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Crônica: “Para a cidade e para o mundo”

Domingo

Começa a semana. A feira é de Deus, ou de Gurigica? Portugal… O certo é que havia uma feira aos domingos porque na segunda-feira era a segunda feira. Português — única língua no mundo cristão em que os dias da semana não se referem aos astros ou aos antigos deuses pagãos. Muita repressão religiosa, muita liturgia católica, mas também o espírito do português — povo pobre, desvalido e prático como são práticos os pobres e desvalidos. E geralmente sábios: — Sei que a religião é importante, devem-se respeitar os deuses antigos e os astros também nos governam; Deus pai é todo poderoso, mas divido meu tempo pela feira da qual vivo, pela feira que faço para dar o de comer a mim e aos meus.

O dia do Senhor sendo o primeiro da semana era o da primeira feira. Mas Gurigica não é somente um detalhe vindo da história medieval européia. Detalhe vindo como certos políticos que a freqüentam nas épocas eleitorais. Mas tudo bem, não deixa de ser um reconhecimento ao seu poder.

Ah, Gurigica! Grande encontro entre pessoas, pedras e antigos mangues agora aterrados. Sobe-se uma ladeira e aparece Santa Lúcia; dobra-se uma avenida e se está em Maruípe; vai-se para um lado e se chega ao Horto; olha-se em frente e se vê bairro de Lourdes. No domingo quem está nos morros desce, quem está por baixo continua e todos passam-passeiam entre as barracas. Muita gente de fora. Em tudo cores e cheiros. Não interessam somente as cores e os cheiros. A vida afinal não é só isto: uma recordação de feiras há muito feitas. Fazer a feira. Contar a féria. Tirar férias. Saudade temos dos outros, de uma situação. Mas saudade maior é de nós mesmos. Por exemplo, andando na feira da Gurigica.

Ela não é a primeira, mas a última da semana — sobra do sábado, este sim, grande dia de feiras e compras por este país afora. Muito tem que se falar de Gurigica (e não do bairro da Consolação que ninguém sabe direito o que é) e do morro de São Benedito, dos seus papagaios empinados logo cedo numa dança muda e simples. Guricicas já não existem mais, este tipo de periquito, mas a Gurigica e suas pipas ainda estão lá. E o foguetório em dias de comemoração e jogos. E o som dos alto-falantes na pregação dos pastores da Assembléia de Deus encerrando o domingo.

Segunda-feira

É de São Sebastião. Do mercadinho de São Sebastião em Jucutuquara — esta cidade amiga de Vitória. Jurucutu (coruja) quara (ninho). Ele tinha um irmão gêmeo em Vila Velha, destruído nos anos setenta. E no lugar continuou existindo um… mercadinho. Por que esta destruição sem sentido? E a geminação dos mercados? As cidades ainda eram unidas como um mesmo município? Ou foi obra do governo estadual? O ano de construção deve ser de 1949, mas é necessário pesquisar. Ainda bem que a preguiça evita muita pesquisa neste mundo. Fachada feita ao gosto eclético de uma arquitetura estilo “missões espanholas” — pedras aparentes, colunetas torsas, arcos, telhas coloniais (as das pontas pontudas como peitos de pombas). A planta é um pentágono. Ainda vendem-se verduras sem venenos numa feirinha nos afora do mercado?

Tempos e lugares diferentes contidos no mercado-feira. O tempo antigo, o da pechincha, o tempo mais novo, o do tabelamento; o tempo novíssimo da cidadania. Os lugares que se misturam são os mais diversos das matas, das oropas, das áfricas; em doses, nuanças e caldeamentos difíceis e inúteis de discernir. A nossa panela de barro é de origem indígena ou africana? É nossa e de quem mais nela comer.

Impressões: sol se levantando. Às quatro horas da manhã, às cinco horas, muito barulho por tudo. O vozerio das sete horas. Comprando ou vendendo, todos feirantes. Meio-dia, panela-no-fogo, barriga-vazia, macaco-torrado, fazendo-careta, pra-tia-maria. Hora da xepa. Hora do rapa. Tempos misturados entre si. Lugares misturados entre si. Tempos e lugares também misturados, entretecidos.

O capixaba foi estudar na Sorbonne e pegando uma fruta pede ao feirante parisiense:

— Me veja aí umas três ou quatro maçãs.

A resposta veio rápida e ríspida:

— Não mexa nas frutas! Afinal quantas maçãs você quer? Três ou quatro?

