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Contexto histórico da produção da obra

A sociedade provincial espírito-santense era herdeira direta do antigo sistema colonial da época mercantilista, sistema que se baseava num tripé: a dominação da metrópole sobre a colônia, o “exclusivo” comercial, e o escravismo colonial. Aquela sociedade possuía grandes contradições, sendo a maior delas a sobrevivência do escravismo após o fim do período colonial, em tudo limitando as relações sociais. O povo não era cidadão, mas súdito, e a maior parcela da população nem isso era.

Economia pré-industrial, dependente de mercados externos, que se limitava a exportar cada vez mais café e cada vez menos açúcar. Também produzia artigos de sustentação como algodão, milho, farinha de mandioca, cachaça, amendoim, pescado, feijão e outros para seu próprio consumo, com alguma sobra a ser vendida fora do território espírito-santense.

Pequena e pobre província que iniciou sua existência ainda restrita às matas desconhecidas e inexploradas do interior e aos povoados e vilas do litoral.

O porto de Vitória em meados do século passado começa a ter certo movimento com a entrada de imigrantes e a exportação de café, mas, a rigor, nem porto existia, os navios fundeando ao largo da baía e sendo carregados e descarregados por alvarengas ou batelões. O mar e os rios, verdadeiras estradas líquidas, ajudavam na comunicação com os povoados ribeirinhos do litoral e do interior. Poucas estradas e todas péssimas, sendo mais trilhas para tropas. Ferrovias só em sonhos e projetos.

Em tudo o atraso a que fomos condenados pela pujança do ouro das Gerais que, durante longos anos, nos destinou a ser reserva natural de defesa, com matas, onças e índios. Matas com proibição de serem penetradas, já que “onde há muitos caminhos, há muitos descaminhos”. Descontar tal atraso ainda iria demorar muito e, em certo sentido, os resultados de tal estagnação ainda não foram superados inteiramente.

E em meio a essa situação vivia a pequena cidade da Vitória (modo de falar que antigamente os moradores usavam para se referir a sua cidade e que cheguei a ouvir sendo empregado por dona Stelinha de Novaes, talvez influenciada pelos textos antigos que lia) com uma grande quantidade de festas religiosas, a Igreja comandando toda a vida das pessoas, do acordar ao adormecer (por exemplo na hora do angelus), do berço ao túmulo.

Em tal contexto social pontificava a figura, para nós hoje estranha, do padroado. Essa ligação da Igreja com o Estado resultava em que os padres fossem também servidores públicos. Na pressuposição de que todos os habitantes de Vitória eram católicos (e, oficialmente, de fato o eram), deveriam ser batizados, casados na igreja e terem seus corpos encomendados, ações que correspondiam, respectivamente, aos atuais registros civis de nascimento, casamento e óbito. Os corpos eram enterrados nas igrejas ou em cemitérios anexos, sendo os mais famosos o do convento de São Francisco (verdadeiro cemitério da cidade) e o da igreja do Rosário. Cemitério público afastado do centro de Vitória só vai existir nos começos do século XX, no bairro de Santo Antônio.

A infraestrutura urbana pouco diferia daquela herdada do período colonial. Nada de água encanada nem, portanto, de esgoto. Os chafarizes atendiam precariamente às necessidades de água. Os dejetos dos penicos eram esvaziados em tigres (denominação certamente relacionada com o seu fedor, como na expressão bafo de onça) e o conteúdo dos barris era atirado na maré vazante. Na iluminação pública empregavam-se os óleos de baga (semente de mamona), de peixe (como também se chamava o óleo de baleia) e depois o gás e o querosene. Presume-se que as noites de lua cheia, com tempo bom, é que iluminavam de fato os logradouros. Vitória era uma cidade ainda com casario colonial, com ruas e ladeiras calçadas a pé-de-moleque; enfim, uma Ouro Preto à beira-mar plantada.

Mas apesar das diferenças sociais, das doenças e da pobreza o povo brincava. Vejam no texto do padre Antunes as descrições da marujada, das festas e procissões, onde os ricos, remediados e pobres desfilavam suas vaidades e diferenças, uns e outros irmanados até certo ponto na igualdade da alegria. Mas até certo ponto. O que para nós hoje é simbólico e resquício de outras épocas, revelava-se antigamente como muito significativo e objeto de grandes controvérsias. O seguinte relato, extraído da obra de Elmo Elton, nos esclarece a respeito:

