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Cenas e paisagens do Espírito Santo

Vitória. Acervo Biblioteca Central da Ufes.
Vitória. Acervo Biblioteca Central da Ufes.

Observações sobre o texto e a autora



A autora, em visita ao Estado do Espírito Santo durante o governo Jerônimo Monteiro (1908-1912), parece ter ficado impressionada com a modernização de Vitória empreendida naquele período, produzindo um artigo que é uma verdadeira propaganda da cidade e da administração de então. Esse artigo foi publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro do ano de 1912.

Em junho de de 1994 a Revista Você, n.23, da Secretaria de Produção e Difusão Cultural/Ufes, também utilizando o mesmo material que possuímos, publicou as três primeiras partes desse texto.

***

I

Propaganda do Brasil – o que se dizia do Estado do Espírito Santo – viagem – Os trens da Leopoldina – Jornais de Campos – Itabapoana – Paisagens espírito-santenses – O Saturno – Habitações camponesas – O destino das terras marginais da linha férrea – A construção dessa linha e a iniciativa do Governo espírito-santense – A estação terminal de Argolas – A luz – a travessia do canal em lanchas – As senhoras de Vitória – Cais de embarque, etc.

Estou convencida, agora mais do que nunca, de que precisamos fazer a propaganda do Brasil—não só na Europa, onde ela deve ser feita com extrema habilidade, como no próprio Brasil. Porque a verdade é esta: nós conhecemos muito imperfeitamente o nosso país. Acabo eu própria de obter uma prova disto, observando num estado vizinho coisas, que estava bem longe de imaginar.

Deliberei por esse motivo expô-las a quem tinha delas a mesma ignorância que eu tinha. Escrevo com inteira e absoluta isenção, por não ser presa à política por nenhum vínculo quer de família, quer de simpatia pessoal.

Comecemos:

Quando constou que eu arrumava minhas malas para uma excursão à Vitória, alguém, que não há muitos anos viveu por algum tempo nessa cidade, correu a avisar-me que as suas ruas eram fétidas, verdadeiros depósitos de lixo, não devendo eu esquecer-me de carregar comigo frascos de desinfetante e perfumarias. Obedeci sem hesitação, pondo um vidro de Feno, em cada canto da mala e enchendo de frascos de essências a bolsinha de mão. Além dessa calamidade, avisava-me o meu informante, há a da falta d’água. Um chafariz pinga uma lágrima hipócrita de cinco em cinco minutos, ainda assim espremida com inaudito esforço e esperada pela população com enorme anseio. Em frente do chafariz há sempre uma multidão de carregadores, homens, mulheres e crianças, com bilhas e latas vazias de querosene, fazendo cauda, à espera do momento feliz de ir aparar o choro da fonte quase exaurida.

Só esse espetáculo basta para demonstrar a apatia daquela gente. Quem quiser, após as agruras de uma longa viagem, refrescar-se, ao chegar ao hotel, com um banho geral, terá de avisar o hoteleiro com certo tempo de antecedência por carta ou por telegrama, para que ele possa dar para isso as suas providências.

Ouvindo tais palavras eu não sabia se havia de sorrir, se de tremer, tanto elas me pareciam mentirosas ou apavorantes! Logo a onda das informações engrossou. Toda a gente que dizia conhecer o Espírito Santo me descrevia com pena o seu atraso material. Além do mais afirmava-se que o fanatismo do seu atual presidente criara por todo o estado uma atmosfera opressiva de desconfiança e de terror. Ninguém dobrava uma esquina sem se benzer. Falava-se em funcionários exonerados de cargos vitalícios por não assistirem à missa (!); em ruas coalhadas de batinas e de gente escorrida, de olhos postos no chão ou espreitando pelas frinchas a vida alheia para fazer ressuscitar na terra brasileira a alma terrível da Inquisição.

Procuro orientar-me pela leitura dos jornais. Mas o jornais não me orientam. Ao contrário, agravam-se a expectativa, comentando com acrimônia um contrato de madeiras firmado pelo governo do Espírito Santo com uma firma estrangeira, em que, segundo dizem, as florestas famosas desse estado serão devastadas, pondo a nu a terra e amesquinhando os mananciais dos rios. Eu, que sou uma defensora das florestas, toda me sinto arrepiar a esses comentários. Diante de tantas informações desagradáveis, não será muito mais prudente deixar-me ficar quietinha em casa? Voltando-me, entretanto, a falar da beleza da baía de Vitória, Afonso Celso, alma de artista e de poeta, recomenda-me que não deixe de navegar em horas de vária luz por entre as sua penedias e as suas ilhas maravilhosas. Há qualquer coisa que me chama, que atrai o meu coração e o meu pensamento para essas terras tão nossas vizinhas e tão nossas desconhecidas; tomo uma resolução e invisto para o trem.

***

Às nove horas de uma sexta-feira parti da estação de Santana, em Niterói, para a Vitória num confortável vagão-leito da Leopoldina. O quarto, iluminado a luz elétrica, fornecida ao trem pelo movimento das rodas e nunca interrompida, porque ele dispõe de acumuladores, permite que, mesmo deitada, eu continue a leitura de um livro que me interessa. A cama é boa, de alvos lençóis de linho e cobertor branco, de lã. Para início da viagem não estou mal; de resto, o movimento de tangage (dos pés para a cabeça) imprimido ao corpo por esse leitos transversais parece-me menos enjoativo que os colocados no sentido longitudinal, como os da Central. Com pequenas interrupções, durmo até a vizinha cidade de Campos, onde se passa ao carro-salão, e onde há uns tantos minutos de demora para o café. Percorro a gare — olho para todos os lados, a ver se lobrigo algo da cidade: pontas de torre ou dorsos de telhados. Mas a cidade deve ficar longe; não vejo nada e verifico com alegria que, se nada posso julgar, embora furtivamente, da sua grandeza material, tenho do seu desenvolvimento intelectual uma prova ao alcance das minhas mãos: os jornais. Nada menos de cinco. Compro-os com avidez e atiro-me para o trem, que partiu logo.

Da minha travessia pelo estado do Rio tinha-me ficado um desgosto: não ter visto a estação, já que não podia ser mais, da velha cidade de Macaé, a que sou afeiçoada por tradições de família e que não conheço. Mas agora, à luz da manhã toda azul e ouro, eu não tinha tempo para lamentar coisa nenhuma e só para ver.

A região descampada que percorríamos respondia à nossa curiosidade amiga com uma nuvem de pó, e foi só transposto o rio da divisa, o claro e manso Itabapoana, que essa nuvem loura e importuna se dissipou, como que por encanto.

Por maior que seja a simplicidade com que procuro escrever estas linhas, desornando-as de todo o luxo de uma adjetivação embaraçosa, tornando-as, tanto quanto possível, numa espécie de fotografia intelectual, em que se veja mais a nudez da verdade do que a atmosfera que a envolve, é bem possível que me fuja da pena uma ou outra expressão, que possa parecer ao leitor demasiada em relação à beleza dessa estrada que sobe em voltas de valsa de longas elipses até a uma altura de setecentos e dezesseis metros, e que desce do mesmo modo até quase ao nível do mar.

Os cortes das montanhas desenham pórticos de roxo antigo no fundo verde da vegetação. A estrada, evitando a perfuração de túneis, como se tivesse medo ao escuro, coleia pelo dorso das montanhas, quase na grimpa, ora aproximando-se, ora fugindo de águas que se despenham ou que deslizam. Aqui ondeia o Muqui, de leito tachonado como uma pele de tigre, e de alma sossegada como uma pomba juriti. Apertado entre colinas e penedias, acompanha por algum tempo a estrada, dando lugar depois a outros rios mais fortes e cachoeirosos.

Há, porém, um trecho nesta belíssima estrada da Leopoldina, de que jamais se esquecerá quem o tenha percorrido com a cabeça fora da portinhola do trem: é o “Soturno” ou Garganta do Inferno. O trem corta o flanco da penedia imensa, cosendo o seu corpo de réptil negro e fumegante ao corpo duro e frio de pedra branca. O precipício é terrível. Não tem mistérios. É a ribanceira enorme, íngreme, alvadia, em que se despedaçaria, implacavelmente, carne humana ou ferro bruto, que nele fosse despenhado.

Vista de cima, do caminho estreito em que parece haver apenas espaço para os trilhos, cortado parte na rocha, parte suspenso sobre um viaduto, a pedreira do Soturno, na sua nudez e austera simplicidade, acorda fatalmente em quem a veja a idéia da morte. Vista de fora, de uma curva da estrada, tem o aspecto de uma obra de arte monumental, escultura da nossa natureza posta ali pela mão formidável de um ignoto Miguel Ângelo.

A par de belezas imponentes há doçuras de paisagens, que atraem a imaginação para outras idéias.

Não me sinto nunca afagada pela sombra fria de florestas densas. As regiões que atravesso devem ser antes propícias a campos de criação, embora todas ondeadas pelos dorsos dos morros sucessivos. Há de longe em longe restos de cafezais e um ou outro canavial sem importância.

O destino daquelas terras deve estar realmente preso ao gado. Entre montes de vegetação rasteira e clara aparecem aqui e além grandes tufos de árvores. São os bosques de mataria, em que sobressaem as umbaúbas e imbaíbas com os seus troncos altos, esguios, muito brancos, como ossos descarnados ou grossos traços verticais de giz sobre o fundo verde-negro da vegetação.

Sempre que viajo pelo interior dos nossos estados procuro, embora de passagem, observar o tipo de habitação dos nossos camponeses. Estes, do Espírito Santo, parece terem certos instintos de gosto. As casa, se ainda têm telhados de palha, esta é subjugada por linhas paralelas de trançados de embiras aparadas com maior ou menor perfeição. Entretanto, entre estes telhados são freqüentes outras cobertas de escamas de madeira com a sua cor natural. As casa são em geral bem caiadas, resplandecendo de alvura no meio dos prados, e tanto os seus umbrais como as suas portas vêm-se ao longe pela violenta tinta azul anil com que são pintadas. O aspecto é agradável e dá, francamente, a quem o vê, uma impressão saudável de alegria e de asseio. Uma outra nota que afina com essa é a de fazerem paredes divisórias de terrenos com pés de laranjeiras, plantadas tão perto umas das outras que os seus ramos se embaralham e confundem, a ponto que elas mesmas, interrogadas, não poderiam dizer quais seriam os seus galhos, quais os das suas vizinhas.

