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Depoimento de Luiz Guilherme Santos Neves ao Neples

RETRATO DO ARTISTA QUANDO VIVO



Ai de mim, ai de mim, querem que falem de mim. Diante da pretensão, dou-me por encurralado, num beco sem saída, à mira de um 38. É como se ele me dissesse, “Mãos ao alto e não vai dizer que não”.

A ordem me faz recuar até à letra da marchinha da década de 40 (ou será de antes ainda?):

Quando monto em meu cavalo,
Jogo o laço,
Jogo o laço, jogo o laço para trás…
Sou caubói e gosto muito de um abraço,
Mãos ao alto e não vai dizer que não.

No laço que atiro para trás — tarrafa aberta sobre os tempos do artista quando jovem — pego o que posso de lembranças: a rua José Bonifácio, no Parque Moscoso, casa n° 1, onde vim à luz primaveril, em 24 de setembro de 1933, recebido pelos braços da parteira Dona Augusta; a escola de Dona Mariazinha, onde fiz o curso primário e recitava, coração saltitante em trampolim de orgulho, “brasileiro, onde está tua pátria?”, de Ronald de Carvalho, para concluir que “tua pátria não está somente no torrão em que nasceste”, mas “está em ti, minha mãe!”, que me trouxe ao mundo sob o lábaro estrelado (eram quase vinte e quatro horas da noite) de uma terra que tem por divisa um lema de bandeira que até hoje não vi cumprido honestamente; a rua Vasco Coutinho, das peladas vespertinas, jogadas em frente à casa do Dr. Eurípedes Queiroz do Valle ou em frente ao fundo da casa de Anísio Fernandes Coelho, onde eu ralava nos paralelepípedos os dedos dos meus pés chatos; o curso ginasial, feito no São Vicente de Paulo, de Aristóbulo (Tobinha) Barbosa Leão, onde entrei prestando exame de admissão e escrevendo admissão com ç; o Colégio Estadual do Espírito Santo, em que fui aluno de meu pai, Guilherme Santos Neves, que passava, para Clóvis Rabelo corrigir, as minhas redações de português; a velha faculdade de Direito, em frente ao Palácio Anchieta, onde entrei decorando em latim o “até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência”; a Fafi, em que me bacharelei em História para poder fazer, com diploma debaixo do sovaco, o que já vinha fazendo sem diploma debaixo do sovaco — dar aulas nos colégios de Vitória; o 3° BC, em Vila Velha, onde, cidadão que começava a ser, me fiz milico para servir o Exército e cantar, puto da vida, a Canção do Infante, de Olavo Bilac, “onde vais tu, esbelto infante, com o teu fuzil lesto a marchar. Pra longe vou, a pátria ordena, sigo contente o meu tambor, cheio de ardor, cheio de ardor…” (Esse Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac…)

— Como começou sua atividade literária? — torna a me inquirir o 38, roçando-me as fuças com seu cano metálico e assustador.

— Dando asas à imaginação, porque desde que me entendi como menino, eu sonho. (Não achei outra resposta menos burra.)

— Quais foram suas primeiras produções literárias?

— Como? Produções literárias?! Bem, vá lá: foram umas croniquetas metidas a besta mas que, graças a Deus, não sobreviveram para entrar no meu caixão.

— Quais os principais temas abordados em sua obra? — volta a me assustar o 38.

— São os que nela estão, se é que tenho uma obra. (Tive a impressão de ver um tique nervoso vibrar na boca de 38.)

— Sente-se mais à vontade numa narrativa na primeira ou na terceira pessoa?

— Para ser franco… na quarta pessoa.

38 me encarou com seu olho soturno.

— Quer brincar comigo?

— Não, falo sério. Para mim, a quarta pessoa — que tanto pode ser do singular, como do plural — é a ideal para elaborar uma narrativa.

E apresso-me a explicar, querendo ser convincente:

— Olha, 38, eu chamo de quarta pessoa aquela que não sou eu, mas que, também não deixando de ser, é um eu partido ao meio, um eu esquizofrênico, que se multiplica por 2. Donde, pelo menos matematicamente, 2 x 2 = 4. (CQD, ou seja, como queríamos demonstrar.)

— Qual a sua relação, como escritor, com a língua portuguesa? — volta a me imprensar meu atacante.

Agora sou eu que pergunto:

— Quer brincar comigo, 38?

— Não, falo sério.

Percebo que fala mesmo porque ouço o estalido do gatilho se armando.

— Está bem, 38, não se exalte que vou responder à sua pergunta: minha relação com a língua portuguesa não tem nada de obsceno. Nada de bilingüismo, cunilingüismo, essas coisas mal-sãs. É uma relação de afeto e respeito. Mas sem catolicismos exagerados. Aliás, meu caro 38 (estou querendo conquistar-lhe a simpatia), você sabia que já fui devoto de Santo Antônio e da Marilyn Monroe? Tinha um quadro de cada um deles sobre a cabeceira da minha cama.

38 não demonstrou o menor sinal de cordialidade diante da informação confessional. (Será que ele não conheceu Marilyn Monroe, pensei com meus pobres botões literários.)

— Que acha da função da crítica literária?

— À crítica, a crítica literária. É o que ela deve saber fazer.

— Qual a sua opinião sobre o futuro do romance, da poesia e do teatro? — volta à carga meu inquisidor.

— No Brasil?

— Pode ser…

— Tem o futuro de um país do futuro… Ou seja…

— O que você tem a dizer sobre os autores do Espírito Santo?

— Todos são bons, muito bons…

— É possível estabelecer uma identidade literária capixaba? (Noto que 38 está se tornando exigente.)

— Com carteirinha e CPF?

Devo ter esgotado a sua paciência, porque senti um frio agudo no umbigo e ouvi o estampido de um tiro.

[Agosto de 2000]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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