Aqui apalpamos as frutas (até as experimentamos) e queremos cortar os inhames um a um, balançar um a um ovos vendidos a granel e de cada quiabo quebrar a ponta.Vive la différence!

Terça-feira

Mercado da Capixaba. Não esquecer de falar de “Seu” Cardoso e sua mercearia, embrião dos falecidos supermercados Santa Martha. E do pátio interno calçado de pedras com barracas vendendo verduras. E os peixes em cima de pedras altas e lisas. E a carne de gado no açougue. E as mercearias sortindo o seco e o molhado, e o sumiço de tudo isto. Agora temos lá um supermercado de remédios, outro supermercado de telefones e o maior deles o de artezanato (com z de mentira).

Que corrupção, que desleixo, que safadeza deixaram particulares se apropriarem de um espaço público inestimável, alugado a preço de banana? E se assenhorearam faz algum tempo. É o tal negócio: o poder público, em se tratando de Patrimônio, muitas vezes peca por ação e muito mais por omissão. Omitiu-se no caso do mercado da Capixaba a ponto de ter deixado que a situação do imóvel chegasse à deterioração atual. O tombamento que o Conselho Estadual de Cultura realizou alguns anos atrás foi para proteger a edificação das “brilhantes idéias” de alguns tecnocratas de passagem pelo poder. Como esta:

— Aquele prédio do mercado está velho e não funciona; é melhor derrubá-lo e aproveitar todo aquele quarteirão para a nova sede do banco do estado.

Neste meio tempo aconteceram diversos sonhos irrealizados para o mercado: centro de artesanato (com s de verdade), teatro, centro cultural — e pensar que ali já funcionou um de bom tamanho, a Rádio Espírito Santo. Projetos de reforma e adaptação podem ser contados nos dedos das duas mãos, considerando trabalhos acadêmicos. Mas os vendedores de perfis metálicos é que desenham e redesenham as fachadas do mercado da Capixaba, perto de onde tinha as tais roças de milho que nos deram este apelido.

Quarta-feira

Dia dedicado às novas feiras: os quilões e as feiras dentro dos supermercados. Quando e por que começaram ninguém sabe dizer ao certo, de forma pronta e concisa. Mas aqui não interessa; deixa pra lá.

Parece existir uma determinação legal para nos quilões e nas feiras dos supermercados ser indicada em lugar visível a procedência dos produtos. E apareceram tabuletas ao lado das bancas anunciando melancias de Goiás, melões do Rio Grande do Norte, batatas de São Paulo, pêras dos Estados Unidos, ameixas do Chile, e bananas de Biriricas. De Biriricas? Isso mesmo, de Biriricas. Fica perto daqui e nós do Espírito Santo fornecemos banana para muito lugar brasileiro, quer dizer, damos banana para o resto do país.

Ultimamente alguns quilões diversificaram tanto as mercadorias oferecidas que quase se transformam em… supermercados.

Você vê só: quando poderia se acreditar que a água de coco fosse engarrafada? E o brócolis congelado? Porque antes não havia por aqui nem mesmo brócolis, acerola, ou kiwi. O brócolis, na mesa dos capixabas da ilha, é um símbolo de mudanças. Estradas e mercados abertos e os produtos perecíveis chegam fáceis até nós. Geladeiras e congeladores se enchem de exotismos. Antes, pitanga só no pé e na época certa. Suco de graviola só no nordeste em algum passeio amigo. Agora, sucos vêm de longe congelados: umbu, serigüela, mangaba, cupuaçu, cajá, murici, cacau. E o brócolis é cultivado por aqui mesmo em Santa Maria de Jetibá.

Não sei não, mas telefeira deve ser igual ao tele-sexo.

— Me veja aí dois pés de alface, um maço de couve e um quilo e meio de cebola.

— Me dê um agarro, uma mordiscada na orelha e meia dúzia de beijos.

Pelo fio do telefone escolhas indiretas; práticas impessoais.


Quinta-feira ou quinto-mercado

No princípio era o mercado da Cidade de Palha, canoas encostadas na fotografia antiga. Depois o mercado da Vila Rubim espremido perto da ponte Seca, ainda “molhada”. As barracas equilibrando-se com muitas tábuas entre o canal que separava as ilhas do Príncipe e de Vitória. Como um pato fazendo cocô diretamente na água da baía. Tatagiba diria:

— Uma cusparada na miséria geral.

Mas o que ele disse mesmo foi: “Vila Rubim, vida ruim”.

