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Capítulo I



O fenômeno imigratório. Tentativa de reconstrução histórica referências de Graça Aranha, Augusto Lins e Virgínia Tamanini. Por que emigram os italianos.
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A migração foi o fenômeno sócio-econômico mais importante do século passado, sob o aspecto demográfico.

Foi o imperativo racial resultante do novo mapa europeu traçado pelo Congresso de Viena, em 1815, após as guerras napoleônicas, que culminaram, em 1870, com o surgimento do império da Alemanha, da monarquia dual da Áustria-Hungria, do Reino da Itália e da independência dos Países Baixos. A integração resultante destes novos Estados gerou conflitos internos, alterações estruturais, empobrecimento público e, como conseqüência lógica, a falta de teto, o desemprego e a fome.

Os camponeses, os artífices e trabalhadores não qualificados são as primeiras vítimas em todas as transformações sociais. O fenômeno avultou em verdadeira calamidade nacional, notadamente na Alemanha e na Itália.

Para o excesso de população só há um remédio: emigrar. Sacrifício supremo: abandonar sua pátria, seus familiares, seus amigos, seus amores, suas aldeias nativas; trocar sua língua e seus hábitos ancestrais. Aventurar-se aos azares do destino, às vicissitudes surpreendentes do desconhecido.

Mas para muitos havia o desejo romântico da aventura, da conquista de fortuna fácil, do retorno jubiloso e rico a desafiar os antigos senhores, a arrogância dos príncipes latifundiários que os haviam explorado, a eles e a seus antepassados, e também os agentes do fisco, arbitrários e petulantes. Enfim, havia a grande legião dos que, já desamparados, não tinham opção: encontrar trabalho a qualquer preço para sobreviver.

Por feliz coincidência, as Américas precisavam movimentar suas riquezas latentes, manter o ritmo de crescimento, desbravar seus territórios descomunais, ganhar os mercados consumidores que se alargavam.

Desde o começo do século XIX recrutavam-se, com ágios, trabalhadores rurais e artífices qualificados para as duas Américas. A propaganda intensificou-se, nos países europeus, justamente no auge da crise da consolidação dos novos estados soberanos, isto é, depois de 1860.

Foi sob esse clima excepcional que se iniciou o êxodo em massa dos italianos para o Novo Mundo.

Para o nosso estudo, simples contribuição sentimental à memória dos primeiros destemidos aventureiros da sorte, que deixaram para sempre a histórica península itálica, abstemo-nos de invocar os tratados e protocolos que os induziram, em grande número, a eleger o Espírito Santo para pátria sua e de seus filhos.

O que se vai ler é um pequeno histórico das aventuras e dos sofrimentos, das lágrimas e grandezas, dos triunfos e dignidade da integração racial, do imigrante italiano com o generoso povo do Espírito Santo, do qual somos parte integrante por feliz determinação da vontade de Deus. Somos todos brasileiros, da pátria feliz da fartura e da liberdade.

Mas a imagem da Itália romântica, cavalheiresca, gloriosa e civilizadora não se apagou. Ela bruxuleia no nosso subconsciente. Comprazemo-nos em senti-la próspera, respeitada e engrandecida.

Não é fácil reconstruir o fenômeno imigratório no Espírito Santo, com a intensidade com que ele eclodiu. Nosso principal cronista, Basílio Daemon, presente aos trinta primeiros anos da chegada das diversas levas estrangeiras, se limita a registrar, com imprecisão, o número e a nacionalidade, o nome do barco e a região onde foram localizados os imigrantes.

A imprensa, inteiramente política, quase desconheceu o acontecimento social da maior importância, que iria modificar a estrutura básica da província.

As autoridades convencionais se limitaram ao censo demográfico. É pouco para um estudo, um levantamento retrospectivo. As fontes informativas, raras e difíceis. Nosso Instituto Histórico é jovem e, por conseguinte, carente ainda de documentos. Museus, o Estado só veio a constituí-los ontem, em relação ao acontecimento centenário. Começam apenas a nascer as sociedades de cunho memorativo e de congregação racial.

Todo desbravamento ou pioneirismo cria heróis, vive dramas, gera legendas.

Recordar esses heróis, reviver esses dramas e preservar essas legendas é engrandecer, para a posteridade, o patrimônio cultural do povo.

A história se constrói com a seqüência dos acontecimentos no espaço e no tempo. Ela concatena a transmutação da raça.

O estudo das ciências sociais, não obstante o devotamento do professor Renato Pacheco em difundi-las em nosso Estado, com ensaios significativos, só foi aí introduzido há poucos anos, nos cursos superiores. A semente está lançada e germina, porém, as safras minguadas ainda para que se exponham à degustação pública.

