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Implantação do MUSEU VALE

Foto: Maria Clara Medeiros Santos Neves, 2010.
Foto: Maria Clara Medeiros Santos Neves, 2010.

Conheci a Estação Pedro Nolasco, pela primeira vez e de perto, em julho de 1993, mais precisamente no dia 4, dia da procissão marítima de São Pedro realizada na baía de Vitória.

Vi aquele prédio em ruínas que nem de longe tinha o brilho do passado, quando ativamente fizera parte da Estrada de Ferro Vitória a Minas. Sua história como estação começara em 1927, ano em que abriu, pela primeira vez, suas portas para o público, e terminara na década de 60, quando desativada, passando então a abrigar setores administrativos da Companhia Vale do Rio Doce até meados de 70.

Desde então, em total abandono, foi-se consumindo pelo tempo e pelo vazio, vindo quase a morrer nos anos 90 não fosse a decisão da mesma Companhia de restaurá-la e conceder-lhe a honra de, mais uma vez, fazer história.

Dessa vez seu destino seria outro e também nobre: abrigar o Museu Ferroviário Vale do Rio Doce e a memória da Estrada de Ferro Vitória a Minas.

A partir daí houve uma revolução: através da Fundação Vale do Rio Doce de Habitação e Desenvolvimento Social contratou-se a firma Veriano e Camisão, do Rio de Janeiro, que desenvolveria todo o projeto de restauração do prédio, e a museóloga que seria responsável técnico pelo projeto básico para implantação do Museu.

Foi aí que eu entrei em cena. Contratada em 1995, tive um primeiro contato direto com a Estação e com a história da Estrada.

A primeira medida, na ocasião, foi localizar o acervo que, além de espalhado por diversos setores da empresa, encontrava-se protegido, o pouco que restava, por funcionários ativos e aposentados da Estrada, fiéis e apaixonados, que nessas oportunidades deixavam patentes o respeito e ao mesmo tempo a desconfiança de que ainda não seria daquela vez que a idéia do Museu vingaria. Sim, porque houve antes um movimento da Companhia nesse sentido, quando foram contratados os serviços de outros profissionais (museólogo e arquiteto) contando-se também com o apoio da Fundação Ceciliano Abel de Almeida, sem que, no entanto, os projetos chegassem a ser postos em execução.

Foi preciso um trabalho de convencimento junto àqueles funcionários que aos poucos foram cedendo às evidências e se tornando mais confiantes em relação à realização do novo projeto.

Vencidas essas dificuldades, consegui levantar um grupo significativo de peças, embora ainda acredite que o acervo em muito poderá crescer com o funcionamento do Museu.

Dentre os objetos que considerei mais importantes estavam a locomotiva e o trolley.

A locomotiva, conhecida como “mikado”, foi fabricada na Philadelphia em 1945 e uma das últimas dessa modalidade – a vapor – incorporadas pela EFVM. Encontrava-se em Tubarão, na Oficina de Vagões, onde construíram uma cobertura para protegê-la. O apego dos antigos funcionários chegava a ser ciumento, e foi difícil convencê-los de que o Museu seria o espaço ideal para ela, que assim poderia ser admirada por um público maior. Mas eu previa para ela algo ainda mais emocionante: desejava vê-la em funcionamento, circulando e levando gente a passear, como já se fez antes em São João Del Rei e Ouro Preto, Minas Gerais, e mesmo no Espírito Santo. Infelizmente isso ainda não foi possível, pois a operação é complicada por três fatores: o primeiro é inerente à própria máquina, cuja alimentação e manutenção são bastante complexas para os dias atuais; o segundo se deve à quase inexistência de pessoal treinado para operá-la e o terceiro se refere à utilização permanente da linha com a movimentação de cargas, em especial da de minério de ferro.

O trolley, que era usado pelas turmas de conserva em locomoções ao longo da linha, é composto de dois rodeiros sobre os quais se encaixa uma plataforma de madeira e por vários pares de varas, que à maneira de remos, impulsionam o veículo sobre os trilhos. Na década de 60 esse tipo de veículo foi sendo gradativamente substituído pelo auto-de-linha.

Muitos outros objetos que foram incorporados ao acervo estão vinculados ao funcionamento das estações e à construção e manutenção da via permanente.

Conhecido o acervo, parti para o levantamento da bibliografia existente que me serviu de suporte, na qual estão incluídos os relatórios da Companhia Estrada de Ferro Vitória a Minas e da Companhia Vale do Rio Doce (a partir de 1942), que podem ser encontrados na biblioteca do Museu. Outro material importante foi a tese da professora Léa Brígida Rocha de Alvarenga Rosa.