Isto, que parece coisa nenhuma, é já, aos meus olhos, um magnífico sintoma. Passam-se, todavia, largos trechos sem que veja nenhuma habitação. A terra está à espera do trabalhador que a fecunde, do rebanho que a anime. Ao longe, a famosa pedra Itabira aponta silenciosamente o azul limpo do céu, entre os grandes rochedos — o Frade e a Freira. Por mais curvas que o trem faça, vejo-a sempre ao longe como uma sentinela sonhadora, coberta pelo véu azul da idealidade.

Eis-me, porém, sobre o raso Itapemirim, largo e cantante, em frente à cidade do Cachoeiro, que, a julgar pelo movimento da gare, deve ser animada.

Tendo almoçado no próprio trem, no seu bem organizado salão-restaurante, eu não tinha, desde a véspera à noite, posto o pé em terra senão na curta estadia em Campos, para o café matinal. Não me sentia, contudo, enfadada pela viagem; ao contrário, tinha a convicção de que, só por si, ela justificaria interesse de uma excursão à Vitória.

Essa estrada, inaugurada pelo Dr. Nilo Peçanha, creio que no último mês da sua administração, é um verdadeiro desafogo para o estado do Espírito Santo . Ela é tanto uma estrada estratégica como um traço de união entre o progresso da capital da República e a Vitória, e representa um golpe de alto tino administrativo do homem que, como depois observei, à energia silenciosa de um esforço incansável, alia a habilidade de um fino diplomata: o Dr. Jerônimo Monteiro.

Quando esse senhor assumiu a presidência do Espírito Santo, encontrou feito um trecho dessa estrada, entre a cidade da Vitória e a do Cachoeiro, tendo, portanto, princípio e fim em terras do mesmo estado, numa zona de insignificante produção agrícola e pequeno movimento comercial. O custo desse trecho da estrada tinha sido excessivamente caro e sua manutenção era incompensada, mesmo onerosa. À vista desse embaraço econômico, o governo do estado tomou a resolução progressista de o vender por preço reduzidíssimo à Leopoldina, impondo-lhe a obrigação de, em prazo determinado, inaugurar a viação férrea entre Vitória e Niterói e exigindo ainda dessa Companhia outras obrigações entre as quais figura a construção de uma grande ponte movediça que ligue a cidade da Vitória ao continente. Houve naturalmente quem pusessem as mãos na cabeça, clamando contra o desperdício de ver vender por quase nada o que tanto dinheiro tinha custado ao estado; mas tudo leva a crer que essas mesmas pessoas estejam hoje convencidas de que, mesmo que o governo tivesse feito presente desse trecho de caminho de ferro à Leopoldina, ainda assim teria lucrado com a transação. Graças a esse rasgo administrativo, nem as pessoas nem os progressos da Capital Federal precisam esperam, com oito dias de intervalo, o enjoativo transporte marítimo, a fim de seguirem para a terra capixaba.

Estas primeiras informações foram-me fornecidas no próprio trem por um viajante português, que eu conheci há anos no rio de Janeiro e que é atualmente morador na Vitória. Nenhum laço o prende à política nem às pessoas da representação oficial. É, pois, uma voz insuspeita, a primeira voz que me revela alguma coisa sobre a organização administrativa do Espírito Santo.

É ainda esse viajante quem me aponta, na vertiginosa corrida do trem, uma grande represa de águas e uma usina fornecedora de eletricidade.

— Então a cidade da Vitória…

— É iluminada a luz elétrica. Devemos também esse melhoramento ao governo atual. E vai ver que boa luz!

— Antes, havia gás?

— Não; havia lampiões de querosene e lanternas. Quem se aventurasse a sair à noite teria de levar luz consigo… Passar-se do petróleo e da vela à lâmpada elétrica é caminhar aos saltos!

Era já noite quando o trem parou na sua estação terminal, em Argolas, em face da cidade da Vitória. A gare estava coberta de povo, sendo grande parte dele constituído por senhoras, elegantemente trajadas. A estação tem o caráter provisório; é feia e de madeira. Espera naturalmente o lançamento da ponte para se mudar definitivamente para a outra margem. Mas não há tempo de olhar para isso, já as lanchas estão atracadas à espera dos passageiros, e temos todos de saltar para elas sem perda de um minuto.

Ainda não rompeu o luar, mas no céu de veludo azul ferrete brilham os astros com um esplendor diamantino. Nas águas escuras tremeluzem reflexos de ouro e de escarlate de várias luzes, as lanchas partem, e em poucos minutos pisávamos o solo da Vitória, desembarcando no Éden-parque. A cidade tinha uma feição alegre e tumultuosa, a que não me referirei por ser anormal; somente posso assegurar que ao adormecer, tarde, nessas noite no hotel, eu me sentia abalada pela doce impressão de uma agradável surpresa.

II

Cidade de granito e de mangue – O estilo da cidade – Maria Ortiz e os Holandeses – Casas comerciais – Uma esperança – Uma crisálide que rompe o casulo abandonado – Vila Moscoso – Um parque e duas avenidas – O quartel de Polícia – Lodaçais e mangues que desaparecem – O hospital novo – Habitações populares -A cidade acorda de um letargo – O Bairro do Rubim ou a cidade de palha – Os telhados – A água – Os filtros – Elementos de salubridade – O astro saudoso encarregado do policiamento da cidade – A luz elétrica – Águas servidas – Os esgotos – Quando as famílias dos oposicionistas devem discordar dos seus chefes – O futuro Mercado – O futuro hotel – O papel desempenhado pelos frascos de Fenol e de essências -Serviço de limpeza pública e domiciliária – Em duas horas de passeio – O Suá – A capela do Rosário – O palácio presidencial; o cais do imperador; o jardim da Esplanada – Velhos conventos – Maravilhosa transparência da atmosfera – Os astros – Partida para Vila Velha.

Vitória, se não é, como a Lisboa cantada pelo poeta, uma cidade de mármore e de granito, é uma cidade de granito e de mangue.

A casaria apertada, no estilo das velhas cidades minhotas, encarrapita-se pelo morro acima formando ladeiras e vielas que fazem, a quem as veja pela primeira vez, pensar nas aventuras dos romances de capa e espada.

Aqui na rua estreita descendo em sucessivos lances de escadas entre prédios altos, de janelas à antiga, de uma das quais Maria Ortiz despejou água a ferver sobre os holandeses invasores; acolá a sinuosidade de um caminho beirando as paredes de um convento ou de um colégio fundados pelos jesuítas nos tempos coloniais e, de repente, um corte de terreno, de onde se descortina o azul do mar ou o dorso verde das colinas da outra banda, isto é, do continente.

Na linha plana, em baixo, as ruas comerciais têm muito maior movimento do que eu poderia supor, à vista do que me diziam no Rio da apatia do povo e do atraso do lugar. Nessa parte da cidade as casas, já com fachada à moderna, infundem, muitas delas, a idéia da abastança e da prosperidade.

Há coisas que não se vêem nem se explicam — sentem-se. O ambiente de um lugar tem a sua voz que, embora intraduzível, nos assegura se nele se vive com esperança ou desespero. E tudo, neste torrãozinho pitoresco que é a velha cidade de Vitória, me fala do futuro, porque, todo ele é uma esperança que lateja, uma crisálide que rompe o tosco casulo abandonado para espanejar à luz as asas multicores.

Basta olhar, de qualquer ponto em que se descortine uma área considerável, para se observar o seu esforço de transformação. Os mangues, a que aludi, começam a desaparecer sob as camadas do aterro. Na parte baixa da cidade, em uma planície conquistada a um antigo e extenso lodaçal, Vila Moscoso, vi o debuxo de duas avenidas e um parque já com o leito do seu lago pronto e já combinadas as suas futuras sombras pelo agrupamento das plantas, indicadas nos relvados nascentes.

Em frente a esse campo, agora todo drenado e enxuto, onde em vez de caranguejos patinhando em lama correrão em breve as crianças por sob a galharia das árvores benéficas, o Quartel de Polícia, livre agora das umidades geradoras do béri-béri, que se infiltravam nas suas paredes precipitando a ruína do edifício e a morte dos soldados, firma-se em terra seca e mostra internamente condições de higiene, que não sei se serão comuns em outros quartéis. No alojamento das praças, por exemplo, vi camas com lastros de arame revestido de sola. Essas camas são móveis, ficando durante o dia suspensas, para que toda a sala livre e nua possa ser lavada sem estorvo. O ofício rude do soldado é adoçado assim na sua hora de repouso. Não tive tempo de visitar as aulas de leitura e de música no curso policial, porque a minha visita a esse estabelecimento foi apenas uma visita de passagem, matinal e apressada.

Não longe desse lodaçal desaparecido, está desaparecendo também um mangue, engolido pelo aterro do hospital novo. Esse hospital é edificado em pavilhões separados, quase concluídos, olhando do alto de uma colina para a cidade e para o mar. Se bem entendi o meu cicerone, para construírem esses pavilhões em terreno nivelado fizeram um platô no alto da colina, e é com a terra tirada para esse efeito que aterram o mangue próximo, saneando o local e prolongando uma das ruas mais bonitas de Vitória, que é a avenida Schmidt.

Foi um curto passeio matinal que tive ocasião de observar estas coisa, que desejaria descrever com absoluta clareza, porque tenho a convicção que serviriam de estímulo a muitas atividades ainda adormecidas…

Realmente a impressão, que tive naquele curto passeio, foi uma alegre impressão de trabalho.

Enquanto as carroças cobriam o lodo salgado com a terra seca do morro; enquanto os trolhas e os pintores davam a última demão a uma grande série de habitações populares higiênicas e baratas, feitas por iniciativa do governo de acordo com um poderoso capitalista do lugar, com quem contratou a edificação de duzentas casas sob várias condições de preço, de tipo e de tamanho, prestando com isso grande benefício à população crescente da Vitória, enquanto as paredes do hospital novo cresciam para refúgio de futuros padecimentos, cá em baixo na estrada os engenheiros eletricistas se apressavam mandando a turma dos seus empregados abrir covas no chão para os postes dos bondes elétricos.

