Voltar às postagens

Capítulo IV – Candidato a engenheiro — na Politécnica

Luiz Serafim Derenzi, 1917.
Luiz Serafim Derenzi, 1917.

Todos os jornais da época cantaram, em prosa e verso, as arbitrariedades da Lei de Ensino Carlos Maximiliano. O número de aprovados nos doze exames finais do curso ginasial, em todo o Brasil, não atingiu dez por cento dos candidatos inscritos. 
Quando cheguei a Vitória, munido de certificados de aprovação no Liceu de Humanidades de Campos, meus amigos me receberam como se eu fosse um dos sete sábios da Grécia. As duas semanas de férias foram dias de orgulho da minha mocidade. 
Minha família passava uma crise sombria. Estávamos em plena guerra mundial. Entre os Estados sacrificados, o Espírito Santo ganhava triste notoriedade. Não tinha indústria nem agricultura, só produzia café, que não era exportado. 
Meu pai construtor não batia um prego, desde o fim do ano de 1914, quando o conflito europeu explodiu. Foi tempo trágico para os capixabas. Nós não tínhamos recursos para que eu pudesse estudar. Mas residia no Rio um companheiro de meu pai, homem de fortuna e patrício: Ângelo Ferrari, talvez, quem sabe, poderia favorecer-me, ao menos, para eu me preparar para o vestibular. Depois, se eu fosse aprovado, um emprego, um milagre enfim. Minha mãe não desesperava. Cartas pra lá, cartas pra cá, e o Sr. Ferrari se ofereceu para me hospedar. 
Residia na rua Félix da Cunha, número 42, na Tijuca. Embarquei num domingo de manhã, pelo noturno, que, por ironia muito capixaba, partia às dez e quinze da manhã. 
Ângelo Ferrari foi me esperar em Maruí, em Niterói, onde terminava a Estrada da Leopoldina naquele tempo. A Estação Mauá só foi inaugurada em 1926. Deu-me por ménage seu escritório, no andar térreo, bem mobiliado, com pequena biblioteca e um divã confortável que foi minha cama durante 45 dias. 
O casal Ângelo e Dina Regattieri Ferrari me recebeu como membro da família. Nunca me transpareceu o menor constrangimento. Era numerosa a família Ferrari, composta de oito criaturas com idade de zero a dezessete anos. As duas avós eram babás daquela turma de crianças mimadas que só temiam o tio, padre Regattieri, ex-vigário de Conceição da Barra, no Espírito Santo, e agora em férias da Paróquia de Cananéia, no sudoeste paulista. Estava revisando sua monografia explosiva, Refutação à Teoria de Hegel. Não me lembro do seu primeiro nome. De meia altura, moreno, cabelos grisalhos e fartos, inteligente, polêmico e estudioso. Embora tardiamente, rendo minha homenagem ao casal Ferrari que me dispensou paternal acolhida. 
Eu estudava quinze horas por dia, só folgava nas horas das refeições e da missa das dez dos domingos, na igreja de São Francisco Xavier. Íamos todos. 
Passados uns vinte dias, o padre Regattieri desceu do seu quarto e veio desligar a luz do escritório, cujo interruptor ficava no portal do lado de fora. 
— Luís, chega! Assim é demais, já é meia-noite! 
Veio o dia da inscrição para os exames, fiquei tão afobado que errei três vezes o substantivo capital do requerimento. Escola Politécnica… Entreguei os documentos exigidos ao Dr. Câncio Póvoas, secretário do estabelecimento, que me recibou os atestados anexos, felicitando-me pelos graus obtidos. 
Concorremos dezessete alunos apenas, dos quais dois eram capixabas, Moacir Monteiro Avidos e eu, além de meu companheiro de Friburgo, Francisco de Assis Menescal. Esses distintos colegas foram profissionais notáveis, infelizmente falecidos prematuramente. Registro a saudade de ambos. 
Na segunda quinzena de março iniciaram-se as provas escritas: Francês e Inglês, sem dicionário, tradução e versão. Matemática, só com as tábuas de logaritmos, e prova gráfica de Desenho Geométrico a nanquim. Às orais de Matemática, cada candidato era massacrado pelo menos por quinze minutos por cada um dos três examinadores. Se o candidato fosse forte, o tempo podia ir até uma hora e meia. Março, pleno verão, e os sinos de São Francisco de Paula a badalar os quartos de hora, com sonoridade melancólica. 
Terminados os exames, quando o Dr. Andrade Neves, subsecretário, leu o resultado dos aprovados: Luiz Serafim Derenzi, simplesmente, grau quatro, eu me despejei pela escadaria da escola e corri para o bonde com tanta afobação que, ao invés de tomar o da Tijuca ou Muda, tomei o Alegria; não prestei atenção ao trajeto. No fim da linha o motorneiro, formidável lusitano, me instruiu do itinerário. Gastei o dobro da passagem. Cheguei em casa tão satisfeito e fui tão festejado que me esqueci que não tinha mais um níquel no bolso. 
Nessa noite tive vinho no jantar, saudação do padre Regattieri, e o Sr. Ferrari me levou ao Odeon, onde assisti, pela primeira vez no Rio, a um espetáculo cinematográfico. À noite não dormi quase nada, fiquei embalado na minha fantasia construindo centenas de quilômetros de estrada com vários túneis e pontes majestosas. 
O Brasil estava na fase ferroviária. Era trem noturno mesmo, saía às oito e quarenta minutos de Maruí e chegava em Vitória no dia seguinte, às dezoito e quinze pontualmente. 
Em casa fui recebido com alegria. Meu pai me deu um relógio Omega de ouro com duas tampas e minha mãe, uma bicicleta. As comadres vieram visitar minha mãe e os homens de certa importância felicitaram o “Seu” Serafim.