O fenômeno da imigração italiana, que afetou, marcadamente, o panorama sócio-econômico da nossa província, no último quarto do século passado, está formulado. Ninguém até o presente se atreveu a pesquisá-lo em profundidade. É tarefa que os professores de sociologia e seus discípulos devem enfrentar. O assunto é sedutor. Há testemunhas ainda vivas e muito material a ser coletado. Compete a esta geração reverenciar aqueles heróicos aventureiros, que se despediram para sempre de seus maiores, suas aldeias e sua pátria, em busca de felicidade, enfrentando a imponderabilidade do destino.

Comemorar-se-á o centenário da vinda das primeiras caravanas recrutadas, nos altiplanos da Itália milenar, por Pietro Tabacchi, em convênio com o Ministério da Agricultura, de 31 de maio de 1872. É dever de gratidão e júbilo, não só dos ítalos-brasileiros como do próprio governo do Estado, promover estudos e festejos que relembrem acontecimento de tanta importância.

Imigrantes foram meus pais. Guardo nos escaninhos da memória os transes angustiantes, entremeados de lágrimas e desânimos, até que raiasse a primavera alegre da esperança.

Quero hipotecar minha solidariedade póstuma, meu reconhecimento, a toda aquela falange pobre de dinheiro, mas rica de idealismo e amor à família. Não herdei documentos, mas ouvi, desde a minha infância, distante de setenta anos, a litania pungente dos mistérios dolorosos, recitados com emoção resignada, dos que tiveram coragem, perseverança e fé.

Em homenagem a todos os italianos que, com suor e lágrimas, fertilizaram o solo do Espírito Santo, para que seus filhos sorrissem, cantassem e vivessem melhores dias, escrevo estas páginas.

Graça Aranha, no imortal Canaã, escreveu a partitura sinfônica do melodrama da imigração no Espírito Santo. A grandeza telúrica do cenário, o capricho surpreendente da orografia desordenada, as montanhas ora desnudas, ora encobertas por soberba floresta tropical, as águas cantantes e despedaçadas por tombos contorcidos, os vales divagentes e iluminados furtivamente por raios de sol, são o leit-motiv da obra, de tecedura fortemente colorida de panteísmo. O colono desbravador é apenas um comparsa, uma pausa na viagem deslumbrante de Milkau e Lentz.

Milkau, personagem central, filosófico e doutrinário de Graça Aranha, discorre e concatena a cultura haurida em Recife. Lentz o contradita para despertar-lhe novos temas. E o diálogo descamba para a análise global da civilização que deve surgir. É o profético anúncio da terra da promissão.

Augusto Emílio Estelita Lins, o poeta, jurista e psicólogo erudito, com sua obra crítica e interpretativa — Graça Aranha e o Canaã —, prestou incalculável serviço, não só às letras brasileiras, como para a anatomia topológica da imigração teuto-italiana em nosso Estado. Identificou e ouviu muitos daqueles tantos pequenos e humildes personagens que Graça encontrou em sua viagem deslumbrante. É um subsídio inestimável.

Virgínia Tamanini romanceia melhor o imigrante. Viaja com ele e com ele desbrava a mata. Luta e sofre e chora os mortos. Persevera e canta os dias alegres de bonança. Karina simboliza uma das tantas famílias que seguiram o curso diário daquela vida, com as nuances inesperadas dos acontecimentos. Encarna o realismo do matriarcado da mulher italiana, enérgica, resoluta e amorosa.

Este ensaio, já disse, é o meu depoimento, a seqüência das imagens que se formaram, na minha pré-adolescência, geradas pelos colóquios e diálogos do pequeno mundo em que evoluí. A colaboração de amigos, a pesquisa nos arquivos e publicações de estudiosos da formação de seus municípios, respondem por esta monografia.

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Por que emigraram os italianos? Porque a fecundidade da raça foi superior à produtividade e superfície do seu território. A mecanização da indústria, com o aperfeiçoamento da máquina a vapor, criou o trabalho mecânico em série, substituindo a mão-de-obra. Veio a riqueza como fruto do carvão e do aço. Os Estados desprovidos desses recursos naturais viram-se assoberbados com a perda dos mercados de manufaturados. A Itália tinha toda sua economia fundada no artesanato de classe, na produção das obras de arte, na agricultura e no turista que se ia instruir em seus museus e monumentos e gozar das belezas incomparáveis de seus recantos privilegiados.