A cidade acorda de um letargo de séculos e quer ganhar tempo aos saltos.

Foi no bairro Rubim, antigamente Cidade de Palha, que eu vi as obras, que acabo de citar. Essa visita não figurava no programa estabelecido para os seis dias da minha demora na Vitória.

Para ver a Cidade de Palha não roubei nada ao meu programa, mas roubei ao meu sono algumas horas, que só no Rio recuperei. Pelo menos isto indica que a Vitória tem que ver!

Vila Rubim, 1908. Acervo Biblioteca Central da Ufes.
Vila Rubim, 1908. Acervo Biblioteca Central da Ufes.

Que é a cidade de palha? Uma vila de operários, uma espécie do nosso Morro de Santo Antônio, mas sem lixo, com alegria, com asseio, com água. Até ao alto do mais alto barranco, onde se aninha um casebre, ali vereis uma torneira jorrando água em abundância.

Antigamente todas as cobertas das habitações desse bairro eram trançadas com folhas de palmeira ou com sapé.

Era o canto da pobreza, bem significativo e bem pitoresco, entretanto.

Numa colina, em frente ao canal que divide a ilha do continente, esse bairro policromo e modesto dá a impressão de um quadro curioso, uma grande tela coberta de borrõezinhos de tintas disseminadas sem ordem, ao salpicar dos pincéis, pela mão fantasiosa de um paisagista risonho.

Hoje as casas têm paredes caiadas, e a maioria delas é coberta de telhas. Pode-se ainda assim, conforme observou o ilustre médico que me acompanhava, presidente do Congresso espírito-santense sr. dr. Júlio Leite, a cujo espírito e a cuja amabilidade seria ingratidão muito feia não fazer eu aqui uma referência, estudar nesses telhados da Vila Rubim, alinhados em vários planos como nas camadas geológicas, as diferentes épocas da sua história.

Ao lado de um ou outro teto de palha ainda refratário, vê-se um de zinco com a sua cor natural, para logo adiante aparecerem outros também de zinco, mas já pintados de vermelhão ou verde, até aos outros, de telha comum. Não será preciso esperar muito para surgirem entre eles alguns de terraço, com as competentes balaustradas e tinas para flores…

Mas a principal alegria para os habitantes do Rubim, como para os de toda a cidade, é a água. Se para os ricos e os remediados a água era ainda há três anos na Vitória um líquido quase tão precioso como o Champagne, imagine-se o que seria para os operários, que a não podiam comprar com a mesma facilidade, porque na estação estival cada lata (das de querosene) cheia de água custava 200 réis, 500 réis e, quando a seca apertava, dez tostões e por muito favor! Então ela era colhida dos mananciais escassos da ilha, distribuída em quatro chafarizes da cidade, fora alguns poços para serventia pública. Parece impossível que um tal estado de coisas pudesse durar perto de um século, para só agora ser remediado, mas felizmente remediado de um modo absoluto e definitivo. Disseram-me haver na Vitória água pura para uma cidade de dez vezes maior população, e que haverá em breve para uma cidade de cem vezes maior população, porque está sendo atacada com vigor uma nova obra para abastecimento de água aos arrabaldes do continente, bem como outra muito importante — que é a construção dos filtros. A água sairá já filtrada das torneiras, e não em pranto gotejado como outrora, mas em torrentes copiosas.

Tanto este elemento de alegria e de salubridade como o da luz elétrica, que substituiu as lâmpadas belgas a querosene que alumiavam as ruas, com exceção das noites de luar, em quem de boa ou de má vontade, o astro saudoso ficava encarregado do policiamento da cidade; tanto esses dois melhoramentos como ainda o dos esgotos, inaugurado no ano passado, deram tamanha popularidade na Vitória ao atual governo do Espírito Santo, que não se pode deixar de falar num, e com justo louvor, sempre que se tenha de falar da outra.

Até há bem pouco tempo era um problema saber-se nessa cidade, em que a maioria das casas não tem quintais, onde atirar-se um pouco de água servida, visto que nem sempre pode ser considerada obra meritória vazar-se de uma varanda qualquer tachada de barrela a ferver sobre a cabeça de quem passe, seja holandesa ou cabocla, pacífica ou belicosa.

Mas foi sobretudo o abastecimento da água, primeira comodidade estabelecida pelo sr. Jerônimo Monteiro na capital do Espírito Santo, que lhe granjeou a simpatia da cidade, e muito especialmente a de todas as donas de casa. As próprias famílias dos oposicionistas discordam com certeza dos seus chefes sempre que abrem as torneiras dos seus banheiros ou das suas cozinhas.

A par das obras que observei nessa excursão matinal, citam-me outras já contratadas e com proteção do governo, como por exemplo o mercado. O de agora será substituído por um outro de ferro e de vidro, com aquário para peixes e câmaras frigoríficas para carnes e frutas. Falam-se também da construção de um hotel com cerca de oitenta quartos e todos os rigores da higiene e do conforto moderno, preocupação que não pode ser adiada, porque já é considerável o número de forasteiros nessa cidade. E esse número crescerá em pouco tempo enormemente, sem a menor dúvida.

Volto para o meu hotel com a cabeça cheia de surpresas. Realmente, será esta a gente apática, de que me falavam, e esta a cidade fétida atapetada de lixo? Para certificar-me ainda, chego à janela do meu quarto. Em frente, a ladeira da Matriz sobe apertada entre casaria de paredes brancas; em baixo, ondeia outra rua edificada em estilo mais moderno. Olhei: tanto uma como outra estavam limpas. Inclinei-me da sacada, dilatei as narinas no esforço de perceber a qualidade do cheiro dessa cidade marítima. Não senti nada. Se nas varandas não havia rosas, também nas portas não havia lixo. Lembrei-me então dos meus vidros de fenol e de essências, ainda arrolhados, e não pude deixar de sorrir.

Contando eu isto a algumas pessoas nesse mesmo dia, retrucaram-me que na verdade até pouco tempo o leito das ruas da Vitória permanecia por longas horas enfeitado por pequenos montículos de retalhos e de detritos de toda a espécie. O atual governo estabeleceu o serviço de limpeza e de higiene pública e domiciliária, de modo a fazer cessar por completo essa vergonhosa exibição de imundícies.

Em duas horas de passeio, feito ora de bonde, ora a pé, tive assim nessa manhã ensejo de observar, colhendo-a a bem dizer, em flagrante, a ânsia de progresso que se está desenvolvendo na capital do Espírito Santo, essa pequena cidade, hoje de tão originais aspectos e tão alegres coloridos e destinada a ser em futuro não remoto um grande empório marítimo; assim lhe sucedam a este atual outros governos igualmente patrióticos e ativos.

Praia de banhos do Suá.

Em contraposição ao bairro dos operários, a antiga Cidade de Palha, há o bairro elegante da Praia do Suá, preferido por toda a gente que pode hoje na Vitória construir um chalé ou um palacete, Fica um pouco distante do centro. Corresponde em ponto muito mais pequeno e em relação à cidade à nossa Copacabana. Demais a mais, é a melhor, se não única praia de banhos da Vitória, e parece que muito concorrida, pela facilidade de condução, indo o bonde até à praia em viagens amiudadas. O bonde atravessa grandes extensões ainda por edificar, ora em linhas retas, ora em estradas curvas marginando golfos e mangues. Mas esses mangues estarão em breve cobertos de bosques de eucaliptos e essas colinas alegradas pelos talhões das hortas e dos jardins.

O seu destino está escrito pelo progresso da cidade que desperta, guardada à vista pelo penhasco majestoso do Penedo, que desempenha na baía da Vitória, com mais austeridade, o mesmo papel ornamental do nosso Pão de Açúcar.

Conquanto a cidade seja constituída num terreno rochoso, há nela em vários pontos alguns tufos de vegetação forte de um verde intenso, como um, do qual se destaca o palacete do coronel Guaraná, e o outro que serve de fundo à capela do Rosário, que se vê de longe com a sua branca escadaria de pedra e o seu adro cingido de pilastras e de grades.

Como em toda a parte do mundo por onde andem, os jesuítas souberam escolher na Vitória os pontos mais culminantes e melhores para suas edificações. Dá disso testemunho o próprio palácio presidencial, que é um antigo convento construído na parte alta da cidade, e dominando por uma das suas faces laterais uma larga escadaria de pedra que vai até a baixo, o cais do Imperador. Em frente à sua fachada principal há um novo jardim, de esplanada, sustentado por muralhas, e onde duas vezes por semana tocam as bandas locais para alegrar o povo. Junto ao palácio, tem a igreja de S. Tiago, que não visitei, como não visitei também o velho convento de S. Francisco, o que lamento, porque deve haver dentro deles algum assunto antigo e artístico digno de atenção. Nem ousei falar nisso, porque havia um programa a cumprir, e eu começava a perceber que a pequena e tão singular cidade de Vitória não se mostrava toda em poucos dias a ninguém.

O que notei ali desde o primeiro dia até ao último, foi uma admirável transparência na atmosfera, uma claridade puríssima que envolvia as coisas, fazendo-as realçar com todos os seus detalhes.

Essa nitidez que deleitava os meus olhos deve fazer o desespero dos pintores que tentem passar para a tela as encantadoras paisagens espírito-santenses. Águas, troncos, pedras, galharias de árvores, telhados de casas ou barrancos de estradas, não se dissimulam nem se fazem adivinhar sob nenhum véu de névoa que os idealize; mostram-se cruamente, nuamente, em todas as minúcias da sua cor e da sua contextura. O céu tem por isso tintas de um fulgor delicioso, manhãs de turquesa líquida, crepúsculos cor de rosa que tingem de vermelho as águas fundas do mar. Mas é sobretudo à noite, que na sua transparência e profundidade o firmamento mais se embeleza pelo clarão lucilante dos seus astros.

Mas não nos detenhamos a olhar para as estrelas feiticeiras, porque é tempo de tomar a lancha e partirmos para Vila Velha.