* * *
Vitória devia ter uns 15.000 habitantes, gente muito simples e modesta. A crise era amarga. O funcionalismo em atraso. O comércio constava de poucas firmas, na maioria de portugueses: Casa Verde, de Cruz Sobrinho, a de maior porte, fazendas, calçados e aviamentos; Viana, Leal & Cia., do mesmo ramo e um pouco inferior. Manoel Evaristo Pessoa & Cia., dirigida pelos interessados, pois o comendador Evaristo Pessoa residia em Portugal e só vinha para fechar o balanço de fim de ano. Teixeira e Silva, negociando com louças e quinquilharias. Oliveira Santos & Filhos, vinhos, bacalhau e artigos de lavoura, caminhando para se firmar como comprador de café, cuja primazia estava com os americanos, da Hard & Rand, firma de âmbito internacional, dirigida por Brian Barry, inglês, cônsul duas vezes, da Inglaterra e dos Estados Unidos. Tinha várias residências em lugares pitorescos: em São Carlos, onde hoje é a velha estação Pedro Nolasco, e em Santa Helena, com uma casa original, de dois pavimentos, sextavada, onde recebia só homens e prostitutas discretas. E ainda a Fazenda Maruípe, onde criava gado, cavalos, e plantava cereais, cuja sede é a atual Escola de Medicina. Os colonos quase todos mulatos escuros de olhos verdes. Mr. Barry era louro, cabelo de fogo e olhos cor do mar, solteirão, cujo maior amigo era o contador da firma e depois substituto, Nicolau von Schilgen, pai do simpático e querido Carlito, vice-governador (1975-79). Lisandro Nicoletti, importador de bebidas e comestíveis italianos, era proprietário da única fábrica de tecidos, localizada em Jucutuquara, hoje ainda em atividade, mas com novos proprietários. Dois relojoeiros: Gastão Roubach, francês, e Rafael Biano, italiano. Ferragistas: Rufino Antônio de Azevedo, hoje Casa Helal, Veredino de Aguiar e Aires Coelho. Carlos Botti tinha uma mercearia. Farmacêuticos: J. Aguirre e Lauro Pessoa, Vlademiro da Silveira, Juvenal Ramos; meia dúzia de sírio-libaneses: Nametala Paula, Bumachar, Saliba, Alexandre Buaiz, os Murad e os Helal. Padeiros: Sarlo, Pessoa e Santos Neves. Uma dezena de botecos de cachaça. Três bares de bom tamanho: Rodolfo Ribeiro de Souza, J. Trinxet e Gaspar Guimarães. Duas barbearias principais: Cláudio e Américo. Quatro hotéis: o Internacional, de José Bento; o Mirtes, no local hoje ocupado pelas Lojas Americanas; o Central, no sobrado do Rufino Azevedo; e o Europa, que ainda existe; o Palace e o Porto Rico, das classes humildes. Dois estivadores: J. Mesquita, agente do Lloyd, e Antenor Guimarães, homem extraordinariamente organizado, agente da Costeira, o Lage, tinha trapiche e explorava o transporte urbano, com todo aparelhamento marítimo para carga e descarga. Ah! Ia me esquecendo de A. Prado & Cia., negociantes de café e cereais. Dois grandes proprietários de imóveis: Fernandes Coelho e João Rodrigues da Silva. Um pintor industrial: Sandálio Abaurre e, finalmente, o incomensurável André Carloni, falecido aos noventa anos, artista e construtor, homem de grandes empreendimentos. Clubes de regatas, o Álvares Cabral, o Saldanha da Gama e o Internacional, que, em festas marítimas, muito concorridas, disputavam regatas com a afluência de toda a cidade. Os desportos terrrestres ensaiavam os primeiros passos, o Vitória Futebol Clube e o Rio Branco, que se chamou Juventude e Vigor, ao qual pertenci desde os primeiros dias e onde joguei no primeiro time com rapazes que se tornaram famosos: Paixão, Argeu e Pavão. 
A Praia Comprida era habitada por alguns pescadores, por Nicolau von Schilgen e pelos muito populares Henrique Loureiro e José Teixeira. 
A sociedade se divertia em dois clubes, ambos no Parque Moscoso: o Clube Vitória, dançante e recreativo, da sociedade, que exigia certidão de casamento e não admitia gente de cor; e o Clube dos Boêmios, de velha tradição, desde o fim do século passado, quando se chamava Ás de Copas, cuja sede originária situava-se onde é o cartório de Paulo Monteiro, no começo da rua Nestor Gomes. 
O bairro de Santo Antônio, além de alguns barracos, tinha o cemitério e o matadouro, onde hoje funciona um grupo escolar. Havia a ilha das Caieiras, com poucas casas, cobertas de sapê, pescadores de ostras e uma fábrica de cal de conchas. Depois, duas fazendas, Inhanguetá e Santo Antônio, ambas de baixa produção: mandioca, cana, umas espigas de milho e algumas criações de porcos e galinhas crioulas. Onde hoje fica Caratoíra era a cocheira de Antenor Guimarães, que explorou a limpeza pública em carretões de tração animal. Vila Rubim, Cidade de Palha, não tinha mais de uma vintena de barracos morro acima, pela ladeira que se tornou rua São João. Os morros de Santa Clara e Moscoso eram ainda cobertos de vegetação. O primeiro, abrigando a caixa d’água e a moradia do vigia; o segundo, com a mata começando na rua Washington Pessoa, antes rua do Norte, nos fundos das casas do lado par. 
A Santa Casa da Misericórdia não tinha acesso para veículos. Subia-se pela escadaria meio florida da rua Misael Pena, antes do Oriente e hoje Dr. João dos Santos Neves. Tinha três ou quatro casas, a Padaria Elétrica, de Neves & Cia., a residência do comendador Cabral e a de José Ribeiro de Souza. Na esquina com a Cleto Nunes morava Aníbal Martins. A avenida Marcos de Azevedo, cujo nome devia ser Azeredo, em homenagem ao bandeirante capixaba do século XVI, chamava-se Almirante José Carlos de Carvalho. Formava uma quadra com as ruas Vinte e Três de Maio, Afonso Brás e Vasco Coutinho, ainda não habitadas. Entre os chalés suíços, só a nossa casa e a da esquina eram sobrados. No primeiro, morávamos nós. O outro fora construído por meu pai para servir de sede para o Clube Vitória. A Vila Oscarina, antiga residência de Antenor Guimarães, veio depois. 
A rua Vinte e Três de Maio era ocupada, em grande parte, pela usina de café de Hard & Rand, na esquina com a rua do Comércio, antigo Porto dos Padres, hoje Florentino Avidos; e a outra esquina fronteira, pela garagem do Clube Saldanha da Gama. Logo depois, a residência de Antônio Oliveira Santos e nada mais. 
Na Presidente Pedreira, a partir do mar, no primeiro sobrado, fora do alinhamento, morava José Barbosa, confrontando-se com João Rodrigues da Silva, que tinha bem uns trinta metros de frente, com esplêndido pomar, cujas mangas-rosa muitas vezes eu provei; seguia-se Joaquim Pinto de Miranda, com dois lotes, tendo o sobrado que faz esquina com a Cleto Nunes sido por ele construído e alugado. À margem esquerda, seguindo a mesma ordem, um sobrado ainda existe, ligeiramente fora do alinhamento. Pertenceu a F. Tagarro, pioneiro da navegação do rio Doce. Sua mulher, Dona Mariquinha, tornou-se famosa doceira. Vinha depois uma pequena vivenda em centro de jardim, onde tinha consultório o dentista Coutinho. Dividia-se com a residência do professor Alexandrino Paiva. Seguia-se o sobradão, ainda em pé, de Florêncio Coelho, negociante de vinhos e cachaça. 
