê Paris?

Onde está Paris? Procuro a cidade encantada nos grandes planos e nos pequenos detalhes. Não a encontro. Paris não pode estar neste chope quente e nesta medíocre entrada servida num pires de porcelana que tenta ser sofisticado. Muito menos nesse garçom com ar de fastio e com um mau humor que definitivamente não é um bom tempero para o possível prato que seria pedido. Seria.

O Boulevard des Capucines está lotado de pessoas que provavelmente estão com o mesmo problema meu. Impressão?

O mito vai sendo arranhado com vigor enquanto procuro avançar pelas bordas da noite parisiense. A cada decepção, uma dor quase física, uma espécie de mutilação de uma segunda natureza construída durante décadas, sonhada desde o tempo em que o 14 de julho era feriado escolar e cantávamos a Marselhesa. Onde estão os inebriantes perfumes enchendo o ar das ruas repletas de belíssimas mulheres com seus colares faiscantes, seus sapatos altos, pernas perfeitas, pescoços de cisne real e andar de pantera como determinava o catálogo do adolescente que sonhava com Paris? Nada disso. O que vejo são desengonçados manequins subindo e descendo os Champs Elysées como figuras intrusas e do mais profundo mau gosto.

Deve haver um engano. Mas, de repente, me lembro que tudo pode estar ligado a um simplório mal de estômago causado pelas agressões culinárias da comida de avião em meu rústico paladar. Pode ser. Pode não ser. Por via das dúvidas, dou por encerrado este primeiro reconhecimento do território parisiense e vou dormir.

Acordo. Entranhas, em ordem

Um sol brilhante ilumina a fachada do Café de la Paix. Reinicio a busca quase patética do comutador que possa me ligar à cidade. Mas, dentro do café, tenho a impressão, permanecem as mesmas pessoas de ontem. Parecem desencantadas com alguma coisa. A maior parte do tempo ficam imóveis, sentadas naquelas cadeiras, tendo à frente xícaras de café ou compridos copos que afinal podem conter qualquer coisa, já que não os tocam. É como se fossem pessoas anestesiadas. Mal conversam umas com as outras. Muito estranho. Volta a suspeita de ontem. Será que, como eu, elas estão ali esperando que Paris surja de algum lugar? Aguardando talvez um maître que possa explicar o que está acontecendo. “Não, messieurs, isto não é Paris verdadeiramente. O original se encontra em oficinas especializadas com vistas a urgentes reparos. Pedimos desculpas aos nossos amáveis visitantes mas não tivemos alternativa. Os serviços de manutenção eram inadiáveis. São séculos e séculos de assédio permanente de turistas. Nossas mais sinceras desculpas.”

Desperto da fantasia muito mais fantasiosa do que se possa imaginar, ou seja, de um maître parisiense descer de seu pedestal para falar daquela maneira.

Subitamente me lembro de Ernest Hemingway, que, aliás, foi um dos forjadores dos mitos parisiense desde a “geração perdida”, depois da Primeira Guerra. É verdade que, depois, ele se encarregou de quebrar auréolas de gente como Fitzgerald, Ford Maddox Ford, Gertrude Stein, etc. Não foi o melhor momento de Hemingway como pessoa. Fiquemos com o outro, o papa Hemingway, aquele barbudo que vinha, com um rifle nas mãos, marchando sobre uma Paris ocupada pelos alemães. O dia da vitória se aproxima. Papa Hemingway vem descendo o Boulevard, liquidando boches como moscas. Em sua vitoriosa marcha em direção aos Champs Elysées, ao Arco do Triunfo, faz uma pausa, senta-se numa das mesas da calçada do Café de la Paix, lenço ensanguentado na testa, encosta o rifle numa cadeira e vai engolindo sucessivos copos de brandy enquanto os circunstantes aplaudem o herói libertador.

(Creio que Hemingway era tão bom escritor que seus histrionismos podem ser desculpados.)

Então, me lembro que estou em Paris já no começo do segundo dia e as coisas continuam acontecendo como se eu estivesse do outro lado do Oceano, là bas. Continuo a imaginar “como será Paris?”, a “margem esquerda” e congêneres. Como pagamos por dois sorvetes, um copo de leite, um refrigerante e um café um valor suficiente para um jantar em bom restaurante de São Paulo, penso que as despesas para consertar a cidade verdadeira devem estar muito altas e, por isso, o governo instituiu um imposto adicional sobre tudo que um incauto turista precisa para sobreviver.

Até agora ninguém veio me cobrar nada por ter avistado a Torre Eiffel por trás de um arvoredo da Praça da Concórdia. Uma inesperada visão estimulante. Vou acalentando aquela visão com muito carinho, quase colocando as mãos em concha para que a débil chama não se apague dentro dessa ventania de mal-entendidos.

Mas agora preciso de uma pausa.

Atravesso rapidamente a grande praça e entro na Rue des Mathurins onde está nosso hotel.

Na recepção, vejo que o pomposo porteiro da manhã foi substituído por uma senhora. Ah, sim, uma concierge como nos romances de Dumas. Pessoas sempre amáveis e compreensivas.

Não, não. Deve ser uma concierge iniciante porque essa aí é ainda mais pomposa que o porteiro. De modo que…

[In Novas crônicas de Roberto Mazzini, da “Coleção Gráfica Espírito Santo de Crônicas”, em 2003.]

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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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