III

A baía da Vitória – Um canteiro ambulante de papoulas – Vila Velha – O fim destes artigos – Um período de transformação – A sociedade – Pedro Palácios – O Convento da Penha – Um quadro de Velasquez – Efeitos da fé – A construção do Convento no alto da Penha – Rivalidade de Vila Velha e da Vitória – A Diamantina e seus prodígios futuros – Ladeira mais fácil de subir que descer – Promessas – Hospedagem fidalga – Escolas – Governo Municipal de Vila Velha – Fortaleza de Piratininga – Beleza do local – Ordem do estabelecimento – Ginástica sueca – “Five o’clock tea” – Doçura ambiente – Volta à Vitória.

Eram oito horas da manhã, quando “Santa Cruz” zarpou da Vitória com rumo à cidade do Espírito Santo.

Ora, até que enfim, ia eu ver essa poética baía tão recomendada pelos poetas e pelos navegantes. Propensa às contemplações da natureza, desviei a atenção das pessoas que me rodeavam, o que posso garantir não ser coisa fácil, visto que a sociedade da Vitória tem na singeleza do seu trato seduções imperiosas, e abri bem os olhos para as maravilhas dessa porção de mar em que a “Santa Cruz” ia estendendo o lençol do seu rasto escumoso.

A quem já conhece a baía Guanabara parece impossível poder encontrar motivo de admiração em outra baía, de mais a mais do mesmo país, o que quer dizer da mesma natureza e a pequena distância, relativamente. E, todavia, encontra-o. A da Vitória tem surpresas. Toda ela é feiticeira, toda ela é um misto de poema e de graça, de transparências lúcidas e de recortes airosos. Porque eu levasse talvez nos olhos a impressão majestosa da baía do Rio, tudo nessa do Espírito Santo me parecia de proporções reduzidas e tendo nisso mesmo um encanto muito peculiar e muito interessante. As montanhas que a rodeiam não assombram ninguém; guardam proporções perfeitamente compreensíveis e de uma normalidade de formas quase inquietante.

Em certos pontos, quem está dentro dela pode julgar-se em um lago, tanto a conformação das terras que a cingem parece isolá-la do grande Atlântico.

Alguém, dentro da lancha, chama a minha atenção para os pontos mais pitorescos: aqui uma ilhota; acolá uma linha branca de praia, ou a habitação de um inglês, de bom gosto, numa colina solitária e verde, ou um bosque à beira da água. No cimo de tal montanha azul, cujo nome a minha triste memória esqueceu, descrevem-me uma cavidade natural, para onde os índios atiravam os seus mortos.

Ficava assim o seu alto cemitério de fácil comunicação com o céu.

Reconheço de longe a graciosa Praia do Suá com as suas barracas brancas ainda armadas para os banhistas; e perto o forte de S. João, Penedo, e o contorno de terras vistas na véspera. O mar está de um azul veemente. Cruzamos com outra lancha, em que escolares de vestidos escarlates, uniforme dos colégios, fazem lembrar a floração de papoulas num canteiro ambulante.

Sacodem-se lenços, mas já alguém me faz voltar a cabeça para a Pedra dos Ovos, ilhota que lembra as da vizinhança de Paquetá.

Seria estultice tentar sequer descrever com esta minha pena rombuda e trôpega o encanto das terras, que circundam a baía da Vitória. De resto, o fim destes artigos não é fazer literatura, mas dar, com a possível clareza, idéia do movimento de um dos nossos estados de menores recursos e em um período que é para ele, positivamente, de transformação.

Foi a verificação deste fato que me impulsionou a escrever estas linhas, com a esperança de que elas possam servir de alento a outros estados de mais frouxa iniciativa.

Fique, pois, entendido que a baía da Vitória não desmentiu, antes confirmou absolutamente todo o bem, que dela me tinham dito, e que foi com os olhos cheios da sua beleza que aportei a Vila Velha, primeiro pouso desse desventurado boêmio Vasco Fernandes Coutinho, a quem por mercê de D. João III foi doada a capitania do Espírito Santo.

Rodeada, ali como na Vitória, por uma sociedade fina e carinhosa, empreendi corajosamente a subida do convento da Penha, proeza de que me sinto ainda agora um pouquinho espantada. Não sei a quantos metros de altura fica esse templo, mas posso assegurar que jamais pisei rampas mais resvaladiças nem mais íngremes do que as da Penha, em que ele está assente.

Antes de subir, para que eu tomasse fôlego, levaram-me a ver, perto do portão da entrada, uma pequena gruta natural, onde um frade, frei Pedro Palácios, salvo de um naufrágio, se acolheu, ou antes se escondeu, talvez com medo dos índios, guardando consigo um registo a óleo da Senhora da Penha, que atribuem a Velasquez, não sei por quê, e que também não sei como pode escapar são e perfeito do naufrágio aludido. Mas lendas não são assuntos de comentário neste gênero de artigos meramente descritivos, não se podendo gastar com eles senão o tempo da referência. Não sei quantos dias viveu frei Palácios agachado no seu obscuro buraco, sob uma lapa suspensa e úmida.

O caso espantoso não é esse; o caso espantoso é que todas as noites o quadro a óleo da Senhora da Penha, com o seu bendito filho nos braços, via na gruta da planície adormecer o frade em santa paz, para, ao romper da aurora, aparecer bem do alto da alta penha, em que vive agora definitivamente! O poder do milagre fez os seus efeitos. índios e colonos, tocados por ele, consentiram em carregar à cabeça as pedras, as madeiras, todos os materiais, enfim, com que lá em cima se construiu o grande convento, com a sua torre quadrangular, a sua capela, em que a obra de talha conserva a cor natural da madeira em que é feita, as suas grandes cisternas, porque não havendo fontes no morro seria preciso prevenirem-se para conservar as águas da chuva; as suas celas e corredores e as suas escadarias e terraços. Bem como as pedras, foi carregada à cabeça a água com que se argamassou o barro e a areia para edificação de tantas e tão grossas paredes!

O caso espanta o touriste, mesmo o menos impressionável, e que ainda arquejante dá por bem empregado o esfalfamento da subida, quando lá em cima espalha a vista pelo panorama em redor e vê de um lado o mar, de que emergem aqui e além dorsos de rochas ou pontas de serras de vários cambiantes, estendendo-se depois azul e largo até ao infinito horizonte. Em baixo, a grande planície de Vila Velha, verde-clara e branca, toda ela coberta de gramíneas curtas e de areais, com os seus grupos de casas aqui e além, ruas bem alinhadas e campos cortados de esteiros, que lampejam ao sol e que ali estão à espera da futura cidade, que os há de aproveitar como elemento de graça, margeando-os de árvores, cobrindo-os de longe em longe por pontes elegantes.

Parece-me perceber uma certa rivalidade entre Vila Velha e Vitória, mas essa rabugice ingênua desaparecerá logo que as duas cidades formem uma só, ligada que seja a ilha ao continente pela ponte móvel da Leopoldina. Se as distâncias hoje são grandes entre si, também grande será o incremento dado à capital do Espírito Santo pela Estrada de Ferro da Leopoldina, destinada a transformar o porto da Vitória num dos portos mais ativos do Brasil.

Calculam-se já as toneladas de ferro bruto, que os comboios dessa estrada trarão diariamente de Minas e dos confins do próprio estado do Espírito Santo, para despejarem nos porões dos transatlânticos estrangeiros à sua espera na Vitória, e o número dessas toneladas atinge a uma soma enorme. Mas, voltemos a falar do convento.

Como a ladeira do fado português, que é mais fácil de subir que de descer, porque ao subi-Ia levava o namorado a esperança de ver lá em cima a sua amada, e descendo-a já vinha carregado de saudades suas — assim, mas por outras razões, está claro, é a do convento da Penha de Vila Velha.

Para cima, o peito arfa, mas os pés não escorregam; para baixo, é necessário vir-se executando prodígios de equilíbrio para não se cair redondamente sobre os duros calhaus denegridos e lustrosos, que revestem o solo. E ao pisá-los pensa a gente com espanto na resistência de certas criaturas, que sobem aquelas rampas de rastos por promessa, chegando a cima quase exânimes, ensangüentadas, mas, enfim, ainda vivas!

Parece que hoje não são permitidos tais excessos e que mesmo as ofertas de cera, de cabelos, de trabalhos a miçanga e de quadrinhos ingênuos e grotescos, que ali, como em todos os templos milagrosos, cobrem as paredes das sacristias, vão ser pouco a pouco substituídas por pequenas placas de mármore com o voto do ofertante.

Creio bem que a imaginação do povo relute em aceitar essa substituição, não encontrando na pedra fria o símbolo correspondente ao ardor da sua fé.

Chegamos a baixo com os joelhos trêmulos, mas com os pulmões revigorados por um grande hausto de ar puro e livre, e trazendo para sempre refletida nos olhos a visão maravilhosa dessas terras e rochedos, desse imenso mar, e desse imenso céu todo azul e ouro.

Depois de algumas horas de repouso numa hospedagem fidalga, de uma visita ao governo municipal de Vila Velha e outras visitas aos colégios públicos do lugar, cujas aulas estavam repletas de crianças robustas e alegres, seguimos por uma linda estrada para a Fortaleza de Piratininga, Escola de Aprendizes Marinheiros.

Tinha de notável essa estrada, perfeitamente construída, ter sido feita pelos aprendizes da Escola, sob a direção de um dos seus oficiais. E eis aí uma iniciativa, que deve ter lisonjeado a municipalidade de Vila Velha, por facilitar a comunicação do povo da terra com a pitoresca e velha fortaleza. Aí, ao transpor o portão da entrada, não tive a impressão de penetrar numa praça militar, mas num belo e vasto parque de castelo europeu, com as suas largas alfombras veludosas e as suas aleias de belas perspectivas.

O local é amplo, todo numa curva de terra beijada pelo mar. No pátio do edifício, de forma convexa, tocava a banda dos aprendizes com muito garbo e afinação, embora constituída havia poucos meses.

O diretor da Escola, comandante Maurício Pirajá, oficial distinto e que alia às suas qualidades de militar severo as de um perfeito gentleman, teve a delicadeza de percorrer conosco todo o estabelecimento: enfermaria, farmácia, alojamentos, aulas, refeitório, cozinha, lavanderia e paiol, fazendo notar em tudo o maior asseio e a ordem mais absoluta.