Na avenida da República, antiga da Vala, a ocupação atingia apenas até a altura da avenida Cleto Nunes. Começava com uma casa térrea, habitada pela viúva de Cleto Nunes, Dona Naná, depois a de Veridino de Aguiar, ferragista, a de Aniceto Guimarães, com carpintaria e fábrica de móveis, confrontando-se com João Nunes Coelho, com pequeno negócio de secos e molhados. A outra margem era fundos do Hotel Internacional, do português José Bento, com boa mesa. O coronel Francisco Schwab possuía um conjunto de sobrados que se limitavam com os baldios do coronel Henrique Mascarenhas, onde João Santos fez o galpão para o Cine Politeama. Hoje é o Cinema Santa Cecília, das famílias Marcondes Alves de Souza e Cerqueira Lima. 
A rua General Osório tinha muitos lotes vazios. Onde se ergue o Edifício Portugal era um sobradão com três pavimentos, de Gaspar Guimarães, comerciante de conservas portuguesas e vinhos, que mais tarde mudou-se para a Praça Oito, como Casa Viana Leal & Cia.; depois vinha a Drogaria G. Roubach, extinta, que deu lugar ao espigão atual. Um açougue, uma padaria, alguns sírios e o Colégio Americano. Na rua da Lapa, hoje Thiers Vellozo, havia quatro famílias. Na rua Caramuru, em forte rampa, talvez com uma dúzia de moradores, gente humilde, lembro-me do Liceu Filomático, de Dona Ernestina Pessoa. E havia a família Machado, cujos filhos, a professora Juraci, Bianor e vários outros irmãos — gente boa! — eram conhecidos por todos. 
Para não me alongar muito, creio que provei a contento que Vitória era uma pequena cidade e que nós conhecíamos todo o mundo. Na Cidade Alta moravam velhas e tradicionais famílias, os Tovar, os Botelho, os Vellozo, Antônio Aguirre, Cerqueira Lima, Espíndula, Coelho, Aristides Freire e Elpídio Boamorte. As ruas Professor Baltazar, Coronel Monjardim, José Marcelino, Professor Azambuja, Coutinho Mascarenhas e Gama Rosa tinham poucos e antigos moradores. 
Os Gianórdoli, os Abaurre, os Grijó e os Nascimento habitavam à rua Sete e redondezas. A rua Graciano Neves e suas quadras ainda não existiam, foram obra do presidente Avidos. A ladeira São Bento servia a três chácaras: a dos Medrado Cavallini, a dos Santos Neves e a do senador Muniz. Muitas jaqueiras, mangueiras e sabugueiros. Com casas velhas, quase todas de sobrado, a rua do Rosário tinha a mesma extensão, porém em vez de três entroncamentos com a avenida Capixaba, ainda não aberta, terminava na rua Cristóvão Colombo, meio torta, até atingir a chácara do Barão de Monjardim, servindo a poucos moradores. A casa de Henrique Coronel era do lado do mar e, tomando o morro, habitavam o Madeira, o Azevedo, e, no fim, o Major Guaraná e o Dr. Duquinha, onde hoje é a Capitania dos Portos. A via Henrique de Novais, por ele aberta em 1916, fazia parte do reduto da avenida Capixaba, onde residiam o barão e seus filhos, em palacetes isolados, e ainda uns funcionários da Alfândega, Antônio Gélio e João Ferro, que gozavam da perenidade do chafariz da avenida Capixaba. Os moradores da rua Sete bebiam a água da Fonte Grande, captada em baixo de blocos de pedra, que formavam o “Buraco de Isabel”, local que tinha sido reduto de ex-escravos. 
O comércio acompanhava a orla marítima: ruas do Comércio e Primeiro de Março, hoje Presidente Avidos, Alfândega, Pereira Pinto e Colombo, que, depois de retificada, chamou-se avenida Capixaba, pois aí os portugueses povoadores receberam essa alcunha dos índios. Recebeu depois o nome de avenida Jerônimo Monteiro. Da moradia do Barão de Monjardim até Jucutuquara, com muitos baldios, habitavam pescadores. A antiga chácara do Azevedo limitava-se com o Forte de São João, que hoje é o Clube Saldanha da Gama; perto o Instituto de Educação, onde fora a chácara do Bispado. Seguia-se o Romão, sítio dos Aguiar, atual Vitoriawagen, com seus flancos e morros povoados. Novamente feudos do Barão de Monjardim, primitiva fazenda de Jucutuquara, compreendendo Fradinhos e Maruípe até a ponte da Passagem. A avenida Vitória, do atual ponto de ônibus de Jucutuquara à Praia do Suá, é velha estrada construída por Muniz Freire, refeita por Jerônimo Monteiro, Nestor Gomes e Aristeu Aguiar, para permitir o tráfego de bondes. Quando fui diretor de Obras da Prefeitura de Vitória, fiz-lhe melhoramentos, denominando-a, do cruzamento de Henrique de Novais até a Praia do Suá, de avenida Vitória, com trinta metros de largura. Chamaram-me de idiota. Em 1952, quando diretor do Departamento de Estradas de Rodagem, completei-lhe a largura, pavimentando-a com asfalto. Progrediu e cresceu a Praia Comprida. 
Os hábitos, o linguajar, os assuntos de conversa eram inteiramente locais. Como as distâncias eram curtas, os encontros pessoais se repetiam com muita freqüência e a saudação se limitava à interjeição Ei! quando os interlocutores eram do mesmo nível. Porém, se se cruzassem um jovem e um indivíduo mais velho, de certa respeitabilidade, o moço tomava a iniciativa, descobria-se e exclamava: Ei, distinto! 
O compadrio vinculava os parceiros e estabelecia laços de amizade, visitas freqüentes, troca de jantares, piqueniques anuais. Os afilhados tomavam a bênção aos padrinhos. As mulheres, então, obedeciam a um ritual fraterno: beijavam-se e a que não tinha muita necessidade de seguir seu caminho acompanhava a outra e a conversa quase sempre começava por lamúrias domésticas. A interlocutora, jurando boa intenção, falava mal da vizinha ou de outra comadre, sempre protestando que não queria censurar, era só para ouvir a opinião da outra, uma prova dos nove do seu pensar. 
Todos se queixavam da vida, da carestia. Mas confrontando-se as dificuldades de hoje com a que nossos antepassados acusavam, aquela época era vivida num verdadeiro paraíso. 
