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Cantares zombeteiros ou canções de escárnio

Pedro entrou na sua sala com seu passo tímido,
tomou seu cafezinho como se fosse o último,
traçou um cigarrinho como se fosse o único,
ligou a Olivetti como se fosse um mágico,
escreveu seu relatório com estilo sóbrio,
palavra por palavra num contexto lógico,
expondo suas idéias com argumentos sólidos,
releu o relatado com seu olho clínico,
sorriu do que escrevera com um sorriso fino,
fechou o relatório com assinatura curta,
desligou a Olivetti com um gesto sóbrio,
apagou o cigarrinho num movimento mágico,
saiu da sua sala com seu passo único,
esbarrou em dona Lenilda num encontro sólido,
desculpou-se com a faxineira com um sorriso tímido,
ajudou-a a recompor-se com cuidado clínico,
declarando-se desastrado com argumentos lógicos,
jurando que o esbarrão ia ser o último,
sabendo que o juramento teria vida curta
e ficou a paródia sem lugar pro fino.

“Seu Pedrinho, que coisa feia!” reclamou a faxineira.

“Mas eu pedi desculpas pelo esbarrão,” disse o escrivão.

“Não estou falando do esbarrão. Estou falando daquilo ali,” e o pequeno indicador da faxineira apontou timidamente para o livro que Pedro deixara sobre a mesinha da Olivetti.

“Cantáridas é um livro de poesia, Lenilda!”

“Eu sei que é. Só que dei uma olhadinha nele e achei uma indecência. Até que a capa é bonitinha, e foi ela que chamou minha atenção. Parece o desenho de uma boneca de pano, das que eu tinha quando era menina. Mas dentro dele, seu Pedrinho, que asqueroso!” e Lenilda escondeu a cara nas mãos, em sinal de repúdio ao que tinha lido.

“Não precisa ficar envergonhada, minha amiga,” disse Pedro com ares professorais.

“Sinto muito, seu Pedrinho, mas estou decepcionada. Nunca pensei que o senhor gostasse de ler essas nojeiras!”

O escrivão achou que o caso merecia maiores explicações para que a amiga não o julgasse erroneamente.

“Vamos conversar debaixo do cajueiro,” disse ele, puxando a mulher para o quintal da delegacia, depois de pegar, em sua mesa, o exemplar de Cantáridas. “Vou lhe mostrar que não é nada do que você está pensando.”

“Será?”

“Será não, é.”

Embaixo do cajueiro, sentaram-se lado a lado no banquinho de madeira que resistia às intempéries das chuvas e trovoadas e às da própria delegacia de polícia. Pedro pegou o exemplar de Cantáridas, ergueu-o para o alto com ambas as mãos como se elevasse um objeto sagrado em direção ao céu, e indagou: “Sabe, Lenilda, que tipo de poesia tem dentro deste livro?”

“Não sei, nem quero saber,” respondeu a mulher, encarando o escrivão.

“Mas eu vou dizer: é poesia de alta qualidade! Pode não parecer, mas é. Um tipo de poesia especial, chamada fescenina, que antes que você pergunte do que se trata, explico que é poesia de deboche. É indecente também, como você viu, mas de deboche. Aliás, é de deboche porque é indecente, feita com a intenção de chocar as pessoas.”

O escrivão deu uma freadinha no discurso de erudito, viu que Lenilda estava atenta à sua fala, e prosseguiu, explorando-lhe a curiosidade.

“Na Idade Média, esse tipo de poesia era chamada canção de escárnio. Você sabe o que foi a Idade Média?” E Pedro dava-se ares de sabichão, ao fazer a pergunta.

“Foi o tempo dos castelos e das cruzadas? Pelo menos é o que eu já vi em filmes,” respondeu Lenilda.

“Você está certíssima. Nesse tempo havia declamadores chamados jograis, que recitavam versos ao som de violas, ou banjos, ou algo parecido, como se fossem canções. Algumas canções eram de escárnio ou de mal-dizer, e desancavam com as pessoas. Cantáridas, que aqui está (e Pedro elevou novamente o livro com as mãos bem cuidadas, dignas de um sacerdote), vem desse estilo de poesia, feita para debochar das pessoas, sobretudo as que aparecem nos sonetos.”