Sobre uma das portas da fortaleza, hoje remoçada e até florida, vê-se ainda, como documento histórico, uma pedra gravada com dizeres no português do tempo relativos à sua fundação.

Depois de ter percorrido todo o interior do edifício saí, a ver no parque os exercícios de ginástica sueca executados com precisão admirável pelos menores.

De cima de um terraço eu dominava o grande tapete relvado onde os aprendizes, dirigidos por um companheiro, faziam ao mesmo tempo que ele todos os movimentos disciplinares, do mais suave ao mais torturado, como se os músculos de todos eles obedecessem a um só maquinismo e a uma só vontade.

A tarde estava de um encanto inesquecível. Numa parte do jardim lateral do edifício, uma grande quantidade de pequeninas mesas brancas e floridas para o five o’clock, e dispostas com arte de modo a poderem os que estavam em uma delas ver os que estavam em outras, traziam à lembrança naquele cenário de macias relvas, de praias claras, em que o murmúrio das ondas se casava ao ramalhar das árvores e ao som dá música ao ar livre, cenas de outros lugares distantes, talvez Nice, talvez Cannes…

E até sol-posto foi um rumor alegre de vozes naquele jardim, e um correr de meninos pelos gramados, tachonando-os com as cores alegres dos seus vestidos e dos seus chapéus floridos.

E se o mar não prometesse mau embarque, ali ficaríamos até o romper do luar, para navegarmos depois em mar de prata e gozarmos por mais tempo as doçuras daquele ambiente delicioso…

IV

Ora, pois, abro um parêntese na série destes artigos descritivos, para me referir a um fato, que nos impressionou a todos no Rio de Janeiro, porque teve na imprensa carioca uma horrível repercussão. Não é preciso uma extraordinária perspicácia para se adivinhar qual ele seja; já o leitor percebeu que aludo ao contrato feito pelo Governo do Estado do Espírito Santo com a firma Lichtenfels & Cª para exploração de matas do Estado e desenvolvimento da sua imigração.

Quando parti para a cidade da Vitória levava o espírito apoquentado por esse assunto e vou dizer por quê, para que não pareça exagerada a minha sensibilidade. É o caso que desde que peguei na pena, resolvida a escrever para o público, me arvorei, por minha conta própria, em advogada das nossas árvores urbanas e florestais.

Corajosamente, sem medo de criar com a minha insistência fama de monótona a propósito de tudo, e manda a boa verdade dizer que muitas vezes fora de propósito, procurei sempre fazer entre nós a propaganda da árvore e da flor, e, se a minha vaidade, ou veleidade, já se tem consolado com alguns triunfos nesse sentido, confesso que ainda estou bem longe de ver confirmados todos os meus propósitos. Tendo em artigos de jornais, em conferências, em livros, clamado sempre contra a devastação inútil das nossas matas e a favor do plantio e replantio do arvoredo benéfico, é fácil de imaginar qual seria a minha opinião em face desse famoso contrato, destinado, segundo diziam, a desnudar por uma miséria a linda terra espírito-santense!

E, por isso mesmo, porque esse assunto me interessasse vivamente, ardia em curiosidade de indagar de alguém bem informado todos os seus detalhes e circunstâncias, não ousando fazê-lo, com receio de ferir susceptibilidades e melindres, tanto o caso me parecia monstruoso.

Em face, porém, dos progressos que via realizados na Vitória e que me atestavam a boa orientação do Governo do Espírito Santo, comecei a duvidar do meu critério anterior, e, sem poder sopitar curiosidades, pedi a alguém, cujo espírito me pareceu Imparcial e justo, que me demonstrasse o verdadeiro espírito da questão. A nossa palestra, no pacato recanto do velho salão do hotel, foi rápida e concisa. O meu ilustre informante afirmou, com espanto para mim, considerar o contrato, em volta do qual se levantou tanta celeuma, de magníficos resultados para o Estado, acrescentando:

“Minha senhora, não se podem abrir estradas em matarias; fazer vilas em pontos disseminados dos sertões para colônias agrárias; cultivar terras até hoje inexploradas, sem que muitas árvores das florestas gemam sob os golpes do machado derrubador. O progresso também faz as suas vítimas, e parece-me de boa política aproveitar-lhes os corpos inermes, não para aquecer locomotivas das estradas de ferro, como se faz em alguns lugares, mas para convertê-Ias em dinheiro para os magros cofres do Estado. Já que se interessa pelo assunto, eu lhe arranjarei algumas notas positivas a seu respeito. Os meus vagares de aposentado permitem-me esse trabalho.”

A palavra foi cumprida. As notas vieram, e é sobre elas que ou escrevo estas linhas.

Entre os problemas nacionais, que mais nos preocupam, existe um que no conceito geral merece a primazia:

“Atrair imigrantes o localizá-los definitivamente no país.”

Não há sacrifícios a que não nos tenhamos submetido para conseguir semelhante resultado, e ainda a esta hora até humilhações recebemos mesmo das nações de 2a. ordem em troca deste triste papel de mendigos de colonos que representarmos, batendo às portas de quem abertamente nos repele e injuria.

Espalhar agentes pelo mundo civilizado, subvencionar a imprensa, banquetear autoridades, derramar folhetos e mapas em todas as línguas, pagar passagens em linhas terrestres e marítimas, fazer gastos com alojamentos, alimentação, assistência de toda ordem, despender com transportes, salários, adiantamentos, ferramentas, sementes, casas e até com caprichos, eis o que nos custa o agenciamento de meia dúzia de colonos, que, não raro, meses depois nos abandonam em busca da Argentina, ou se transformam em mascates drenadores de nossas economias para o Oriente.

Mas não é tudo: — Os núcleos exigem direção, fiscais, intérpretes, instrutores, escolas, boas estradas, cercados seguros, mercados garantidos, centros industriais e outros complementos, representando no conjunto avultado dispêndio, arriscado e aleatório. Tomemos no Brasil os últimos quatro anos; somemos as quantias todas empregadas com a introdução e manutenção de imigrantes, computadas as despesas acima enumeradas, o dividamo-las pelo número de famílias realmente localizadas.

— Qual o resultado? Nem com dois contos de réis conseguiremos representar a quota de cada uma!

A colônia Afonso Pena custara ao Estado do Espírito Santo mais de 120 contos de réis ao ser transferida à União e, no entanto, não recebera ainda um só colono. Rios de dinheiro tem custado ao Governo o núcleo Itatiaia; e quais as suas atuais condições? Que produz? Que importância representa para atrair imigrantes?

De agora em diante a imigração vai-se tornar cada vez mais difícil e dispendiosa, porque pouco a pouco nos estão fechando os portos as nações, onde nos habituáramos a abastecer-nos. Mas não levemos em conta essa circunstância e digamos que cada família introduzida e localizada em nosso país, de bons imigrantes, vale somente por dois contos de réis. É essa quantia que em plena consciência e acertadamente está buscando aplicar a União para povoar alguns dos nossos Estados, entre outros o Paraná, Minas e mesmo (em escala reduzida) o Espírito Santo.

Este Estado que, todo ele com uma superfície superior várias vezes à da Bélgica, não conta senão duzentos mil habitantes, isto é a quinta parte, tão somente, da população do Rio de Janeiro, precisa antes de tudo cuidar de povoar o seu território, coberto em grande parte de matas e montanhas.

Preocupação constante de alguns dos seus governos, não tardou que se lhes apresentasse como insolúvel o problema, em face da renda exígua do Tesouro, dificilmente mantida, ainda assim, por uma população pobre e desaparelhada.

Foi em uma situação de tal ordem que, ao atual presidente do Estado, se apresentou a casa Lichtenfels & Cª pretendendo extrair madeiras do Estado, alegando dispor de facilidades excepcionais para lhe colonizar o território. Era a solução que se oferecia, afinal, tão ansiosamente buscada, por isso, após acurado estudo, tendente a harmonizar os recíprocos interesses, o acordo se estabeleceu, traduzido em um contrato que é uma glória para o Governo, a despeito dos repetidos mais infundados ataques, de que tem sido alvo até por quem confessa nunca ter lido as cláusulas que firmaram na transação.

A casa contratante viu diante de si terras abundantes, cobertas de cerradas matas virgens, e muito naturalmente acreditou que mediante um bem estudado plano de exploração, apoiado em um conjunto de medidas que mutuamente se auxiliassem, poderia gerar para os capitais, com que contava, uma razoável fonte de renda. Sabia onde encontrar colonos, que acudissem ao seu chamado e viessem ocupar as terras oferecidas, não somente sem lhe exigir as despesas, a que jamais se podem furtar os governos no pagamento e colocação de imigrantes, como dos mesmos colonos recebendo até, e muito justamente, uma certa soma pelo patrimônio recém-adquirido.

Para tornar acessíveis os núcleos projetados seria necessário construir centenas de quilômetros de estradas de rodagem, mediante uma despesa inevitável e sem duvida no valor de muitas centenas de contos de réis, mas era possível atenuá-la utilizando essas novas vias de comunicação com o transporte de madeiras até os rios navegáveis ou as linhas férreas em tráfego.

Esse plano inteligente, governo algum poderia utilizá-lo, porque se existe trabalho fora do alcance dos meios oficiais, esse trabalho é sem dúvida o de explorar madeiras. Assim, aquilo que seria ruinoso e inexequível para o Governo, tornava-se nas mãos de um particular arguto uma medida complementar de alto valor econômico.