Os salários de 1910 a 1920 não têm expressão numérica hoje. Eu me lembro do valor das coisas porque muitas vezes me mandavam ao armazém ou à padaria. Os granéis eram comprados a litro: feijão, 200 a 250 réis; arroz, que sempre foi caro, 300 a 320 réis; carne bovina, 600 réis o quilo; a de porco, mais cara, sete a oito tostões. Uma galinha gorda regulava 420 réis, e era comprada na porta da casa. O peixe abundante e fresco; os de primeira, pescada, badejo, papa-terra, seis a tostão. Mas a pobreza comia manjuba ou peixe-espada e equivalente a 200 réis o quilo. “Seu” Serafim gostava muito de manjuba, uma espécie de sardinha, enfarinhada e frita, que ia muito bem com vinho. Nada de óleos comestíveis: só azeite importado, toucinho de porco ou banha, ingredientes que passavam de 1.200 a 2.000 o quilo. O trigo, importado da Rússia ou Argentina, custava 1.200 o quilo. O pão francês podia comer-se de um dia para o outro, porque não amolecia, o pão italiano era uma delícia, bem cozido, com o miolo enxuto. A manteiga era importada da Dinamarca ou da Holanda, em latinhas de 200 gramas, custava de 1.000 a 1.500 réis a lata e era considerada mercadoria cara. Numa família como a nossa, de sete pessoas, a conta do armazém e padaria, tudo a crédito, não alcançava a 200 mil-réis por mês. Ao dólar não se dava confiança. Todos os valores eram comparados à libra esterlina ou ao franco francês. A moeda inglesa, que se assemelhava, por falta de bancos, variava de dez a doze mil-réis, moeda ouro mesmo e não papel. 
Em 1911 Alexandre Figueiredo instalou uma fábrica de gelo e o capixaba conheceu o sorvete feito em casa. 
Poucas famílias pagavam as empregadas. Quase sempre os pais entregavam as filhas solteiras às famílias para todo o serviço, pela roupa e comida. No fim do ano presenteavam-nas com vinte a trinta mil-réis. Mas as que se alugavam, conforme a categoria e habilidades, variavam de oito a quinze mil-réis por mês! 
Com tudo isso muitos se queixavam da vida. Havia desemprego, os bons artífices e os trabalhadores braçais eram habilíssimos e os patrões não os despachavam por qualquer coisa. O horário de serviço era das seis da manhã às seis da tarde, uma hora para o almoço e dez minutos para o café. A regulamentação das oito horas de serviço é conquista do pós-Grande Guerra.
* * *
O capixaba — o ilhéu — pouco viajava. Quando, por necessidade, era obrigado a fazê-lo, anunciava a partida com certa antecedência, despedia-se dos amigos e recebia um rol de encomendas de que se fazia portador. 
Eu fui uma dessas vítimas, até simples cartas levei, pelo menos meia dúzia de cada vez. Chegando ao Rio postava as cartas na agência do Jornal do Comércio, a tarifa urbana era insignificante: cinqüenta réis. 
Pelo meu ingresso na Escola Politécnica, fui saudado festivamente pelos mestres e condiscípulos de Friburgo. O problema era eu poder freqüentá-la, pelo motivo já exposto: os poucos recursos escassos de minha família. 
Encontrei-me casualmente, na avenida Rio Branco, com Paulo de Carvalho, uma das vítimas do Liceu de Campos, acompanhado por seu pai, “Seu” Custódio. Eles residiam à rua Dom Gerardo, na subida do mosteiro de São Bento. Depois das felicitações e dos prognósticos, confidenciei que provavelmente não cursaria a escola, por não ter como me manter. Que coração generoso, que homem extraordinário esse saudoso amigo. Pelo fato de eu ser colega de seu filho e de ter sido um dos vitoriosos nos exames, resolutamente disse: 
— Não, senhor! Por isso não seja, você é amigo e colega de meu filho, é de casa. Venha morar conosco e pague quando puder e quiser. 
Paulo abraçou-me fraternalmente e eu enxuguei uma lágrima, não sei se de alegria ou de comoção. 
A família do “Seu” Custódio não era pequena. Três meninas e três rapazes, meus companheiros de Friburgo: Paulo, Jorge e Sílvio, Paulo já cursando a Escola de Medicina. Dona Catita não me dispensou menos carinho do que minha mãe. Que Deus tenha na Santa Glória esse virtuoso casal de tão puros corações. O “Seu” Custódio, fiscal de imposto de consumo, o melhor cargo federal, era visceralmente honesto, rigoroso no exercício do cargo, e fazia-se severo em casa. Quando tinha que intervir em matéria de disciplina, semicerrava um olho, dava uma descompostura geral, da qual sobrava sempre uma parcela para mim. Tinha as melhores relações sociais. Cunhado do Dr. Bernardino de Campos, ex-governador de São Paulo e, então, deputado federal e líder da bancada, nunca se utilizou dessa circunstância em benefício próprio. Tinha a exata compreensão de seus deveres e obedecia rigorosamente ao que pela lei lhe competia. Tinha muita coisa para contar: episódios da monarquia, da proclamação da República, da vida dos literatos e boêmios, dos bons e maus políticos. Por um ano convivi com essa família exemplar. Levei muitas descomposturas juntamente com Paulo quando, aos sábados, voltávamos mais tarde do que de costume, assoviando o fundo musical da última revista do São Pedro ou São José, da praça Tiradentes. Paulo e eu não perdíamos as estréias teatrais, as exposições de arte, os recitais das pianistas bisonhas nos seus bisonhos “recitais”. Aliás, Paulo, hoje, três vezes catedrático de Medicina, era e é uma grande vocação de artista, principalmente para pintura. 