Bom, por enquanto temos dois mercados. O terceiro foi inaugurado em 71 no aterro que acabou com a ilha do Príncipe. O quarto é o mesmo, mas desvirtuado, com muitas lojas vendendo sandálias, sapatos, bolsas e em parte foi pros ares num grande estrondo em 1994. O quinto é o mercado depois deste estrondo ouvido até hoje, enquanto se decide se as ruínas são municipais ou estaduais e do nariz federal escorre meleca.

Mas o eterno mercado da Vila Rubi acabou: o edifício cheio de colunas construído nos anos 20 e derrubado nos 70. Para no lugar instalar feia praça que vive repleta de barracas vendendo artigos… de feira e mercado. O homenageado — o “Seu” Manoel Rozindo da Silva, antigo comerciante de pescado na região — certamente recusaria a homenagem:

— São uns b da merda. Derrubaram o antigo mercado e fizeram uma praça que virou uma feirinha vagabunda. E ainda botaram meu nome nesta bosta. Por que não reformaram o prédio velho então?

Citar do quarto mercado o melado, o fumo de rolo, as ervas medicinais, além dos balaios, cestas, jequis, tapetes de fibra que as decoradoras já tinham descoberto.

Sexta-feira

Sexta-feira Santa para as feiras que estão morrendo. Quinta na Praia do Canto e sexta em Santa Lúcia. Uma no começo, outra no final da rua Constante Sodré.

Inserir homenagem aos antigos peixeiros (com carrinhos de mão cheios de camarão fresco eram pescadores-peixeiros) e aos verdureiros. Como esta:

Seu Vicente bananeiro
dança uma dança esquisita
uma dança de São Guido
uma dança dos aflitos
preto e velho
com chapéu-ajudante
mãos treme-tremendo
dançam de lá pra cá
mão treme-tremendo
vendemostram bananas

ouro prata maçã
da terra d’água
e banana-figo
dúzias verdes
pencas de vez
cachos maduros
em redondas-grandes cestas
de cada lado penduradas

Seu Vicente bananeiro
dança uma dança esquisita
uma dança dos aflitos
uma dança de São Guido.

Sábado ou sétima-feira

O sabá é em Jardim da Penha: a feira maior, mais bonita, variada e rica. Mas Jardim da Penha não é somente um detalhe vindo da história medieval européia. Detalhe vindo como certos políticos que a freqüentam nas épocas… etc. etc.

Feira caldeamento de povos e etnias. Feira colagem de vidas. Feira dos municípios. Feira de artesanato na praça dos Namorados. Feira de móveis e gado. Mas estas são outras feiras. As nossas feirinhas são restos do que já passou mas continua vivo. Como as batatas de uma conversa em que o professor Ruschi dizia:

— Atualmente com hibridações e processo de engenharia genética as batatas são cultivadas em todo o mundo com qualidade e variedade sem paralelo no passado. Ocorre de tempos em tempos as linhagens degenerarem ou ficarem muito sujeitas a pragas, caindo a produtividade das batatas-semente. Então os cientistas e pesquisadores precisam recorrer às batatas existentes no seu nicho ecológico original — lá nos Andes — onde elas são pequenas e com cores diversas (amarelas, vermelhas, pretas) para obterem novos e mais resistentes cruzamentos. Assim, este estoque genético precisa ser preservado para uso futuro.

Utilidade semelhante possuem as feiras. Por mais sofisticada e moderna que seja a comercialização de certos produtos, o seu tipo de oferta em feiras livres é insubstituível. A elas nos escravizamos de bom grado pelo gesto humano da troca. Pelo gosto humano de variar.

Jardim da Penha que mais não seja para as crianças de hoje conhecerem o que é uma galinha viva, ovos de pata, a tolerância com o diferente. A questão da escala também é relevante: aquelas barracas ou o caminhão do alemão que vendem ovos caipira, galados, com a gala, com o princípio masculino que se junta ao óvulo formando o ovo, vida nova. Para a grande produção das granjas deve ser empregado o termo correto:

— Diga lá, freguês, o que vai querer hoje?

— Uma dúzia de óvulos, por favor.

Será verdade que a produção de ovos caipira diminui certa época do ano, que coincide com a quaresma? — É que as galinhas estão de greve, doutor

Ou a outra barraca do outro alemão que vende verduras em variedade e abundância, limpas de ganância e química. O tostado da farinha de mandioca com bastante polvilho. Feijão vermelho novinho. O amarelo do fubá da roça. Torrões de açúcar mascavo.