Cumpre acentuar que a exploração de madeiras, no Brasil, somente pode ser lucrativa se aquele que as quiser extrair dispuser de abundantes capitais e estiver seguro dê lhe não faltarem avultadas reservas de matas que assegurem compensações pelas despesas a fazer com a abertura de estradas e com a indispensável e dispendiosa organização comercial, que o abrigue contra o ruinoso monopólio exercido por meia dúzia de casas da praça do Rio. Não fora a necessidade de tais reservas e certamente a casa contratante preferiria comprar madeiras em matas particulares à razão de um ou dois mil réis o metro cúbico — como é corrente no interior do Estado — a pagá-las a 5$000 em regiões desprovidas de meios de transporte e de população. Só os que não conhecem o assunto acreditarão que 800.000 metros cúbicos de madeiras nas brenhas de um Estado despovoado podem fornecer 20 a 30 mil contos de lucros aos que se abalançaram a extraí-las. Basta refletir que é 9$000 a diferença apontada entre os ônus fiscais que gravam os atuais possuidores de matas e os que vão pesar sobre o novo contratante, para, feitos os cálculos, verificar-se que o lucro, se o houvesse, seria no máximo de 9$000 vezes 800.000, isto é, 7.200 contos, tão-somente.

Esse lucro, conforme deixamos dito, só se verificaria se o contratante não fosse onerado de outros encargos e se obtivesse as suas madeiras ao longo das estradas ou dos rios navegáveis, como acontece com os terrenos particulares. No entanto, nada disso acontece; muito ao contrário. Assim, pois, o contratante só poderá ter lucros (e é muito justo que os tenha), nas seguintes condições:

1º, se dispuser de grandes capitais;

2º, se puder, sem despesas, atrair colonos para o Estado, colonos que tenham recursos e sejam realmente agricultores;

3º, se tiver tino comercial para bem colocar as madeiras que extrair;

4º, se desenvolver qualidades administrativas para, de modo econômico, extrair e transportar as madeiras contidas nas matas devolutas, que lhe forem concedidas.

Aceitando ele o contrato, é de presumir que possua esses requisitos: será para o Espírito Santo uma felicidade, que assim seja!

E o Governo sob que móveis agiu?

O seu pensamento fundamental foi colonizar o Estado. Como consegui-lo? Sendo dispendioso e difícil realizar tão legítima aspiração, um caminho somente se oferecia a quem não dispunha de dinheiro: ceder terras e o que nelas se contivesse, em troca dos braços que deverão cultivá-las, para enriquecimento do Estado. Ceder gratuitamente terras devolutas a colonos. Que é que fazem os Estados, às claras, doando-as ou, veladamente, vendendo-as a preços irrisórios, sem juros, a prazos que sempre se prorrogam e mediante pagamento proveniente do salários elevados, pagos por compromissos formais o expressos pelos cofres oficiais? Milhares de hectares recebeu do Estado a União a título gratuito, quando lhe foi transferido a Colônia Afonso Pena, mediante menos ainda da quantia, que em benfeitorias despendera o Governo que a fundara. Por que motivo não investiram contra ambos? O complemento da paga ao contratante forneceu-o o Governo dispensando de impostos a madeira das terras cedidas. Examinemos, para fulminá-lo, o ato perdulário. A madeira em causa é das terras devolutas. Esta, se não fosse dispensada do imposto, não seria evidentemente exportada, porque outras, ao longo das linhas de transporte, existem que se vendem por menos de cinco mil réis, preço cobrado pelo Governo no contrato. E nesse caso, que sorte teriam tais madeiras?

Seriam queimadas sem proveito para ninguém.

Com efeito, sendo impossível colonizar terras sem lhes derrubar as matas e transformá-las em culturas, claro é que em breve estariam reduzidas a cinzas as suas madeiras. E é Isso mesmo que se tem feito em toda a parte, a despeito de estéreis clamores da imprensa e das vãs promessas interventoras das administrações. Assim, o Governo dispensou de impostos aquilo que jamais poderia ser taxado, porque estava condenado a ser devorado nas queimadas.

Vendendo árvores por 4 mil contos, o Governo salvou para o Estado essa grande soma. Foi hábil e tornou-se um benemérito.

Cem contos, que as matas produzissem, já seria uma bela conquista ao incêndio. Quando, porém, não militassem tão justos motivos para a transação, é fácil demonstrar que o preço de 5$000 por metro cúbico de madeira em pé, nos sertões do Espírito Santo, não é um preço baixo. Informem-se dos preços vigentes em regiões mais acessíveis, e verão que ninguém vende por mais, nem por tanto. Próximo à linha da Leopoldina, na Serra do Frade, em Macaé, as madeiras escolhidas podem ser e são compradas a 2 e 3 mil réis o metro, se não menos. E ainda mais perto, à margem da Central, a 3 léguas apenas de distância, paga-se 3 a 4 mil réis, somente, pela mesma unidade de madeira de 1a classe em árvore. Se levantam os preços, afastam-se os compradores o não tarda então que o fogo realize a sua obra…

Eis aí os fatos esmagadores, que não receiam contestação.

Mas, na realidade, por quanto foram vendidos os 80.000 metros cúbicos de madeira que figuram no contrato? Vejamos:

1º Em dinheiro 4.000
2º Como renda dessa quantia, por ter sido fornecia adiantada. Sendo de 10 anos o prazo concedido, tomemos metade desse prazo para média do tempo, em que devem ser contados os juros, que suporemos de 7,5% ao ano, teremos: 4.000 contos, a 7,5% ao ano, em 5 anos 1.500
3º Custo de introdução e localização de 3.500 famílias a 1 conto de réis somente (em lugar de 2 contos) 3.500
Total
9.000

Eis o que diretamente vai receber o Estado pelos 800.000 metros cúbicos de madeira, em árvore, nos sertões do Espírito Santo.

Em árvores disputadas ao fogo! Mas de modo menos expresso, mas não menos categórico, são bem maiores os serviços e vantagens auferidos pelo Estado no contrato. Em primeiro lugar há a obrigação de introduzir mais 300 famílias para a lavoura, e isso não vale menos de 200 a 300 contos de réis. Em segundo lugar, em virtude da cláusula 35a. combinada com a cláusula 3a., obrigou-se o contratante a introduzir mais 1400 famílias, sob pena de reverterem ao domínio do Governo os lotes a elas destinados. Eis aí mais uma verba de mil contos, pelo menos. Em resumo: as vantagens do Governo, traduzidas em dinheiro, não somam menos de 10 a 11 mil contos de réis.

As conseqüências de outra ordem são extraordinárias para o Estado:

1º – O número de imigrantes, que nele se deverão localizar, será de cerca de 20.000. Ora, sendo de 200.000 apenas o número total de habitantes do Estado, conclui-se que a sua população vai ser de pronto aumentada em 10%.

E esse colossal resultado se fará sem ônus ou incômodos de qualquer natureza para o Governo Federal.

2º – Sendo, no presente momento, de cerca de 40.000 contos de réis o valor da produção do Estado, é lícito admitir que essa produção será em breve elevada de 10%, isto é, a 44.000 contos, só por influência do contrato.

3º – A renda fiscal do Estado, avaliada no corrente ano em cinco mil contos, poderá em breve, sob aquela mesma influência, elevar-se a 5.500 contos.

Se se quisesse aprofundar o estudo dos resultados da introdução e localização de 3.500 famílias nas terras devolutas do Estado do Espírito Santo, a abertura de estradas, daí decorrentes, a movimentação do interior atualmente despovoado, a repercussão no país de origem dos colonos, e inúmeros outros efeitos evidentes, não haveria louvores bastantes para galardoar o ato de quem assinou o novo contrato. Se este se realizar, como tudo faz prever, acontecerá com este caso o mesmo que se passou com outros na apreciação dos atos administrativos do atual Governo: as mais acerbas criticas e os mais sombrios vaticínios seguidos dos mais retumbantes sucessos. Arguiu-se de ruinosa loucura a execução das obras que deram água, luz e esgotos à Capital. — “Despender 3.000 contos era empobrecer o Estado, porque, se a obra se fizesse, não daria senão prejuízos” — eis o que de todos os lados se ouvia.

Pois bem! Fizeram-se as obras. Não são passados senão meses, e aquilo que custou 2.500 contos está vendido por mais de 5.000. O Governo fez construir casas na Capital, e não faltou quem condenasse a resolução. Resultado: as casas estão sendo disputadas e não bastam para as necessidades da população acrescida. O mesmo acontecerá ao contrato das madeiras e a quantos atos administrativos praticar o Governo, inspirado pela confiança nas condições naturais daquele solo privilegiado, na energia de seus filhos e no futuro brilhante, que aguarda o Estado do Espírito Santo.

***

A estas informações, que aqui ficam expostas, vieram juntar-se ainda, a meu pedido: um esquema representativo da superfície do Estado do Espírito Santo, contendo os terrenos ocupados, os devolutos e a área suficiente para a extração de 800.000 metros cúbicos de madeiras, e mais as seguintes ponderações sobre o mesmo assunto:

Se considerarmos um hectare de terras cobertas por mata virgem, podemos representar esta área por um quadrado que tem 100 metros de lado.

Se supusermos que haja apenas uma árvore de 20 em 20 metros, teremos, que em um hectare existirão 5×5, ou 25 árvores. Tendo cada uma dessas árvores, em média, três metros cúbicos, teremos 75 metros cúbicos de madeira em um hectare, e, portanto, em 10.667 hectares encontraremos 800.025 metros cúbicos de madeira.

A área 10.667 hectares é equivalente à de um retângulo cujos lados são: 10.667 e 10.000 metros. Neste retângulo não há lado que atinja sequer a duas léguas, pois o maior lado tem uma légua, três quartos e uma pequena fração, e o menor tem exatamente uma légua e três quartos.

O Estado tem cerca de 6.000.000 de hectares de terras devolutas, e há proprietários no Espírito Santo de duas e meia sesmarias cobertas de matas virgens ou de 2.222,5 alqueires, área esta que representa 1/282 aproximados dos 3.000.000 de hectares. Esses proprietários poderiam, pois, extrair e exportar os 800.000 metros cúbicos de madeiras.

O contrato para extração dos 800.000 metros cúbicos de madeira estabelece a obrigação da fundação de sete núcleos coloniais por parte da firma concessionária. Será feita para cada uma das “500 famílias” de colonos, que compõem cada núcleo, uma derribada de 5 hectares.

Já vimos acima que cada hectare contém 75 metros cúbicos de madeira e, portanto, cada lote colonial fornecerá na derribada dos 5 hectares 375 metros, e cada núcleo 187.500 metros cúbicos. Fundados os 7 núcleos coloniais, a firma concessionária terá feito a derribada de árvores, cujo volume é de 1.312.500 metros.

