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Capítulo III – Caçada na fazenda do Miguel

Alves & Cia. — não a firma que dá título ao livro de Eça de Queiroz — eram duas lojas conjugadas, em Cachoeiro de Itapemirim, que vendiam de tudo, inclusive armas e munições. Ficavam próximas da praça Jerônimo Monteiro, bem em frente à antiga cadeia municipal. Mais de uma vez houve fuga coletiva de presos, cuja primeira providência era invadir a loja para se apossarem de carabinas Winchester e respectivas munições.

Duas placas de metal amarelo identificavam as lojas, destacando em letras góticas o nome Alves & Cia. Durante muitos anos lá trabalhou Miguel Frota, que acredito teve ali seu primeiro emprego. Quando meu pai, o proprietário, deixou o comércio e passou a empreitar a construção de estradas, inicialmente de rodagem, depois ferrovias, Miguel o acompanhou.

Sua última empreitada foi a construção da estrada de rodagem ligando São Gabriel da Palha a Valério. Meu Tio Bernardo chefiava o serviço, tendo Miguel como auxiliar.

Terminada a empreitada, Miguel descobriu e comprou, creio que de uma viúva, a preço bem razoável, uma propriedade com alguma mata. Nessa fazenda, além de outras atividades, ele fabricava uma cachaça de boa qualidade.

Num fim de semana, fui à casa de Miguel para uma caçada. Fui na companhia de Plínio Marchini, meu companheiro em diversas caçadas de brejo e, ultimamente, de perdizes.

No dia seguinte à nossa chegada enveredamos pela mata e, logo no arrastão, um macuco espantado estourou e levantou vôo. Plínio era bom atirador, com boa coordenação de reflexos, mas atirou e errou. O impacto psicológico, naquele momento, foi bem diferente do das caçadas de tiro ao vôo, e ele se descontrolou…

A propriedade do Miguel era vizinha a uma reserva da Vale do Rio Doce, por onde penetramos sem a devida autorização. Com o vôo do macuco ficamos sabendo de sua existência.

Fiz uma choça na catana de uma árvore, lugar jeitoso para armar uma choça. A expressão catana, muito usada pelos caboclos, significa um ângulo formado pelas raízes expostas de uma árvore. Alguns caçadores preferem o gunã, que é uma elevação, uma pirâmide de terra, lembrando um formigueiro abandonado. Daí, apesar do caçador ficar mais exposto, ele tem a vantagem de ter melhor visão.

Os caçadores antigos, preconceituosos, criticavam o uso de uma choça de folhas de palmeira, achando que a massa da folhagem espantaria a ave. Puro engano. Hoje em dia usa-se, com grande eficácia, apenas um pano camuflado como abrigo.

Durante dois dias não tive sucesso. O macuco era velhaco e já fora muito caçado, e associava a choça a perigo. Piei com o devido espaçamento, todos os dias. Chororoquei, pois era mês de setembro, período do cio. O macuco respondia ao pio mas não chegava. Como diziam os caboclos, o bicho era velhaco, sabia ler e escrever… Depois de dois dias sem que ele chegasse à choça, resolvi partir para a ignorância — tentar matá-lo no poleiro…

Por volta das cinco e meia, hora do macuco voar para o poleiro, saí da choça para ouvir melhor o rufar das asas quando ele empoleirasse. Certifiquei-me do rumo de seu vôo e caminhei alguns passos na sua direção. Piei, e ele respondeu com três longos piados. Para os caboclos, achar a ave é uma tarefa fácil. Para nós, caçadores, é um desafio. Caminhei na direção do pio e avistei o macuco num galho da árvore, já com o peito apoiado no galho; apoiado nos pés, estaria sujeito a voar. A técnica manda atraí-lo e matá-lo no chão. Então me perdoem os puristas — já matei vários no poleiro…

Depois de achá-lo, voltei à casa do Miguel e relatei o fato. Foi um entusiasmo geral.

Miguel havia me emprestado uma espingarda Saint-Etienne, presente de meu pai a ele. Era uma arma antiga, calibre 16, vendida por um soldado. Plínio Marchini propôs que eu é que devia atirar no macuco, mas declinei em homenagem a ele; contentava-me com o grande mérito de tê-lo achado no poleiro. Fomos ao local, munidos de lanternas. O macuco estava despreocupado, imaginando-se seguro no seu pouso. Plínio atirou e o macuco rolou pela inclinação do terreno, deixando um rastro de penas.

Plínio era secretário particular — ou coisa parecida — do governador Asdrúbal Soares, também caçador de aves, e resolveu levar o macuco de presente para ele. Asdrúbal, desconfiando das bravatas de Plínio, perguntou quem mais estava naquela caçada. Plínio respondeu: “O Luiz, filho do Chico Alves.” Então, sorrindo, respondeu-lhe o Asdrúbal: “Então já sei quem foi que caçou o macuco…”

[ALVES, Luiz Flores. Caçadas. Reprodução parcial do livro publicado em Vitória-ES, pelo Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e Prefeitura Municipal de Vitória em 1999. Reprodução autorizada pelo autor.]

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Luiz Flores Alves nasceu em Vitória, em 1920, e mudou-se no mesmo ano para Cachoeiro de Itapemirim-ES. Trabalhou na CVRD de 1942 a 1946 como administrador na construção de vários trechos da estrada de ferro. No Rio de Janeiro trabalhou em várias obras públicas e formou-se em Economia. Aposentou-se em 1985 como diretor do Centro Jurídico e Econômico da Universidade Federal do Espírito Santo. Faleceu em Guarapari, ES, no ano de 2003.

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