Todas as noites, depois do jantar, saíamos a pé, do começo da avenida Rio Branco, e íamos caminhando até o largo da Glória. Nossos planos urbanísticos eram fenomenais. Eu imaginava sempre uma avenida Beira Brasil, naturalmente começando em Vitória e morrendo em Santos. Hoje, sessenta anos passados, é uma realidade fantástica. Nossos passeios eram econômicos. Quando muito, dois tostões de despesa: dois cafés à inglesa: cafezinho com um pingo de leite. O centro da cidade, depois das sete horas, era um deserto. O movimento todo se concentrava nos pontos dos bondes: a célebre Galeria Cruzeiro, por baixo do velho Hotel Avenida, hoje Edifício Avenida Central, onde os bondes da zona sul faziam a volta. As damas francesas, saltando no começo da rua Bittencourt da Silva, davam a volta no quarteirão do hotel, catando fregueses. Os basbaques se dividiam: uns à espera dessas mariposas, outros comendo e bebendo nos famosos bares da Brahma, no Nacional ou no Americano. A Brahma era o restaurante famoso da época, onde a orquestra do Carbelotto alternava as tocatas, um tango argentino, uma canção italiana e um trecho de ópera. Esse foi o meu comportamento de primeiranista de Engenharia. Minha mesada era de oitenta mil-réis, que vinha sempre com atraso no mínimo de vinte dias, mas chegou, certa vez, a demorar dois meses. Não fumei, não tomei cafezinho, e caminhei sempre a pé. Não fui aluno assíduo, ao contrário. Só frequentava as aulas de Cálculo do Costinha, professor Henrique de Oliveira Costa, e as de Física, ministradas pelo notável professor Henrique Morize. Meu prazer de provinciano e de ex-recluso de colégio jesuítico era olhar, ouvir e contemplar a vida quotidiana do carioca. Percorria inúmeras vezes o “U” formado pelo trecho da Galeria Cruzeiro, rua do Ouvidor, até a esquina da Gonçalves Dias e retrocedia da Confeitaria Colombo, depois de me certificar de que a roda dos literatos boêmios, liderados por Emílio de Menezes, ainda não se havia reunido. Demorava-me com acentuada preferência nas casas de música. Assim como hoje as lojas de aparelhos de som anunciam suas infernais produções em altura bárbara, de arrebentar os tímpanos dos transeuntes, as lojas de música procuravam atrair os afeiçoados dos sucessos musicais para suas casas, onde moças bonitas e elegantes dedilhavam as partituras dos compositores nacionais e estrangeiros. As célebres e frequentadíssimas casas vendedoras de música situavam-se ali principalmente. Uma na avenida, a Artur Napoleão, um tanto austera, especializada em música clássica, as outras, mais procuradas, por estarem em dia com as produções populares, na rua do Ouvidor, como a Casa Vieira Machado, onde Eduardo Souto, compositor de valsas e tangos, era visto regularmente a executar suas composições. Muito querido e popular, sorridente, com sua cabeleira meio revolta, dividida por uma mecha de cabelos brancos que encantava as suas muitas afeiçoadas. Seguiam-se, com poucos intervalos, no mesmo correr ímpar, as Casas Beethoven e Bevilacqua, que, além das caixeirinhas, tinham suas pianistas a atenderem os pretendentes com sorrisos amáveis. As preferências eram variadas e periódicas. Os valsistas franceses; Berger, apelidado “Rei da Valsa”; Octave Cremieux, que enlanguesceu muita moça clorótica com sua célebre “Quand l’amour meurt”; o italiano Marchetti, compositor de “Fascination”, ressuscitada pelo melodioso cantor negro americano, Nat King Cole. 
Nós também tivemos um rei da valsa: o celebrado e esquecido Mário Pennaforte, compositor da sensual e vaporosa valsa “Baiser suprême”, premiada em concurso internacional em Paris, onde foi impressa, e que muita fama trouxe ao casal de dançarinos Gaby e Duque, ela linda francesa e ele brasileiro. O casal por muitos anos exibiu-se nas pistas de dança dos mais famosos cabarés franceses. Tivemos compositores inspirados. Não foram malandros curiosos e pacholas à procura de inspiração com o tilintar de copos, a raspar chapéus de palha, a petelecar caixas de fósforos, a forjar meia dúzia de compassos, para chorar uma dor de cotovelo com o inevitável estribilho monossilábico lá, lá, lá, ô, ô, ô. Não, eram peças que obedeciam às regras da boa música. Três partes, com retornelo à frase melódica principal e letras coerentes metrificadas por poetas de verdade. 
Tivemos bons compositores: lembram-se da “Valsa dolorosa”, de Pennaforte, com letra de Olegário Mariano?
A vida que bem importa, 
Perdi com a mocidade, 
Ficou-me a tua saudade
Na minha retina morta. 
Ouvia-se boa música com versos perfeitos. Na Leiteria Palmira, junto à Casa Bevilacqua, o velho Pascoal, de longa cabeleira branca, dedilhava tocatas magníficas na sua harpa, com a qual havia ensinado à princesa Isabel. Há razões para se ter saudade da belle époque, da qual até a lembrança está a se extinguir. 
A sociedade era espirituosa e sonhadora, o mundo era mais humano e sentimental. Amava-se a natureza, procurava-se a harmonia das coisas. A máquina brutalizou o homem e a sociedade voltou-se para o consumo. Come-se em pé com a apresentação da ficha de caixa. Tudo é pré-fabricado. Onde os ambientes confortáveis, onde se bebia e comia em salões ricamente mobiliados, sem pressa enervante, ouvindo-se orquestras de câmara, e solistas da qualidade de uma violonista como Marie Louise, na Renascença, Mário Carbelotto, na Brahma, ou Andreozzi, no Odeon?
* * *
Numa dessas caminhadas, entre a rua Uruguaiana e o largo de São Francisco, encontrei a Bijou Mascarenhas, ex-vizinha e amiga de infância, lá no Parque Moscoso, agora morando no Rio. Foi uma surpresa que me enriqueceu o dia. 
— Você aqui no Rio, Luiz? Não nos procurou?! Ingrato! 
— Eu não tinha seu endereço, querida… Que você me conta de sua família, Alcina, Neguinha, Dalila, Lira? — Todas irmãs e cada qual mais bonita. 
— Neguinha está noiva, as outras não têm namorado e eu estou no curso complementar. Tentei a Escola Normal, mas levei “bomba” em Matemática, eu e todas as minhas amiguinhas. Você está estudando Engenharia, bem poderia nos preparar… Somos seis ou sete, podemos pagar vinte mil-réis cada uma. 
Foi sopa no mel. Eu não tinha namorada. Bijou era bem boita e… bem, isso foi depois. 
Uma turma de seis ou sete, mesmo dispensando a contribuição da conterrânea, já era uma quantia fabulosa: no mínimo 120 mil-réis por mês. Fiz uns dengos e aceitei. As Mascarenhas moravam no bulevar Vinte e Oito de Setembro, no ponto de cem réis do bonde Vila Isabel-Engenho Novo. A casa tinha uma enorme sala de visitas, um quintal com frutas e flores. Arranjaram um quadro negro e às terças, quintas e sábados, por duas horas, eu lhes ministrava minhas aulas. O curso durou uns cinco meses até a época dos exames de admissão. Foram todas aprovadas pela tangente. A não ser Bijou, as outras eram muito vadias e namoradeiras. Mas passaram e eu fiquei contente e fiz um discreto guarda-roupa e um romântico namoro sem palavras com a conterrânea. Bela, honesta e carinhosa. Casou-se com um simpático médico da Rockefeller. 
Fui um estudante medíocre e sem brilho. Só me interessava pelas matérias que eu julgava, previamente, que me poderiam ser úteis. Mas gozei de muita simpatia entre os colegas imediatamente superiores e inferiores ao meu ano escolar. Por quê? Talvez porque me expressasse com franqueza, sabia resolver uns tantos problemas que sempre surgem entre alunos, professores e a congregação. Fiz amizades fraternais e não esqueço alguns que já se foram e me deixaram saudades: Henrique Serpa Pinto, saúde precária, rio, modesto e sempre pronto a socorrer um colega. Era sobrinho-neto do célebre explorador português, um dos primeiros a atravessar todo o território africano. Generoso ao extremo, deixou que os favelados lhe invadissem o morro do Pinto. Faleceu ao correr do terceiro ano do curso. Nós nos visitávamos muito e ele e sua mãe me tributavam muita amizade. Sua saúde se agravou e, numa madrugada, fui chamado pelo telefone, com urgência. Quando cheguei, o quadro era sombrio e desesperador. 