ESQUEMA

representativo da superfície do Estado do Espírito Santo, contendo os terrenos ocupados, os devolutos e nestes a área suficiente para a extração de 800.000 metros cúbicos de madeiras, representada pelo quadrado que tem o sinal A.

Superfície do Estado………………………………………………………………….. 44.800 km
Superfície das terras devolutas………………………………………………………30.000 km
Área para a extração dos 800.000 metros cúbicos de madeira………….106.67 km

Escala: 0ms,01=20k².

E depois deste eloquente quadro, que mostra de modo prático e evidente quão exígua é a área, não já do Estado, mas das “terras devolutas”, bárbaras e incultas do Estado, comprometidas no malsinado contrato, o que deu azo à acusação fantasiosa e mirabolante, de que o presidente do Espírito Santo vendera o seu Estado ao concessionário, só me resta esperar a publicação deste artigo para entregar ao Jornal o 5º e último das “Cenas e paisagens do Espírito Santo”.

V

Comparação de aspectos — Partida pela Diamantina — O que será dentro em pouco tempo essa via férrea — Fazenda Modelo da Sapucaia — Terras do Sul e terras do Norte — Pastor e arado — Primeira condição de agrado da Fazenda Modelo; exemplos admiráveis que devem ser seguidos pelos governos de intenções sinceras — A segunda condição de agrado; simplicidade, rusticidade; como se deve ensinar os pobres; a casa; a hospedagem; passes gratuitos — Prêmios; seu estímulo — Máquinas — Ceifadeira de arroz ; quadro de José Malhôa; as moças no arrozal; os discípulos; o mestre; cereais; produções; diversas instalações; substituição de jacarés por feijão; capitães que hão de correr por seus pés — Vias de comunicação; construções de estradas; colônias; fábricas e ainda mais núcleos coloniais e ainda fábricas — O maior benefício prestado pelo senhor Jerônymo Monteiro — O ensino público — A alma da Vitória — O entusiasmo do estudo — Instituto de Pintura — As crianças do Espírito Santo — A freqüência dos colégios — Asilo do Coração de Jesus — Nem uma batina nas ruas nem hábitos de frade — A impressão da viagem — Saudade e agradecimento.

Só os fatos louvam sem mentira
Ruy Barbosa.

Porque o aspecto da capital do Espírito Santo me tivesse impressionado, não só pela sua feição original e pitoresca, como pelo seu frêmito de progresso, desejei conhecer também o de seus campos de lavoura.

Para isso, partimos por uma lindíssima manhã pelo trem da Diamantina, estrada que será muito breve a grande artéria propulsora de progresso e de fortuna desse esperançoso Estado, para a Fazenda Modelo da Sapucaia, a poucos quilômetros da Vitória.

As terras cortadas pela Diamantina fazem já promessas diferentes das outras atravessadas pela Leopoldina. Deram-me estas a impressão de terem nascido para a fartura dos rebanhos e as lidas do pastor; e aquelas, mais coloridas, mais exuberantes, para os sulcos do arado e a glória das sementeiras.

A primeira condição de agrado que me proporcionou a “Fazenda Modelo Sapucaia”, criada pelo doutor Jerônymo Monteiro, e inaugurada em 4 de dezembro do ano passado, foi a de ser organizada mesmo às margens da estrada de ferro, que a corta pelo meio. Assim, e há nisso uma tática muito inteligente, quem passar no trem, verá forçosamente por qualquer dos lados do comboio por que olhe, os talhões das diferentes culturas da fazenda estendendo-se, como mostradores em exposição permanente, pelos campos e alegrando a paisagem aqui com um tapete dourado de trigo maduro ou de arroz seco, ali com um azul, de linho em flor; acolá com um outro verde de um feijoal novo ou de um canavial. O exemplo oferecido assim a prevenidos e desprevenidos é de conseqüências admiráveis e deve ser seguido, sempre que for possível, pelos organizadores de escolas dessa natureza; porque enterrar tais estabelecimentos em lugares de condução difícil e longe da vista das populações, quase sempre preguiçosas e indiferentes, é gastar dinheiro sem pena e perder grande parte de trabalhos e de exemplos, que ficam desaproveitados.

Há coisas que parecem insignificantes e que têm, entretanto, um grande alcance administrativo. Esta pareceu-me uma delas. Na realidade, a um povo sem educação é preciso meter-lhe pelos olhos dentro tudo que possa cooperar para a sua felicidade e que a sua inércia não descobrirá de outro modo. Um apeadeiro na própria fazenda facilita a visita dos curiosos.

A segunda condição de agrado, que me proporcionou aquela propriedade agrícola, criada para educar agricultores pobres, foi a sua simplicidade, mais do que simplicidade: a sua rusticidade.

Ali, tudo o que pôde ser feito com materiais fornecidos pela própria fazenda: madeira, barro ou pedra bruta, é — o de preferência a ser executado em metais mais ou menos caros, madeiras envernizadas ou pedras britadas a capricho. Em face daquele exemplo o lavrador pobre não levantará os ombros desdenhosamente com a convicção de que objetos de preço só podem servir nas propriedades dos ricos, ou do Governo, e nunca nas suas propriedades modestíssimas. Ao contrário, observando os processos postos ali em prática, aprenderá a fazer obras de utilidade agrícola aproveitando com acerto em seu beneficio os elementos naturais oferecidos pela terra em que trabalha.

O muxoxo, com que o caipira olha sempre para tudo que está fora da sua compreensão ou das suas posses, é assim substituído por um olhar de curiosidade, de surpresa e de estudo. Porque o que ele vê diante de si é iam modelo que não lhe será impossível imitar. Certamente que aquela fazenda não foi feita para ser mostrada à gente pomposa das cidades, mas só para servir de escola a populações pobres e sem engenho.

Quantos infelizes desesperam por não saber tirar partido de recursos que tem muitas vezes mesmo embaixo das mãos! É essa facilidade e essa independência, que a “Fazenda Modelo Sapucaia” estimula e sugere com o seu exemplo, visando facilitar assim a aplicação das teorias que difunde.

A casa, no mesmo estilo singelo, verdadeiramente roceiro, tem acomodações para hospedagem gratuita, até o prazo de trinta dias, para os agricultores que desejarem demorar-se nela, estudando os processos agronômicos modernos. Para facilitar tanto quanto possível a freqüência dessas visitas, o Estado fornece, também gratuitamente, passes da Estrada de Ferro a todos os agricultores que os solicitarem. Procura desse modo animar a lavoura, que vinha de longe arrastando uma crise pesada, de desesperança.

Foi também com o intuito de fazer vibrar os ânimos dos lavradores que o mesmo Governo estabeleceu uma lei, em 1908, criando 241 prêmios em dinheiro para os agricultores, que mais se distinguissem em produção, qualidade e exportação de culturas agrícolas, além de outros prêmios, representados por um reprodutor de raça, já aclimado no país, para o criador que no Estado criasse mais de duzentas cabeças de gado lanígero, vacum, muar ou cavalar.

Essa lei, traduzida em alemão e em italiano, que são os idiomas da maioria dos colonos do Espírito Santo, foi publicada, assim como em português, em folhetos, largamente distribuídos pelos principais centros agrícolas do Estado.

O fruto dessa sementeira não tardou a aparecer. Tanto o nosso povo rural carece de estímulo! Já no ano seguinte foram distribuídos vários prêmios e, desde então, a roda nunca mais parou, fazendo, na sua rotação, salpicar prêmios para um lado ou para outro, sob vários pretextos: a este industrial, porque mantém uma usina; àquele criador, porque exportou tantos mil quilos de toucinho, de truta em conserva, ou uma quantidade considerável de sacos de arroz beneficiado, etc.

Não é nada? É como um punhado de milho louro, espalhado para o alvoroço e alegria de pintos, que, já na contenda de apanharem os grãos mais gordos, encontram meio de satisfação e de atividade. Eu aprecio essas coisas, achando nelas assunto de interesse especial, porque representam gestos independentes, livres de peias, com que a política costuma embaraçar os Governos dos Estados, e, muito, principalmente os Estados de poucos recursos.

Assim, ora acoroçoando lavradores e industriais agrícolas com certas somas de dinheiro, ora criadores com exemplares de reprodutores de raça, o Governo do Espírito Santo tratou pari-passu de combater os processos rotineiros, ainda empregados na lavoura do Estado, estabelecendo um campo de demonstração (fazenda-modelo da Sapucaia), onde o lavrador pode fazer praticamente a sua aprendizagem, manejando instrumentos agrários que o estabelecimento lhe fornece pelo preço do custo, mediante pagamento em prestações, previamente combinadas.

Quando o lavrador não se quiser sujeitar a isso, o Governo mandará, a seu requerimento, montar as máquinas e ensinar a manejá-las, gratuitamente, à sua propriedade. Tudo isso me pareceu muito bem determinado e muito digno de divulgação.

Na manhã em que visitei a “Fazenda” fazia-se nela a experiência de uma nova máquina de ceifar e de enfeixar arroz. E a essa experiência cabiam perfeitamente as palavras da chapa: estava sendo coroada de magnifico êxito. O arrozal maduro lourejava ao sol. Lembrava um quadro pintado por José Malhôa, e várias vezes as alegres tonalidades desse artista exuberante e rural me acudiram à memória naquela transparente a luminosa manhã de maio.

A Ceifadeira mergulhava na onda loura o seu pesado corpo de ferro, atirando o arroz, já em feixes atados rapidamente por ela mesma com um solido nó, de embira para o campo devastado, onde ficavam apenas pequenas touceiras do arrozal, rentes ao chão. Aos lavradores que dirigiam a máquina e a outros lavradores que acompanhavam para observá-la de perto, reuniu-se um grupo de senhoras, curiosas, cujas toilettes claras e sombrinhas de cor juntaram ao bucolismo do quadro uma nota risonha, que o completava. Dentro de poucos minutos não havia ali chapéu nem cinto que não estivesse enfeitado com um penacho de arroz.

