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Castelo

Castelo e o rio. Um rio que passa nos fundos de casa e é respeitado como coisa poderosa. Nas cheias, ele chega até perto da porta da cozinha e lambe as pedras da calçada como num desafio. Mas nunca houve a menor ideia de se aceitar a provocação. O Carlos pulou de cima da ponte para pegar nos seus chifres, como ele disse. Mas todo mundo sabia que o Carlos era meio destrambelhado e se pegou nos chifres do rio nunca se soube porque depois ele foi ficando triste, ficando triste e morreu. Não se sabe de quê. Isso dias depois que ele pulou na enchente do rio e saiu do outro lado perto dos ingazeiros, nos fundos da Delegacia de Polícia. Todos lembram também como o Fausto ficou em cima da cama, branco como uma vela, quando foi retirado do rio sem sentidos. Mas a menina dos Trazzi teve sorte pior. Saiu do rio já morta. Houve o enterro com muitas crianças em duas longas filas e ele no meio com uma cruz enfeitada de cravos amarelos.

Por essas e outras, neste justo momento que se passa neste ano de 1999, ou seja, uma eternidade depois do tempo em que o rio era assim poderoso, sinto o que talvez possa ser qualificado como um sentimento de desforra. Estou no final da rua Thiers Vellozo, em Castelo, uma rua que acaba justamente numa margem do rio. Que rio?

É a primeira constatação que faço. Que rio? Há um veio d’água que corre até aqui perto de meus sapatos afundados numa areia escura e que pode ser descrito como regato, ribeirão. Rio, nunca. Bem, um momento, um momento: estou mal situado. Na frente daquela touceira que fica numa espécie de ilha (agora percebo) é possível que exista um outro pedaço d’água que, reunido a este aqui, com certa boa vontade, pode ser denominado rio. É possível. Mas o que está fora de cogitação é que mesmo esses dois pedaços d’água, somados a mais cem ou mil do tamanho deles, jamais poderiam assumir a proporção daquele tal rio que o assombrava assim que começava a chover e ele, encolhido na cama, temia que a enchente pudesse ultrapassar a cozinha e chegar sorrateiramente até debaixo de sua cama.

“Está chovendo muito nas cabeceiras.”

Tropeiros tangendo mulas carregadas de café traziam notícias das misteriosas regiões da montanha onde o rio nascia. Quando finalmente as águas chegavam, muitos iam para cima da ponte olhar a procissão silenciosa trazendo as marcas da vitória do rio. Desce um tronco de árvore, um galinheiro que vai bamboleando ainda com todas suas telas e ripas intactas mas deserto de galinhas, ou talvez as galinhas tivessem, desde há muito, morrido afogadas. Pedaços das terras das margens ainda com o capim bem preso descem lentamente conformados com a conquista pelas águas de suas derrotadas províncias terrestres.

Mas, dentro de uma dessas chuvaradas e de tudo que as acompanhava, um momento feliz.

Pela manhã, ainda chuviscando, bate na porta, montado em seu burro ruão, o Guicciardini, um amigo da família, que morava em Venda Nova. Ele vinha a Castelo, todo mês, para comprar mantimentos. Sal, querosene, fósforos, arroz e açúcar que levava no lombo do burro em dois picuás. Nesse dia, ao chegar, tirou de um dos picuás uma gaiola de embaúba com um casal de gaturamos e lhe deu de presente. Trouxe também um queijo fabricado por ele. Queijo frito com polenta era o prato de que mais gostava. Um final feliz para uma noite em que acordou pelo menos duas vezes com a chuva forte no telhado e vigiando para que a água do rio não o surpreendesse entrando pela porta do quarto. Pena que os gaturamos tenham durado tão pouco. O macho morreu depois de um mês e, logo, a fêmea também, conforme a previsão do Ulisses, um empregado da chácara do Arquilau Vivacqua. Ele disse: “Um não agüenta a morte do outro. Morre de amor.” Foi mesmo.

O ano de 1999 e seu realismo nada fantástico continua me provocando, me pedindo para conferir outras ilusões. Saio de perto do rio agora reduzido às suas proporções “humanas” e caminho ao longo de uma rua paralela a ele. No caminhão que passa, procuro pessoas alegres que soltam balões coloridos para o céu. “É o caminhão do Chamoun começando o carnaval?” Não é. É apenas um caminhão carregado de sacos de cimento que vai em frente e vira na próxima esquina.

O calor de Castelo, no verão — dizia-se — arrebenta até as fachadas das casas. Não chegou a ver nenhuma fachada arrebentada. Mas, falando em calor, nessa névoa em que ficam envolvidas as recordações de quando se tem seis anos de idade, conservo um clarão que mais uma vez me faz ver, bem nítidas, certas pessoas, fatos e coisas de Castelo enquanto avanço por essa rua e olho em direção do Pouso Alto. Calor humano. Esta é uma marca a que sempre associei minha terra apesar das recordações enevoadas. Coisas, fatos e pessoas que se chamam família Tassis, o Dr. Mário Lima, médico que salvou minha mãe de um tumor no fígado, os Perim, as meninas dos Cola que achavam tão bonitinho, tão gordinho, o meu irmãozinho tomando banho na bacia, o Caio, pedreiro brincalhão, enfeitando os carros alegóricos do carnaval de 1935, o Selitti em seu bar, copos de caldo de cana e gelo, a fotografia da moça vestida de melindrosa colada na porta do clube e uma voz dizendo: “É a rainha do jazz,” o Auto, centroavante do Comercial FC e seu gol, o trem que trazia minha revista Tico-tico, novinha e com cheiro de tinta, vozes indefinidas falando: “No outro lado, no Caxixe,” Larry, colega de brincadeiras que morava ao lado de nossa casa, contando a história de um jogador chamado Tijolo Quente que cobrou um pênalti e tinha um chute tão forte que matou o goleiro. O goleiro, irmão do próprio Tijolo. As meninas filhas do representante das máquinas de costura Pfaff. O Hotel Mangueira com seus hóspedes sentados na calçada depois do jantar, embrocação com azul- de-metileno na Farmácia Central, os empregados da serraria em que o pai era sócio pedindo um vale a “seu Izé”, o piquenique no Pouso Alto… Uma legião de lembranças, cercadas de um calor humano que reduz o outro calor, o que racharia fachadas, a uma insignificância.

Continuo minha caminhada pela rua de Castelo para tentar descobrir pelo menos um ponto de apoio para essas lembranças de que sou sócio-proprietário remido. Perto da ponte, uma casa. A mesma casa, sem qualquer possibilidade de erro. É a casa de Dona Rosália.

Um dia ele entrou no jardim da casa de Dona Rosália. Viu repuxos onde canários tomavam banho, plantas por todo lado, trepadeiras floridas fechando as frestas do gradeado de madeira do caramanchão. A varanda com seus ladrilhos verdes e um sofá onde ele se sentou. Dona Rosália lhe trouxe uma xícara de café e um pedaço de bolo.

Fiquei parado perto da casa de Dona Rosália, para conferir. Com muito cuidado. Conferido. É a mesma casa e só não perguntei se Dona Rosália estava em casa para não haver a menor possibilidade de fratura num tempo que veio de tão longe e estava ali para me oferecer seu abrigo.

P.S.: Os nomes em itálico são os que a “memória enevoada” registra. Mas não posso garantir que sejam esses mesmos. Infelizmente, todas as fontes que poderiam ser consultadas não existem mais. Quanto às situações em que são citadas, efetivamente ocorreram.

[In Novas crônicas de Roberto Mazzini, da “Coleção Gráfica Espírito Santo de Crônicas”, em 2003.]

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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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