— Derenzi, — me disse o seu irmão, — o Dicki quer se despedir de você… 
Cinco minutos depois ele morreu. 
Penetrei um pouco na sociedade da Zona Sul por intermédio de um ítalo-carioca, Miguel Manzolillo. Simpático, bem trajado, nariz aquilino, gozador, filho de um napolitano que enriquecia com o comércio de distribuição de jornais e revistas. À custa de ganhar bancas privilegiadas, tornou-se distribuidor exclusivo de toda a imprensa carioca. Morava na rua Benjamim Constant, num palacete. Tinha três irmãs, uma muito bonita e elegante, e o Tonico, o mais moço da família, muito engraçado. Tornamo-nos amigos inseparáveis. Conheci-lhe a família e passei a frequentar-lhe a casa e ser apresentado aos seus amigos da sociedade. 
Estudávamos juntos nas últimas semanas antecedentes aos exames. Miguel aprendia de ouvido. Eu era o leitor do texto e destrinçava as fórmulas. Miguel olhava e ouvia. Eu gostava de estudar em seu escritório, por causa do conforto e do lanche, que nos era trazido pela copeira e servido pela Rosária, sempre chique. 
Nessa altura morava eu com colegas, todos queridos, na rua Haddock Lobo, e já havíamos percorrido todas as pensões reputadas. Permanecemos mais tempo na Pensão Royal, no 200, em centro de jardim, apalacetada e com um pavilhão anexo isolado, que eu ocupei em companhia de José Gayoso Neves, Tancredo Miranda e José Teixeira Leite Guimarães. Nomeio este colega por último, porque ele foi aquele que eu mais prezei. Fomos contemporâneos em Friburgo e nos reencontramos na escola e nos tornamos irmãos. Da nobre família fluminense de Vassouras, Zé Leite me ensinou as regras da etiqueta e, digamos assim, me poliu. Éramos confidentes. Foi meu padrinho de casamento. 
Agora junta-se outro amigo à nossa grei. Amigo e colega de ano. Simplório, irônico, simpático e boêmio como eu. Família modesta, nosso quase vizinho. Morava na rua Colina, hoje Zamenhoff, o saudoso Tíndaro Maia. Inteligência superior, com belo curso de Humanidades e afeiçoado à literatura francesa. 
Tíndaro era arrimo de família. Órfão de pai, deixou de frequentar a escola porque, diarista da Light, o horário de serviço não lhe permitia assistir às aulas. Era o amigo erudito. O assunto predileto da conversa de Tíndaro era Matemática, Rabelais ou Anatole France, muito em moda então. 
O Tíndaro me aparecia sempre depois das vinte horas. Trazia uma garrafa de cachaça Tico-Tico, aliás muito boa, e bebericávamos, ele e eu. Os demais não apreciavam a pinga. Não terminou o curso, mas fez carreira na Light. Esteve no Canadá e foi aposentado como chefe do setor de Solda Elétrica. Frequentávamos muito a Lapa, éramos fregueses da Capela da Lapa, do bom chope escuro e do fabuloso sanduíche completo: um pão francês de um palmo, partido ao comprido e guarnecido de uma fatia de carne assada, folhas de alface, tomate, pepino azedo, outra fatia de carne e mais folhas de alface. Era ração para cinco chopes duplos. 
A Pensão Royal, como as demais, aos domingos não dava jantar. Dona Noêmia, mãe do Tíndaro, preparava sempre um magnífico assado ou pernil de porco, e os amigos do seu filho e filhas, Leda, Helena e Maria, eram comensais fixos e as conversas se prolongavam até tarde. Naquela redondeza, no perímetro das ruas Maia Lacerda, Haddock Lobo, Aristides Lobo, Itapiru, nós éramos conhecidos e convidados inscritos para todas as festinhas ou assustados. O corso pelo lado par da Haddock Lobo era uma instituição, porque os dois únicos cinemas, o Vello e o Haddock Lobo, se situavam nessa banda, mediavam umas quatro ou cinco quadras entre eles. A rua Barão de Ubá, fortemente arborizada e com luz fraca, era o local preferido pelos namorados. No terceiro ou quarto prédio, bem apresentado, com entrada lateral pelo jardim, morou Humberto de Campos, numa casa de porão habitável, paredes espessas de alvenaria, com pequenas janelas sem esquadrias, só gradis e faceando pelo lado de dentro, de modo que os parapeitos eram ótimos assentos para casais. Humberto de Campos escrevia suas crônicas, catando milho com dois dedos, numa Remington barulhenta. O porão era escritório e biblioteca. Quando terminava sua crônica ele a lia em voz alta e nós gozávamos o privilégio do ineditismo. 
O Rio de Janeiro não tinha edifícios de apartamentos. Quando muito, casas geminadas. A rua Haddock Lobo, principalmente depois da rua do Matoso, tinha pensões elegantes e confortáveis. Era uma bela via, arborizada, iluminada, em alguns quarteirões, ainda a gás e guarnecida quase que totalmente por vivendas de dois pavimentos, de aparência simpática, belos jardins e grandes áreas de fundo, principalmente o lado par. Seus habitantes pertenciam à classe média mais favorecida. Era uma rua muito festeira e rara semana não havia uma festinha. E como a percentagem feminina era muito superior à masculina, nós, estudantes, estávamos fichados nos carnês das senhorinhas. A maior cotação era dos alunos da Politécnica. Só perdíamos para os cadetes: a calça escarlate e a túnica azul eram chamarizes. Principalmente porque os alunos de Realengo já saíam da escola ganhando. Casavam logo. Mas nós levávamos vantagem, podíamos dançar e namorar todos os dias, ao passo que os militares só tinham uma folga por mês. 
O namoro era franco, pela rua. As moças caminhavam duas a duas, engatadas pelos braços. Os encontros gostosos eram nos bailes, mamãe ou titia de sentinela, indagações incômodas, onde mora, seus pais quem são, quando vêm ao Rio. Melhor mesmo era o namoro nas ruas. Piquenique na Cascatinha, batalhas de confete nas praças Afonso Pena ou Saenz Peña, na Tijuca. Esta era incômoda: dependia de condução. Ninguém tinha carro, íamos de bonde. 
As meninas do Sacré Coeur eram muito pedantes. Gostavam de falar francês e suas palestras versavam sobre as coisas da França. Eram chiquérrimas. Uma que se destacou, no meu tempo, Mademoiselle Brito, além de elegante, falante e perfumada, usava lorgnon.