Do lado oposto da estrada, em outros campos da mesma propriedade, empregavam-se alguns discípulos na aprendizagem dos processos aratórios, preparando o terreno para novas plantações. Surpreendi assim, a fazenda numa hora de atividade, e de aplicação dos modernos processos de trabalho. O mestre de culturas, senhor Agostinho de Oliveira, que se me afigurou sinceramente apaixonado pela sua profissão, informou-me, mostrando-me uma vitrina, em que estavam vários punhados de cereais, que já se têm feito ali experiência de 57 variedades de plantas forraginosas, alimentícias, têxteis, oleaginosas, etc. Dando a aveia na razão de 46 hectolitros por hectare; alfafa, 10 cortes por ano; trigo, 12 hectolitros por hectare; linho, 80 centímetros de altura; algodão, 0,m60 de extensão de fibra; sorgo, 700 alqueires por alqueire de semente, etc.

Embora as terras em que está organizada a fazenda, não sejam das melhores do Estado, tendo sido escolhidas pela sua situação, a cujas vantagens aludi, e pela sua facilidade de comunicação, ainda assim o quadro comparativo da sua produção de trigo, por exemplo, com a de outros países, é-lhes extremamente lisonjeiro.

Enquanto Portugal colheu 9 hectolitros por hectare, a Argentina 11, a Austrália 40, os Estados Unidos 7, — o Espírito Santo colheu 12, o que já constitui uma diferença razoável, guardando as mesmas proporções nas diferentes qualidades de trigo que cultivou como experiência e demonstração, tendo igualmente obtido magníficos resultados de plantas estrangeiras, ainda não conhecidas no Brasil, ao mesmo tempo que, provado as vantagens das plantas conhecidas quando tratadas pelos processos mecânicos que aumentam, melhoram e barateiam a sua produção.

As instalações da fazenda para os seus animais estão ainda de acordo com o seu tipo modesto. São modelos de fácil imitação e em que, na sua rudeza, estão previstas todas as condições de higiene.

Entretanto, falava-se na construção de novas baias, de um posto zootécnico e não me lembra mais o quê. Em todo caso, os carneiros Lincoln, os touros Gersey, ou as galinhas Plymouth encontram condições de vida farta nos campos da fazenda da Sapucaia, para onde têm sido remetidos alguns exemplares deles, e que sempre serão mais proveitosos que os terríveis jacarés que ali habitavam um charco, hoje transformado, pelo aterro, num vistoso e fértil feijoal!

Ainda com o sentido de animar a lavoura, tendo sido fundado o Banco de Crédito Agrícola e Hipotecário, o jornal oficial da Vitória começou a imprimir uma seção diária, de tipo gordo e entrelinhado, com explicações e conselhos sobre agricultura. Este ardil facilita a leitura, pelo menos desse trecho do jornal, às pessoas de vista cansada, ou que saibam apenas soletrar.

É alguma coisa: é o interesse levado a toda gente, em doses de fácil assimilação, pelo mais portentoso assunto do país.

Observando esses pequenos nadas, penso com alegria que o nosso vício de politicagem começa a transformar-se em séria atividade administrativa… Mas quem me dirá se nos outros Estados se faz o mesmo?

Nós os brasileiros gostamos pouco de viajar em nosso país; desde que se não possa ir para o estrangeiro proferimos a tudo ficar em casa; daí a ignorância de muitos aspectos curiosos e de muitos fatos interessantes de nossa terra e da nossa gente. Quando porém, por qualquer circunstância inesperada, visitamos um ou outro dos nossos Estados, dizemos não trazer deles impressões que valham a pena de ser comunicadas a ninguém! É um mal e um erro, porque da nossa crítica ou do nosso louvor podem resultar benefícios imprevistos para o país.

Por minha parte confesso que tive intenso prazer surpreendendo no Estado do Espírito Santo, tão acoimado de pobre e de rotineiro, um tão grande movimento de progresso e de transformação, e que julgo cumprir um dever de patriotismo afirmando a convicção que nutro de que essas terras, dentro em pouco tempo, atrairão só por si capitais importantes que para elas irão espontaneamente, na certeza de ótimas recompensas. Já não é um Estado rotineiro; é um Estado progressista. Ao mesmo tempo que o Governo dava à cidade principal água, luz, esgotos, serviço de higiene publica e domiciliaria, escolas, habitações populares e um novo e moderno hospital; ao mesmo tempo transformava os seus lodaçais em parques secos e drenados, contratava diversas vias de comunicação: linhas de bondes elétricos, construções de estradas para carros e automóveis; navegação a vapor pelos rios Doce e Itapemirim, construções de estradas de ferro que atravessam regiões feracíssimas; e tudo em vários pontos do Estado, simultaneamente. Não contente com isso, o Governo põe outros serviços em execução, contratando com particulares construções de outras estradas e a fundação de colônias, de fábricas, de serrarias, de usinas, do plantio do cacau, de exploração de matas e desenvolvimento da imigração com a fundação de 7 núcleos coloniais de 500 famílias cada um; e ainda de mais estradas e ainda de mais imigrantes, e ainda de mais fábricas e de mais usinas elétricas!

Mas sobrepujando a todos, o grande beneficio prestado pelo doutor Jerônimo Monteiro ao seu Estado natal está na reforma do seu ensino publico. Hoje a alma da Vitória é a colegial. Ela dá à cidade, provinciana e sossegada, uma nota de alegria vibrante pelo seu ar decidido e entusiasmado e pelo seu traje encarnado ou azul, segundo o grupo escolar a que pertence. A certas horas, quem chegar às janelas ou andar pelas ruas, verá surgir em vários pontos essas manchas luminosas, e inconfundíveis, que fazem pensar que também as hortênsias e as papoulas andam!

Não são só as pequenas, também as mocinhas vestem com orgulho os seus uniformes de normalistas. Toda a mocidade da Vitória estuda e fá-lo com um entusiasmo como jamais observei em parte alguma; o seu Instituto de pintura é frequentado com imenso interesse por muitos moços e moças da sua melhor sociedade.

Mas o seu maior encanto está sobretudo nas escolas publicas refundidas pelo modelo das de São Paulo, que são as mais afamadas do país. Em geral as crianças no Espírito Santo são fortes e desembaraçadas, o que duplica o encanto das salas escolares, que estão bem organizadas, com aparelhos e mobílias modernas. A prova do grande interesse que há na Vitória pelo estudo está bem expressa pelas suas estatísticas escolares.

No mês de maio, em que visitei essa cidade, foram as suas escolas públicas freqüentadas por mil e oitenta e sete crianças, o que representa uma soma respeitável numa cidade de pequena população, tanto mais quanto nela não há só escolas publicas, mas também particulares de grande freqüência. Eu mesmo visitei uma, o “Asilo Coração de Jesus”, em que era muito grande o numero de discípulas, aparte as órfãs pobres do Estado, ali recolhidas, se me não engano, em número de 200, e por cuja manutenção o Governo subvenciona esse estabelecimento com uma determinada quantia.

E o engraçado é que foi preciso entrar num edifício religioso para eu ver a primeira touca de religiosa no católico Estado do Espírito Santo! Foi só então que ma ocorreu à lembrança o que me tinham afirmado no Rio, isto é, que eu iria esbarrar com batinas de padres e hábitos de monges por todos os ângulos e curvas da Vitória, quando a verdade é que, em cinco dias, eu ainda não vira nem uma só batina, nem um só habito de freira ou de frade, nas ruas da Vitória nem nas estações do caminho de ferro do Estado do Espírito Santo!

Isso não acontece em São Paulo nem em Minas, nem aqui, verdadeiro refúgio de religiosos exilados da Europa.

Ora pois, até nisso aquela terra era diferente do que me tinham afirmado antes da minha partida.

De fato, em vez de uma sociedade fanática, tristonha, desconfiada, achei-me no centro de uma sociedade carinhosa, risonha, desembaraçada e vivaz, de que guardarei sempre saudades.

E porque de tudo trouxe uma impressão de agrado, de esperança, ou de surpresa, quis fixá-la nestas linhas, em que escondi quanto pude a gratidão pelo excepcional acolhimento que devo a esse Estado, para só deixar transparecer a verdade nua dos fatos que nele observei, sem véus de fantasia, nem parcialidade de sentimento.

E, também, para isso, não escrevi precipitadamente. Esperei; dei tempo a que as minhas idéias amadurecessem antes de rever as notas feitas no tropel das horas movimentadas, que passei na Vitória e que tão imperfeitamente descrevi. Sinto-me, porém, satisfeita de poder afirmar a todos os brasileiros, mesmo aos mais indiferentes, que esse pedaço da Pátria achou quem o despertasse do sono letárgico que ha tanto tempo o entorpecia e que, agora, despertado e fortalecido, caminhará ativamente, alegremente, para um futuro nobre e feliz.

[ALMEIDA, Júlia Lopes de. Cenas e paisagens do Espírito Santo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, 75 (126), 1912, p.175-217.]

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Júlia Lopes de Almeida (Rio, 1862; Rio, 1934), romancista e contista, tem sido injustamente omitida pelos historiadores e críticos da literatura brasileira, o que se explica, aliás, por lhe faltarem características nitidamente próprias. Pertenceu a um período que vai de 1895, isto é, do declínio do romance naturalista, a 1902, data do Canaã de Graça Aranha. A esse período pertenceu, como figura de primeira grandeza, Coelho Neto — o que basta para definir como fase em que o gosto pela expressão literária em si fatalmente prejudicaria a obra novelesca. Apesar disso, alguns romances de Júlia Lopes de Almeida merecem ser lidos e talvez perdurem como retratos da sociedade brasileira do seu tempo, em especial A Família Medeiros, de 1894. Ficcionista de grande facilidade de inventiva e expressão, e regular poder de análise, retrata em suas obras a evolução material, social, intelectual e moral do Rio de Janeiro do seu tempo. Sob o ponto de vista estilístico procurou aliar a técnica do romance naturalista de Zola a uma constante preocupação de linguagem artística. Publicou, além do romance citado: A viúva Simões (1897); A falência (1901); Ânsia eterna (1903); A intrusa (1908); A herança (1908); Eles e elas (1910); Cruel amor (1911); Correio da roça (1913); A Silveirinha (1914). (Dados extraídos do Dicionário de Literatura Portuguesa e Brasileira, de Celso Pedro Luft)

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