“E as pessoas que estão nos versinhos de Cantáridas são reais?” quis saber Lenilda.

“Você pode não acreditar, mas são, embora já tenham morrido.”

“E faziam versinhos daquele jeito umas para as outras?”

“Faziam…”

“E continuavam amigas?…”

“Continuavam, Lenilda. Elas faziam os versinhos, como você diz, porque eram amigas, e até parentes. Se não fosse assim, iam acabar se matando.”

“Então aquele tal de Lapisluzinha existiu mesmo?”

“Lapisuinha, minha amiga, é o nome correto, aliás, o apelido. Ele aparece em vários sonetos. Por sinal, era um médico muito conhecido.” Pedro pegou Cantáridas, correu o dedo pelo índice e chegou à página 57. “Veja como a estrofe inicial deste soneto descreve Lapisuinha:

“O largo queixo, saliente e vasto,
Atesta bem o seu viver fradesco,
Por onde passa o D. Juan nefasto,
Foge a donzela e se oculta o fresco…”

“Recitado pelo senhor, seu Pedrinho, fica até legal,” admitiu Lenilda. “Mas eu acho que esse é o pedacinho menos nojento do livro. Tem uns versos que falam num índio chamado Crininquinho, que Deus me livre!…”

“Não é Crininquinho, Lenilda, é Crinquinim. Era o apelido de um dos autores dos sonetos. Eu não disse que eles faziam versos obscenos, debochando uns dos outros? ‘O Canto do Piegas’, que é o nome do soneto, é um exemplo dessa gozação entre eles. Por sinal, cada poesia tem a sua explicação no fim do livro.”

“E aquele Albertão, que deu um arroto num jantar, também existiu?”

“Albertão sim, o arroto não. Mas o arroto caiu de bandeja, no soneto. Ouça o começo dele. Voltando ao índice, Pedro chegou rapidamente ao que queria:

“Albertão arrotou. Findou-se a janta.
E co’a perna colada à perna dela, …”

Lenilda deu um risinho malicioso e comentou: “Que é gozado é. Foi uma roçadinha de perna embaixo da mesa, não foi? Parece que estou vendo as duas puãs se esfregando…”

“O mais engraçado, Lenilda, é que a dona da perna, ou da puã, como você disse, era uma declamadora famosa, que deu um recital de poesia em Vitória e forçou a venda dos bilhetes para o jantar de sua apresentação.”

“Essa do Albertão até que foi boa. Mas as outras, seu Pedrinho, não sei não… Eu me lembro de uma que começa perguntando ‘vamos brincar de bode e de cabrita?’, que me deixou vermelha como um rabanete…’

“É uma das minhas preferidas, minha amiga, tanto que a sei de cor.” E Pedro pôs-se a recitá-la, emproado como um declamador de antigos rega-bofes literários:

“Vamos brincar de bode e de cabrita?”
Pergunta o fanchotinho garanhão.
E fazendo ‘bé bé’ o bode imita …

“… mas, espera aí, Lenilda, pelo que eu estou vendo você leu o livro todo!…” – e o declamador de rega-bofes fixou na faxineira seus olhos interrogadores e ladinos.

“Todo, não, só um versinho ou outro, porque fiquei com medo de chegar gente e me pegar com o livro na mão….” confessou a faxineira meio encabulada.

“Ficou com medo de ser flagrada com Cantáridas? Por isso não seja, Lenilda! Leva o livro para ler em casa… Mas não se esqueça de que é uma obra preciosa, com dois ‘vês’: vai e volta.”

“Já que o senhor insiste, seu Pedrinho…” E a faxineira pegou o exemplar de Cantáridas antes que o escrivão se arrependesse da oferta feita. Com o livro na mão, examinou o desenho da capa, que se espicha pela contracapa, e comentou, embevecida: “Não é mesmo uma gracinha esta bonequinha?”

“Não é não, Lenilda! É um polichinelo horrível e sem-vergonha,” contrapôs Pedro, dando por encerrado o colóquio sobre Cantáridas ao pé do cajueiro da Chapot Presvot, 272.

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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