Os países que, por circunstâncias históricas ou previdências econômicas, haviam criado seus impérios coloniais, não sofreram o impacto do desemprego nem a crise da superpopulação. As colônias eram fontes de matérias-primas, de produção de gêneros de substância e de espaço vital, não só para o excesso humano como para o emprego de capital ávido de rendimento. E surgiram os impérios coloniais e capitalistas da Inglaterra, da França, da Holanda e da Alemanha. Espanha e Portugal viveram e vivem as glórias conquistadas pelas descobertas do século XVI. As grandes crises sofridas pelos portugueses e espanhóis se originaram do luxo de suas cortes e desgoverno de suas monarquias descalibradas.

Todos esses Estados detentores de imensas colônias não tiveram preocupações maiores com o fenômeno demográfico. Ao contrário, ofereciam favores e facilidades a quem lhes fosse trabalhar as terras distantes.

Diversamente se passou com a Itália.

Desprovida das matérias-primas fundamentais para ingressar na concorrência do mundo industrial, revolucionado pela máquina, a mão-de-obra se aviltou para compensar o preço do carvão e do ferro que lhe era imposto pelos países que os possuíam.

As sedas de Milão, os veludos de Turim e Veneza, os linhos da Toscana, as obras de arte de Florença e Roma, os vinhos e as olivas das encostas férteis dos Alpes e dos Apeninos, o artesanato caprichoso dos paizettos, os espetáculos de seus teatros famosos, suas paisagens encantadoras, os lagos sonhadores, seus monumentos seculares, suas catedrais, basílicas, e santuários milagrosos, o Vaticano monumental, já não bastavam para alimentar a receita do tesouro pátrio. Unificada, constituída em Estado soberano, renascendo de suas próprias cinzas, curando as feridas que a invalidaram de sua grandeza criadora, para orgulho consolador da civilização cristã de que fora mater et magister, exigiu a Itália, de seus filhos, o sacrifício supremo da expatriação: que em outros continentes se associassem com outros povos, e esculpissem a imagem de seu gênio criador.

E os italianos emigrados lhe curaram a anemia, fortificaram-na e lhe restituíram a velha grandeza. Foram as remessas constantes, os jorros contínuos dos filhos a l’estero que lhe criaram a marinha mercante e lhe enriqueceram os bancos famosos, restauraram igrejas, construíram hospitais, dignificaram os anciãos, confortaram famílias, ampliaram e consolidaram patrimônios arruinados. Foi o ouro juntado com sangue e lágrimas, conquistado em terras adotivas, que permitiu que a Itália construísse sua rede ferroviária, perfurasse seus túneis infindáveis e saneasse suas lagunas e cidades adoecidas pela contagem dos anos.

A emigração, para a Itália, é razão de Estado. Ela precisa do jorro permanente do ouro que lhe fortifica a economia pública, suas finanças difíceis, manipuladas por seus homens de governo.

Foram os vinte e quatro milhões de expatriados para o Novo Mundo que, de 1870 aos nossos dias, permitiram a prosperidade interna da Itália, as comemorações festivas e exuberantes do seu cinquentenário de país independente, como bem acentua Constantino Ianni. A emigração tornou-se “a válvula de segurança” da economia, como se vulgarizou dizer entre os economistas conservadores. O fenômeno emigratório para a Itália é o responsável pelas relações internacionais de amizade e simpatia de que goza a península entre todas as nações civilizadas. O italiano, pelo seu temperamento ordeiro, trabalhador, apegado à família, sabe se adaptar, em uma miscigenização sem preconceitos raciais, nacionalizando-se sem esquecer sua origem. Compenetra-se de sua missão econômica: a grandeza da raça é inversamente proporcional à pujança do solo e ao seu complexo geográfico.

Mas não vamos sangrar a ferida de nossos antepassados, aberta em holocausto à civilização que derramou, no privilégio insuperável de guardiã das ciências, das artes, da religião de Cristo Senhor Nosso. Guardemos sua imagem, projetando-a, bela, perfumada e enriquecida pelo sacrifício e martírio de nossos pais. E orgulhemo-nos da grandeza do Brasil que estamos erigindo como pátria da felicidade reconquistada.

[In DERENZI, Luiz Serafim. Os italianos no Estado do Espírito Santo. Rio de Janeiro: Artenova, 1974. Reprodução autorizada pela família Avancini Derenzi.]

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Luiz Serafim Derenzi nasceu em Vitória a 20/3/1898 e faleceu no Rio a 29/4/1977. Formado em Engenharia Civil, participou de muitos projetos importantes nessa área em nosso Estado e fora dele. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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