Além da leitura, realizei entrevistas, algumas das quais foram gravadas, principalmente com funcionários mais antigos e aposentados da empresa, que me forneceram importantes informações e possibilitaram a identificação de um grande número de peças. No caso da identificação de fotos e objetos, adotei o critério de considerar concluída a identificação somente após a coincidência de, pelo menos, três depoimentos.

Aos poucos foram-se delineando para mim as feições do Museu. Eu sabia que, além de contar a história da Estrada, deveria estabelecer vínculos com os elementos que a compunham e com a comunidade que cerca a Estação.

A partir disso passei a estudar e definir os espaços do Museu, não só daqueles destinados ao público, mas também das áreas administrativas e técnicas, estabelecendo suas linhas de atuação.

No caso das exposições, adotei o mesmo princípio de outras instituições idênticas: haveria um espaço destinado a exposições permanentes, ou de longa duração, e outro para temporárias. A exposição permanente se voltou, naturalmente, para a história da Estrada de Ferro Vitória a Minas, em seus aspectos essenciais, como se pode verificar nos temas incorporados e que lá estão:

1) Construção, reconstrução e duplicação da Estrada — Aqui é tratada basicamente a construção da Estrada, cuja história começa com a criação da Companhia Estrada de Ferro Vitória a Minas, em 1901, e início das obras, em 1903. Enfoca-se também a sua incorporação pela Companhia Vale do Rio Doce, a reconstrução (década de 40) e duplicação da linha (década de 70) com implantação do CTC.

2) Transporte comercial — Mostra o que hoje representa a Estrada de Ferro Vitória a Minas, responsável por um movimento de cargas intenso e diversificado. Aqui achei essencial a incorporação de um mapa esquemático da linha em que se pode visualizar além do tipo, origem e destino das cargas.

3) Manutenção — Nessa exposição tem-se contato com os trabalhos de oficinas ativas e também com aquelas que se encontram desativadas atualmente, além de abordar a manutenção da via permanente.

4) Estações — Nessa área são apresentadas peças bastante diversificadas, presentes nas antigas estações.

As exposições permanentes podem ser agrupadas em dois núcleos: um de abordagem central, no qual se enquadram o primeiro e o segundo itens, e outro de abordagem secundária, caso do terceiro e quarto itens.

Na concepção das exposições fiz uma seleção de peças de acordo com as temáticas específicas, considerando também o potencial comunicativo e estado de conservação. No que se refere aos objetos encontram-se expostos exemplares originais, enquanto que no caso das fotografias foram feitas reproduções de acordo com o projeto museográfico, preservando-se os originais em arquivo.

Na elaboração dos textos das exposições e legendas dos objetos foi fundamental o trabalho das entrevistas que me forneceu, juntamente com a escassa bibliografia disponível, as informações que hoje se encontram reproduzidas nas diversas áreas do Museu.

Em termos museográficos, orientei o trabalho de produção de suportes para utilização de materiais presentes na linha, como no caso de dormentes, trilhos e britas, associados ao vidro. Defendi essa alternativa em reuniões inclusive por representar uma solução menos dispendiosa. Em termos de cores seriam adotadas aquelas que proporcionassem um ambiente estimulante e próximo da realidade da Estrada.

O espaço de exposições temporárias é normalmente destinado a exposições de temas mais específicos, ou mesmo de sub-temas do museu e possibilita mostrar peças guardadas em reserva técnica. Pode-se também utilizar esse espaço para mostrar trabalhos e acervos de terceiros, desde que relacionados com a temática do Museu.

Mas a gama de informações que se pode transmitir através do museu não tem o acervo como único instrumento. Muitos outros recursos podem e devem ser explorados para garantir uma melhor comunicação dos ideais dessa instituição, aproximando-a de seu público.

Foi pensando nisso que incluí a maquete ferroviária no circuito do Museu, atribuindo-lhe um peso de que hoje não me arrependo. Ela ocupa sozinha uma das salas do último pavimento, representando o clímax de todo aquele conjunto que a precede. É a grande surpresa que fascina o público em suas diferentes faixas etárias, indistintamente. Nessa maquete – projetada e construída por membros da Associação Mineira de Ferromodelismo -, com área de 34m², são encontrados elementos identificados com a EFVM, incluindo 101 metros lineares de trilhos por onde correm vagões de minérios cheios e vazios, carros de passageiros e vagões de cargas diversas puxados pelas máquinas mais representativas da Estrada atualmente: DDM, DASH-8, G-12 e G-16, essa última montada especialmente para o Museu por não existir ainda no mercado.

