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De crimes e estatísticas ou vice-versa

O delegado Digital reuniu os escrivães Pedro e Nanico na sua sala, na delegacia da Chapot Presvot, 272, e falou grosso:

“O secretário de Segurança está pedindo com urgência uma estatística dos crimes violentos registrados em nossa delegacia nos últimos quatro anos.”

“O que ele considera crimes violentos?” perguntou Pedro.

“Homicídio, latrocínio, estupro, estupro seguido de morte, seqüestro e seqüestro seguido de morte,” enumerou Digital, contando nos dedos de unhas esmaltadas as citações que fazia.

“Meia dúzia de pitbulls,” classificou Nanico.

“E pra quando ele quer isso?” indagou Pedro.

“Pra ontem,” respondeu Digital. E esclareceu: “O governo quer montar uma estatística para mostrar ao grande público que o índice de criminalidade está descaindo na Grande Vitória.”

“Quer demonstrar o indemonstrável?” gozou Nanico.

“Dispenso seu juízo de valor,” cortou Digital com rispidez. “Ordem é ordem, e cumpra-se-a! Amanhã a gente se reúne de novo para analisar os dados. Caiam em campo!”

Dia seguinte, mesmo horário

“Então, meninos, o que temos aí?” perguntou Digital.

“O levantamento está pronto,” respondeu Pedro, apresentando algumas tabelas manuscritas.

“O resultado foi bom?” indagou Digital.

“Bom como?” perguntou Nanico.

“Bom de b, o, m,” retrucou o delegado. “Bom para ser apresentado aos escalões superiores.”

“Se você quer saber se os números mostram a diminuição da criminalidade, Digital, a resposta é negativa,” adiantou Pedro.

“Mas tem que haver diminuição, meus caros. Será que vocês não capturaram a mensagem que eu passei? Ou será que os dois têm ouvidos poucos? O governo precisa porque precisa mostrar que a criminalidade está baixando como um todo. E não é só para os capixabas, é para o Brasil inteiro e para o mundo internacional! Foi uma recomendação expressa do secretário,” enfatizou Digital.

“É, mas o secretário pode botar a viola no saco. Eu e Pedro fizemos vários estudos para ver se amarrávamos o burro à vontade do dono, porque entendemos muito bem o seu recado, mas não deu pé,” esclareceu Nanico.

“Todos os crimes violentos cresceram de ano para ano?” insistiu Digital.

“Cresceram,” responderam juntos os dois funcionários.

“Vocês tentaram dividir os crimes, criando anuances dentro de um mesmo tipo? Por exemplo: seqüestro de adulto e seqüestro de criança, ou seqüestro de menor do sexo feminino e seqüestro de menor do sexo masculino; a mesma coisa para homicídio ou estupro?”

“Também fizemos isso, delegado, mas nem assim o perfil da criminalidade baixou,” informou Pedro.

“Porra, como é que nós vamos fazer para atender ao secretário?”

“Tá difícil, delegado,” disse Nanico. “Estatística é estatística.”

“Pícolas, Nanico! Estatística é estatística coisa nenhuma. Vou dizer uma coisa que aprendi na minha vida: as perguntas das estatísticas dependem de quem pergunta e as respostas dependem de quem responde. O mais é manipulação!”

“Ou má empulhação,” trocadilhou Nanico.

“Bem, delegado, já que você e Nanico falaram as palavras mágicas, só vejo uma saída, mas nem sei se vale a pena dizer, de tão primária que é,” arriscou Pedro.

“Tudo é válido, para validar o invalidável quando se quer validá-lo,” pontificou Digital, como se estivesse lapidando um princípio de Física Quântica. “Portanto, fale! Mostre que o PIB aqui da Delegacia é alto.”

“Não é PIB, delegado, é QI,” corrigiu Pedro.

“Qui q-i qui nada. É PIB mesmo. Estou falando do produto interno bruto da Delegacia: eu, você e Nanico. Pensam que eu não manjo de psicologia?”

“Deixando a psicologia de lado, delegado, o que eu pensei, e nem havia falado ainda pro Nanico, foi reduzir a comparação da criminalidade de quatro para dois anos e jogar os dados do ano bissexto do período contra os do ano seguinte. Como este teve um dia a menos, consegue-se uma pequena baixa no índice dos crimes entre esses dois anos,” cantou Pedro a pedra da batida.

“E dessa maneira há caída no índice dos crimes violentos?” indagou Digital interessado.

“Ainda assim a queda foi apenas em relação a seqüestro e a estupro seguidos de morte,” observou Pedro.

“Mas já é alguma coisa,” conformou-se Digital.

“E qual foi a redução percentual?” quis saber Nanico.

“Nos crimes de seqüestro seguido de morte foi de 0,002%, e nos de estupro, de 0,001%”, respondeu Pedro, consultando os cálculos que fizera em folha à parte.

“Você acha que assim resolve o problema, delegado?” perguntou Nanico.

“Se é o que se pode dar, é o que se vai dar. A gente cumpre a nossa parte e o secretário que ponha a equipe da Promoção Publicitária do governo para trabalhar esses números a favor da política oficial.”

“Eles podem dizer que trabalharam os dados por amostragem,” lembrou Pedro.

Digital concordou, dizendo: “Embora desta saara eu não entenda patafina, sua idéia é genial, Pedro. Até porque a turma da publicidade sabe como transformar santo do pau de coco em santo do pau oco. O que não falta a eles é presença de espírito.”

“Podemos então fechar o quadro?” inquiriu Nanico.

“Fechem, fechem o mais depressa possível que eu quero enviar essas estatísticas ainda hoje para o secretário. E quando terminarem vamos tomar uma cerveja em comemoração, no bar do Bigode.”

“Você paga, Digital?” cutucou Pedro a proverbial sovinice do delegado.

“Vamos disputar na porrinha,” safou-se Digital, dando uma risada. “Pensam que vocês me pegam, seus babacas? Eu tenho o raciocínio velódromo.”

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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