Quando se dançava, o cavalheiro revestia a mão esquerda com lenço branco de cambraia, e repetia-se a dança três vezes seguidas, porém com intervalo de dois ou três minutos que nos pareciam infinitos; podia-se dar a volta ao salão, de braços dados, conversando sob os olhares das matronas sentadas junto à parede. Mas a compensação era lucrativa: uma canja gostosa, salgados, refrescos e chopes. Os senhores, pais ou tios, em outra sala, jogavam pôquer e não tomavam conhecimento da festa. Isso durava das nove às duas horas da manhã, quando os rapazes iam acompanhar até em casa as moças com as quais mais haviam dançado.
* * *
Percorri várias pensões nesse bairro: Pensão Moss, Meirelles, Royal, e uma república quase só de capixabas, na rua Aristides Lobo, no mesmo correr da residência do Dr. Afonso Cláudio, em frente à de Medeiros e Albuquerque. Na república morávamos Antônio Horácio Costa, Jair Tovar, Luís Aguiar, Tancredo Miranda, capixabas, José Gayoso Neves, maranhense, e José Teixeira Leite Guimarães, fluminense. A pensão vinha de fora. Só fazíamos café e comprávamos pão e sobremesa. Era uma imundície. Ninguém arrumava cama, ninguém varria, não se arranjava empregada porque éramos só homens solteiros. A gripe espanhola nos alcançou no mês de outubro de 1918. Desertaram todos na primeira semana. Ficamos só três, Tancredo, Luís Aguiar e eu. Luís Aguiar, que foi atingido pela febre, mudou-se para a casa do seu tio médico, Dr. Alvino. A epidemia dominou o Rio, praticamente, durante todo o mês de outubro, e o clímax foi de uma semana. Os bairros mais afetados, além das favelas do Pinto, São Diogo e subúrbios, foram o Centro, que era muito habitado, o Estácio, Haddock Lobo, os morros circunjacentes e o Rio Comprido. 
Os cadáveres eram expostos nas calçadas. A Saúde Pública mobilizou a frota do Frigorífico Santa Luzia, que monopolizava a venda de gelo a domicílio — ainda não havia geladeiras automáticas — e percorria as ruas recolhendo os corpos. A população dos morros devia trazer seus mortos até às ruas planas. No largo do Estácio, no pátio da antiga Escola Normal, de manhã, os cadáveres chegavam às centenas. Os caminhões não passavam todos os dias. Os corpos apodreciam nas calçadas. A fedentina era insuportável. A Saúde Pública aconselhava a queimar folhas de eucalipto. 
Na esquina da Aristides Lobo, lado par, morava um dentista, do qual eu era cliente. Vi sua casa fechada, mas nada de anormal se percebia. Uma semana depois, quando amigos procuraram notícias, arrombaram as portas e encontraram oito cadáveres em decomposição. Morreram todos, inclusive os empregados. 
Por quatro dias os bondes deixaram de trafegar. As pensões suspenderam as marmitas. Eu escapei da doença, não da fome: as padarias fecharam. Ia a pé até a rua dos Andradas, no Hotel Globo, um dos poucos que ficaram de portas abertas, fazer uma refeição: apenas canja de galinha. Foi, creio eu, o mês verdadeiramente de maior desolação por que passou o Rio de Janeiro. Nunca se soube, na verdade, quantas vítimas fez a espanhola. Mas, pela leitura de jornais da época, os números publicados eram incoerentes: 15.000, 25.000 e até 30.000 disseram alguns. Em novembro, quando a cidade retomou o ritmo, só se via gente de luto. 
Como as escolas ficaram fechadas, por iniciativa do senador Jerônimo Monteiro, o Congresso Nacional votou a aprovação de todos os alunos por decreto, vetado pelo presidente Venceslau, e que, voltando ao Senado, foi unanimemente aprovado. 
O luto tão generalizado e a convalescença penosa não causaram, como seria o caso, manifestações entusiásticas das classes acadêmicas. Todos tinham um morto a chorar. Foram semanas de amargura e de recordações macabras.
* * *
Na Pensão Royal, Haddock Lobo, 200, me ocorreram episódios inesquecíveis. O ambiente era movimentado e agradável. Moravam casais de certa projeção e alguns estudantes. Como já disse, eu e meus companheiros ocupávamos um pavilhão isolado do corpo principal do edifício. A sala de visitas atapetada, com cortinas e sanefas, piano, consolo com jarras. O refeitório agradável e com mesas para quarto comensais. Todos os cômodos encerados e bem mobiliados. Era uma espécie de hotel-pensão e a diária avulsa era de oito mil-réis. Os mensalistas pagavam 150 mil-réis. Não havia jantar aos domingos. O ajantarado era farto e bom. Fiz amizades boas e uma me foi preciosa, a do tenente engenheiro-militar Durival de Brito e Silva, curso brilhante na Escola Militar. Por eu lhe ter resolvido um problema na construção do Campo dos Afonsos, que lhe estava afeto, tornamo-nos amigos. Tecnicamente nos respeitávamos. Ele aparecerá nos meus caminhos, 26 anos depois, como fator principal de minha quase independência econômica. Relacionei-me também com o capitão Sinésio de Faria, professor de Física da Escola Militar que, como grande conhecedor de Matemática, regia o Curso de Freicinett, na rua Uruguaiana, preparatório para as Escolas Militar e Naval. Relacionamo-nos e eu acabei regendo uma turma de Álgebra, durante certo tempo, em seu famoso educandário. Favorecia-me encaminhando-me alunos vadios, filhos de famílias de projeção, para dar-lhes aulas particulares a vinte mil-réis por semana, em meu quarto, três vezes por semana. De um deles me lembro pela sua fina educação: Oliveira Botelho, filho do ministro da Fazenda. 
Outra amizade boa, embora cerimoniosa, foi a de um simpático casal sem filhos, um gaúcho desinibido, elegantão, corretor de seguros e jogador de xadrez, que se tornou meu parceiro. Sua esposa era uma linda e elegante carioca, sempre bem vestida, de busto generoso, temperamento irrequieto e formada pelo Sacré Coeur, que gostava de literatura. Nossa intimidade cresceu e eu, de vez em quando, me sentava à sua mesa. Nossas palestras versavam sobre os mais variados temas: arte, literatura, teatro, ciências sociais. O marido só falava sobre seguros, a granja e seus pagos lá nas cochilas do Rio Grande. Sempre apressado, muitas e muitas vezes se ausentava e pedia, com empenho, que continuássemos a conversar para desenferrujar, como dizia, com muita graça, sua esposa, devoradora de romances franceses, língua que ele não dominava. Conversávamos até o último comensal se retirar da sala. Ela tendia sempre para o agnosticismo. Tinha francas restrições ao comportamento social, em que só via hipocrisia. Era uma alma inquieta a procurar nova definição de vida. 