Laranja e banana da terra; queijo e pimenta do reino. Ah, feira vinda da vida colonial!

Também temos mantas de toucinho (ou porcos desventrados — como querem alguns), mudas de comigo-ninguém-pode, de arruda, umas flores do campo, outras de quintal, beijus de fate (com o fato, isto é o fígado, quer dizer, o recheio de coco) chegados de São Mateus ou do sul da Bahia, que é quase a mesma coisa. A mais rica, variada e aprazível feira da ilha fora da ilha. Cores do açafrão, da malaguetinha, da canela em pó; texturas da canela em pau, do cominho, da pimenta calabresa apresentadas em um metro e meio quadrado. Cumprimentar conhecidos, conversar com os amigos, rever um colega aposentado. Gritos de laranja a não sei quanto o cento, o bater do martelete no conserto de panelas, os pastéis do japonês. E bertalhas, acelgas, agrião, tempero verde, berinjelas, beterrabas, tomate, tomatão — uma colorida natureza-viva. Com direito a requeijão e goiabada cascão especialíssima. Sem sacrifícios vamos fazendo das tripas coração


Oitava-feira (oito deitado = infinito)

Som metálico do vendedor de quebra-queixo cortando a tarde do feriado nos traz de volta toda a feira: é verdadeira feira ambulante.

— Querem conhecer uma cidade? Conheçam o seu mercado, as suas feiras.

— Quando garoto foi complicado entender que a carne verde não era uma referência a sua cor.

E a feira de Maruípe? Maruípe significa cheio de maruim (aquele mosquitinho enjoado) e era o antigo nome da praia em frente, agora chamada de Camburi, que significa… cultura inútil.

(Mas Vitória nunca se chamou Guananira. Segundo Hermógenes Lima Fonseca este nome foi criado pelo Dr. Eurípedes Queiroz do Valle — que tinha recém-conhecido a ilha do Mel no litoral sul brasileiro — romanceando uma história da cidade para o catálogo telefônico de Vitória nos fins dos nos 50, início dos 60.)

A feira de Maruípe deve ser igual às outras da ilha. Pode-se comprar urucum (a semente, não o colorau, mas o colorau também), a pequena vasilha feita de lata para fritar o óleo com urucum, o coentro, o caçonete, caranguejos (melhores se catados nos meses com erre?). Acham pouco? Experimentem comprar estes produtos nas feiras de qualquer outro lugar do mundo.

Havia um caminhão que nunca saía do lugar, não devia ter nem motor e vendia frutas atrás dos Correios (ou seria mais pra perto do Glória?). Frutas em cascata nos seus roxos papéis de embalagem, bem arrumadas num alto estrado dentro da carroceria — muitas pêras e maçãs argentinas, caixas de uva gaúcha. Este caminhão, que foi exilado para São Torquato e acabou seus dias vendendo frutas ao lado de um posto de gasolina perto da desfeita ponte do Camelo (ali sobre o rio Marinho), este caminhão de permanente oferta de frutas é pai de muitos veículos que param e andam e param e andam em pontos estratégicos da cidade vendendo frutas. Mamões ao lado da Escola Técnica vindos do sul do estado e abacaxis do norte capixaba (é mentira, a verdade é o contrário; mas a verdade poderia ser também do outro jeito). Uvas em cima de caminhão já vi apregoadas em diversos lugares da cidade. Da cidade da Vitória como queria Dona Stellinha, surda como uma boa e antiga porta (mas as paredes têm ouvidos).

Enfim — acima do mofo no queijo e além dos vermes e do pão — podemos como o Papa abençoar Urbi et Orbi (para a Cidade e para o Mundo).

— Damos a bênção para nossa cidade e para nosso mundo. Iguais nunca existiram. Iguais jamais existirão.

E como qualquer um podemos pedir:

— Nos abençoem, feiras e mercados de Vitória. Iguais nunca… etc. etc.

[Crônica publicada em Escritos de Vitória 11: Mercados e Feiras. Vitória, PMV, 1995, p. 51-64, com empastelamento do texto original, aqui restabelecido.]

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Fernando Achiamé nasceu em Colatina, ES, em 22/02/1950 e fixou-se em Vitória a partir de 1955. Formado em história pela Universidade Federal do Espírito Santo e em língua e literatura francesas pela Universidade de Nancy II (Pela Aliança Francesa do Brasil). Especialista em arquivos pela Ufes. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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