Quando da realização de uma dessas procissões, isto e a 8 de setembro de 1876, surgiu uma desavença entre o vigário Mieceslau Ferreira Lopes Wanzeler e o povo, já que o padre queria fossem a naveta e o turíbulo conduzidos por um seu escravo. A Irmandade do Santíssimo Sacramento, constituída das pessoas mais gradas da cidade, protestou contra tal deferência, sob a alegação de que escravo não podia acompanhar aquela procissão, e, caso o vigário insistisse em mantê-lo ali, o andor da padroeira não sairia da igreja. A Irmandade de São Benedito, diante disso, retirou-se do templo, enquanto a da Boa Morte faz coro aos protestos dos irmãos do SS. Sacramento, todos revoltados com a atitude “impensada” do vigário, visto que o mesmo, repetiam eles, não sabia distinguir brancos de pretos, tratando-os, arbitrariamente, em pé de igualdade. O vigário, contudo, não se deu por vencido, e, deixando a custódia que trazia nas mãos, sob o pálio, declara, em rápidas e contundentes palavras, que, a partir daquele momento, estava alforriado o escravo sendo que, em decorrência dessa declaração, pôde o mesmo acompanhar o préstito, assim como o queria o padre, ainda que muito a contragosto dos demais acompanhantes.[ 2 ]

A História guardou o nome desse ex-escravo: Antônio Wanzeler, também chamado de Antônio da Catedral e Antônio Sacristão.

As irmandades em Vitória, como de resto em muitos outros lugares do Brasil colonial e imperial, representavam uma proteção para as pessoas, tanto na vida como na morte. A sociedade desse tempo era muito estratificada em estamentos de negros (livres e escravos — na verdade os primeiros sem-terra seguridade social, os irmãos ajudavam os doentes, velhos, órfãos e viúvas, além de garantir enterro cristão e as rezas e missas de obrigação para seus componentes defuntos e familiares. No que se relaciona a ritos e costumes da vida, a festas e congraçamentos, tão próprios da condição humana, eram em grande parte proporcionados pelas irmandades e realizados sob sua direta supervisão. Tais instituições exerciam um papel de controle social e de reprodução das condições, iníquas para nós, em que se conformava toda a sociedade de então. Sem contar os reconhecimentos de status social, pelos indivíduos pertencerem a esta ou aquela irmandade e nelas ocuparem cargos, honoríficos ou não.

Era comum nessa época padres terem filhos. Citem-se os exemplos do padre Marcelino Pinto Ribeiro Duarte, filho do padre Manoel Pinto Ribeiro como registrado por Maria Stella de Novaes,[ 3 ] e do padre Francisco Antunes de Siqueira, filho do cônego do mesmo nome. No dizer do escritor Oscar Gama Filho “[…] Antunes de Siqueira foi professor de latim, político, padre, filho de padre e pai — era sua filha a esposa do poeta Virgílio Vidigal […]”.[ 4 ] Inclusive as crenças e brincadeiras de que “mulher de padre vira mula sem cabeça”, ou de que “o último a chegar é mulher de padre” não passam de sobrevivências de urna condenação social. Acredito mesmo que a Igreja Católica fazia vista grossa para esses fatos, já que o importante era manter a centralização do edifício eclesiástico e essas “famílias de padre” que ficavam no limbo da legalidade não podiam contestar a abrangência da obra sagrada no plano material e terreno.

Mas na Vitória dos anos 80 do século passado, que aparentava tranquilidade, garantia de continuidade das diferenças sociais e estabilidade institucional, transformações estavam sendo gestadas. O povo já não aceitava mais a escravidão. A mão-de-obra estrangeira estava aumentando sua presença na sociedade vitoriense. As instituições públicas e privadas procuravam se modernizar, mesmo que tal modernização não implicasse grandes rupturas, como ocorre no episódio da proclamação da República.

Em certo sentido pode-se dizer que estas Memórias do passado retratavam uma realidade que já não mais existia, ou que se estava transformando. Daí a oportunidade, enxergada pelos positivistas de A Província, de veicular “usos e costumes da geração que nos precedeu”, com certa ponta de saudosismo, mas também mostrando aos contemporâneos como as práticas do povo já se tinham alterado e poderiam alterar-se ainda mais.

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NOTAS

[ 2 ] ELTON, Elmo. Velhos templos de Vitória & outros temas capixabas. Vitória: Conselho Estadual de Cultura, 1987. p. 24-5.
[ 3 ] NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, s. d., p. 122.
[ 4 ] GAMA FILHO, Oscar. Razão do Brasil: em uma sociopsicanálise da literatura capixaba. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. p. 89.

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Fernando Achiamé nasceu em Colatina, ES, em 22/02/1950 e fixou-se em Vitória a partir de 1955. Formado em história pela Universidade Federal do Espírito Santo e em língua e literatura francesas pela Universidade de Nancy II (Pela Aliança Francesa do Brasil). Especialista em arquivos pela Ufes. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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