À noite, Geraldo, satisfeito, conferia o volume de seguros vendidos. Monopolizava a colônia gaúcha; gabava-se de sua eficiência e subestimava os valores culturais; não gostava de cinema, não perdia os espetáculos de comédias. Quando nos topávamos, eu tinha que satisfazê-lo em seu único vício-passatempo: uma ou duas partidas de xadrez; para mim era sacrifício. Eu preferia a companhia da moçada que povoava as calçadas da Haddock Lobo. Embora não tivesse namorada efetiva, era louco por aqueles minutos de sete às oito e meia da noite a passear e a dizer tolices às pobres filhas de Eva. Às nove horas todos se recolhiam. Papai e mamãe assim exigiam e nós, os rapazes sem família, preguiçosamente, íamos para os aposentos cumprir o sacrifício de estudar. Isto depois das férias de junho, quando nos comprometíamos a iniciar a virada para enfrentar o rigor das bancas examinadoras. Porque até junho o prazer das farras superava o valor das ciências. Sábado e domingo os consagrávamos ao Assirius, ao Palace Club, os melhores centros de diversão que existiam no Rio. As Germaines, as Yvettes, as Colettes, dançando valsas dolentes, nos ensinavam a língua de Anatole France. 
Uma bela tarde estava eu na ante-sala do Cine Odeon, todo enlevado pelo virtuosismo do violino do maestro Andreozzi, à espera da sessão das cinco, quando Olga, minha elegante e culta interlocutora da pensão, sai acompanhada por um jovem advogado, de muita projeção. Não me viu, mas eu acompanhei o par até entrarem na limusine estacionada na rua Sete de Setembro, junto à porta de serviço do cinema. A pulga me picou a ponta da orelha. Assisti ao filme: era com Geraldine Farrar, grande estrela do cinema mudo, e voltei à pensão para jantar. O casal estava ao meio da refeição. 
— Senta, senta, só tomamos a sopa… 
Olga estava ruborizada e reticente. Anotei no meu subconsciente. Terminado o jantar, a clássica partida de xadrez e fui dar minha voltinha e comentar, com as amiguinhas do corso habitual, as cenas altas do filme que vinha sendo anunciado com grandes cartazes há muito tempo. 
Eu creio no diabo e o diabo muitas vezes nos prepara surpresas de consequências imprevisíveis. Uma semana depois, estou no boteco da esquina do Matoso com a minha rua comprando cigarros na contramão de quem vai para a Tijuca. Estou com olhar vago para o infinito. Eis que estaciona uma limusine preta e quem salta? Olga, uns cem metros antes da entrada de nossa pensão. O condutor do veículo era o advogado que eu surpreendera no fim da sessão de cinema. O carro partiu vagarosamente e foi fazer o retorno na rua Campos Sales. 
Raciocinei: se fosse parente, amigo da família, ela saltaria no portão da entrada. Saltando antes e caminhando a pé, tanto poderia ter vindo de bonde como de qualquer parte ali por perto. Quem me mordeu agora não foi uma pulga, mas um maribondo de ferrão agudo. 
Nem sempre o corretor almoçava na pensão. Ao contrário. No mais das vezes na cidade, com seus amigos, segurados em potencial. Os bons negócios se efetuavam saboreando-se petisqueiras regadas a vinho fino. Então Olga e eu comíamos a dois e a conversa girava em torno das banalidades costumeiras. Eu admirava-lhe o marido e o tratamento carinhoso que ele lhe dispensava com toda a fanfarronice gauchesca. Geraldo estava empenhado em adquirir uma casa na Tijuca, com jardim e pomar. 
— Tu irás churrasquear conosco e tomar um chimarrão, seu capixaba comedor de peixe. Já estou de olho numa propriedade na medida do que eu quero. Só me falta efetuar uma meia dúzia de negócios encaminhados. Dentro de um mês ou dois o negócio sai… 
Eu ouvia e o apoiava, mas minha imaginação se embaraçava com a nova maneira de Olga se portar. Na ausência do marido ela, agora, passava um tempão ao telefone, empolgada, falando baixinho… 
Comecei a desconfiar e dar a entender a Olga que eu percebia seu descaminho. A hipótese era o caso do casamento precipitado, gerando incompatibilidade de gênios. Eu defendia a fidelidade da mulher ao marido, mormente quando este lhe era dedicado até ao sacrifício. Caso a incompatibilidade fosse intransponível, o único remédio eficaz seria a dissolução jurídica do vínculo matrimonial. Nunca porém a infidelidade. Não me lembro mais como transcorreu o diálogo nesse dia. Faz tantos anos! Creio que fui estúpido e intrometido. Nossa conversa morreu de repente. 
Telefonei ao Tíndaro e fomos à Capela da Lapa, ao chope com os acompanhamentos. Relatei o acontecido e ele me respondeu que eu havia feito uma grossa besteira… 
Dormi ressacado e pela manhã fui acordado por um safanão que me pôs fora da cama com estardalhaço. 
— Acorda, seu filho da… para aprender a respeitar a mulher dos outros… — vociferava o Geraldo, já agarrado pelos meus companheiros de quarto. Surpreendido pelo insulto inopinado, tentei uma explicação inútil. Geraldo desvencilhou-se de meus colegas e saiu precipitadamente, prometendo fazer o diabo. 
Passado o susto, enquanto tomávamos o café nervosamente, depois de mil hipóteses, eu e meus colegas concluímos que Olga, vingando-se de minha indiscrição, tinha dito ao marido que eu lhe faltara ao respeito. Só restava um caminho para mim: mudar-me de pensão. Não era fácil, porque éramos quatro companheiros inseparáveis. De tarde, quando nos recolhemos, soubemos que o casal se havia mudado e nós continuamos no nosso pavilhão da Royal. Não mais tive notícias deles, até que, tempos depois, mal eu tinha terminado o curso, um dia me defronto com o gaúcho na avenida. Desvio-me mas ele, que me havia visto também, se encaminha, de braços abertos, para o meu lado e exclama: 
— Derenzi, que alegria encontrar-te! Devo-te uma explicação! Olga, que é a melhor mulher do mundo, confessou toda a verdade. Hoje vivemos felizes. Ela faz parte das Damas de Caridade, lá na Tijuca, e tu irás churrasquear conosco. Comprei a chácara, está uma beleza! 
Eu não fui churrasquear. 
[DERENZI, Luiz Serafim. Caminhos percorridos — Memórias inacabadas. Reprodução autorizada pela família Avancini Derenzi.]

———
© 2001 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
———

Luiz Serafim Derenzi nasceu em Vitória a 20/3/1898 e faleceu no Rio a 29/4/1977. Formado em Engenharia Civil, participou de muitos projetos importantes nessa área em nosso Estado e fora dele. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Deixe um Comentário