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Clara

Em frente à igreja, à distância de um cruzar de rua e dos mesmos trilhos de trem, agora desativados, onde mais tarde se saberá que Piero Negri se matará por engano, fica o cemitério, no alto de uma ladeira que descreve uma parábola paralelepípeda irregular antes de deixar descortinar aos que a desafiam e vencem o ruído enferrujado de seus portões de ferro fundido e cobre, cuja pintura já fora branca e hoje não se define entre o azinhavre e o descuido.

Os mortos, estes não têm outra opção —na verdade, já tiveram, com as hortênsias, mas essa é outra história que em breve se contará, se para tanto houver engenho e arte—, porém alguns vivos preferem evitar o esforço físico, o risco de o coração falhar na subida, de maneira que os velórios são sempre muito concorridos, embora os enterros e as visitas do dia de finados acabem sendo acompanhados pela maioria menos em atos propriamente do que em palavras —e omissões.

Não é esse, no entanto, o caso de Clara Bravim. Aos oitenta e seis anos, ela acaba de subir a ladeira, pedra a pedra, emoção a emoção, para ir chorar sozinha sob o sol das 3 da tarde o primeiro aniversário de morte —pior ainda, de uma ausência total e absoluta— da irmã única.

Agora, seus cabelos argentinos, seus olhos mediterrâneos e suas mãos —essas máquinas perfeitas de quarenta e tantos mil diferentes movimentos— se reduzem a retirar tristemente da tumba da irmã algumas margaridas secas, porque, segundo seus pensamentos, audíveis no silêncio da preguiça luminosa que se espraia sobre o vale, as flores secas poderiam sufocar as vivas que nascem sabe-se lá como ou de onde sobre a pedra dura, sobre a dor incontornável, sobre o tempo irremediável.

Faz mais de uma hora que ela está ali, esperando algum relógio marcar o próximo minuto, mas o tempo parece ter parado de acontecer. Lá embaixo, algumas pessoas passam, a caminho de serem tristes. Clara continua fazendo sala para a morta, relembrando segredos, contando as novidades naquele italiano do Vêneto em que se comunicavam tão completamente quando a outra era viva, de volta à sua língua e à sua pátria. Na hora em que ela lembrava, parecendo ouvir as gargalhadas da irmã morta, que o Luís Hélio quase infartou quando foi calçar o primeiro par de sapatos de sua vida, aos vinte e poucos anos, para ir se engraçar com uma das Busatto (e o que daí em diante aconteceu é coisa para outro romance), e encontrou uma caranguejeira no sapato, fazia tanto calor que parecia haver um sol para cada um no planeta.

Clara Bravim resolveu dizer arrivederci e ir embora —não aguentava mais a tristeza e, afinal, havia ainda o velório da Cecília Paulinelli, coitada, tão novinha, mas prometeu voltar em breve, talvez para sempre, talvez antes que a Cláudia do tal Luís Hélio retornasse da Alemanha, essa menina tem coragem, essa menina aonde irá?

Jogou as margaridas secas no chão árido e não percebeu que um vento vermelho e redondo se apossou das sementes e começou a espalhá-las por dentro do cemitério, pousando um pouco em cada túmulo: “Este é o meu corpo que é dado por vós; este é o meu sangue”, com essa mistura refazendo o milagre da vida, tudo uma hora se explica.

O velho portão enferrujado pareceu lamentar a partida de Clara e o vento ficou balançando-o com um ruído leve, leve, como se dissesse em ritmos de seu próprio desejo: “Volte breve, volte breve”.

[Conto do livro inédito Beleléu e adjacências.]

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Miguel Arcanjo Marvilla de Oliveira nasceu em Marataízes, ES, em 29 de setembro de 1959 e faleceu em Vitória, em 2009. Mudou-se com os pais para Vitória em 1964. Poeta, concluiu em 1996 o curso de graduação em Letras-Inglês na Ufes e cursou o mestrado em História na mesma universidade. Publicou diversos livros. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui.)

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