Como o museu é também uma instituição destinada à pesquisa, não poderia deixar de incluir o importante espaço de biblioteca e arquivo, onde se encontram depositados publicações e documentos técnicos e administrativos, além de outros de valor histórico. São fotografias, projetos, esquemas, relatórios diversos, livros técnicos, entre outros.

Destinada a atividades diversas, como projeções de vídeos, realização de cursos, palestras e oficinas, temos a sala multimeios, equipada com aparelhos de vídeo e tv, além de carteiras.

Os objetos do acervo museológico que não se encontram expostos precisam de acondicionamento adequado, daí a criação de um espaço chamado “reserva técnica”, cujo acesso é permitido apenas para técnicos do museu ou pessoas oficialmente autorizadas, por se tratar de área de segurança.

Outro elemento abordado na elaboração do projeto foi a localização do Museu: em frente à baía de Vitória, num local destacado e de difícil acesso rodoviário coletivo. A vista privilegiada não poderia ser desperdiçada e nem poderia o Museu permanecer inacessível e fora do circuito turístico o que me levou a considerar o transporte por lancha como solução mais indicada e bastante agradável. Para isso foram realizadas várias reuniões, inclusive com pessoal da Pisa Engenharia, empresa responsável pela administração das linhas de lancha entre Vitória e Vila Velha, assim como com o Superintendente da Estrada, na época o Sr. Álcio. Foram também solicitados levantamentos à Superintendência do Porto de Tubarão visando a solucionar esse problema. A implantação de uma linha de lancha implicaria na construção de um pier e no estabelecimento de uma infra-estrutura para fazer funcionar esse esquema de transporte.

***

Meu trabalho foi realizado em duas etapas. Quando a Fundação Vale do Rio Doce me contratou pela primeira vez elaborei o projeto inicial, na verdade um ante-projeto que reformulei a partir de outubro de 1996, quando de minha segunda contratação pela mesma Fundação para a implantação do Museu. O prédio encontrava-se em restauração, e enquanto isso fazíamos campanhas pela mídia para obtenção de mais acervo e também para difundir a instituição que estava por nascer.

Com todo o projeto museológico já definido, contratou-se, em junho de 1997, Ronaldo Barbosa, designer que seria responsável pela concepção visual, parte bastante importante, em termos de comunicação, do projeto museográfico. O resultado do trabalho realizado por esse profissional foi altamente satisfatório, conforme podemos verificar.

O Banco Real, por intermédio da Lei Rouanet, participou como patrocinador nessa segunda fase, juntamente com a Companhia Vale do Rio Doce. Através da Fundação Vale do Rio Doce todos os serviços foram contratados e supervisionados até a entrega do Museu à comunidade, ocorrida em 15 de outubro de 1998.

Publicado no Jornal do Brasil, 25/07/2004.

Visitando o Museu após a sua inauguração, num dia de domingo, tive o prazer de confirmar o ponto de vista que tantas vezes defendi. O Museu é muito atraente e tem um público garantido. O estacionamento estava repleto de carros, a locomotiva e seus vagões cheios de crianças e adultos, assim como o interior do Museu, em especial a sala da maquete, onde a excitação era evidente.

Em dias úteis o Museu vem recebendo alunos em visitas programadas e orientadas por guias treinados para esse fim.

No geral, o número de visitantes tem sido bastante elevado, compensando todo o investimento realizado. E não se trata de um público passivo, não. Ele parece realmente muito envolvido e interessado na mensagem que ali é veiculada, detendo-se na leitura dos textos e observação das peças. Pude assim perceber que esse Museu conseguiu cumprir sua verdadeira missão: proporcionar cultura e lazer na Grande Vitória.

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Maria Clara Medeiros Santos Neves, coordenadora do site ESTAÇÃO CAPIXABA, é museóloga formada pela Universidade do Rio de Janeiro e pós-graduada em Biblioteconomia pela UFMG, autora do projeto do Museu Vale e de diversas publicações. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

1 Comment

  • Unknown
    03/07/2017

    Realmente o lugar é fascinante, tinha muita vontade de conhecer o museu até que final de 2016 acabei por matar essa grande curiosidade. Parabéns pelo trabalho realizado Maria Clara.

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