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Depoimento de Renato Pacheco ao Neples

Preliminarmente, quero abrir este depoimento-testamento com a frase de Nelson Rodrigues a respeito de autobiografias: “A gente se olha no espelho e se vê num vitral.” Isto posto, passemos ao questionário.

A – Ficha pessoal

Nome: Renato José Costa Pacheco
Data e local de nascimento: 16 de dezembro de 1928, Vitória, Espírito Santo
Formação acadêmica: Bacharel em Direito, Licenciado em História, Mestre em Ciências e Livre-docente da UFES.
Profissão: Fui jornalista, professor, advogado e magistrado. Hoje sou somente escritor e, eventualmente, professor.
Endereço para contacto: Rua Eudálio Fontes Correia 244, Mata da Praia, Vitória ES 29065-400.

B – Universo pessoal e início de carreira



1. Descreva sua infância e sua vida escolar.

Infância em Vitória dos anos 30. A cidade tinha cerca de 30.000 habitantes. Pertencia a uma família “remediada”, como se dizia então. Pai contador e mãe de prendas domésticas. Dois irmãos. Brincadeiras na rua. Leituras (ver 4).

Fiz o curso primário em escolas particulares. Aprendi a ler, escrever e contar com minha tia Argentina Costa, na rua do Rosário 79, onde morava ela. Ainda vejo os caroços de feijão com que fazia contas. E a mesa comprida de madeira clara, com incrustadas gregas negras.

Depois fui aluno do Colégio Sagrado Coração de Jesus, da notável professora D. Izaltina Paoliello.

No terceiro ano fui para o Colégio Filgueiras. No quinto (admissão ao ginásio) fui estudar com os professores Luiz Simões de Jesus e Alcina Nascimento.

Ginásio e científico, de 1940 a 1946, no Colégio Estadual do Espírito Santo, com a interrupção de um ano (1945) no Colégio de Viçosa, MG, como bolsista da Secretaria de Agricultura do Espírito Santo. Lembrem-se que estávamos na Era Vargas e havia a II Guerra Mundial.

2. Que lembranças guarda da cidade natal e, ou, de outras cidades em que tenha vivido?

A cidade natal, como disse, era uma pequena aglomeração urbana, circunscrita quase que só ao Parque Moscoso, Cidade Alta, Centro e os morros em volta. Santo Antônio ao sul e Praia Comprida ao norte eram pontos extremos, a que se ia de bonde. Regatas, futebol e cinema eram as diversões. Sempre morei na rua Sete de Setembro, 407, no sobrado que lá está ainda. Depois morei em São Paulo, Muniz Freire, Mucurici, Mantenópolis, Conceição da Barra, São Mateus, Santa Leopoldina, Iconha, São José do Calçado, Guaçuí, Alegre e Colatina, voltando para a minha cidade natal em 1972. Recordar essas andanças de dezoito anos daria um livro.

3. Como começou sua atividade literária? Recebeu orientação ou incentivo de professores ou escritores ou ainda de outras pessoas?

Com oito anos escrevi um Conto de Natal que meu pai datilografou caprichosamente (exemplar único) e ainda está por aí entre meus perdidos. Depois, como aluno de Mestre Guilherme Santos Neves, por seis anos, recebi segura orientação e publiquei meus primeiros textos no jornalzinho escolar Comandos, do Colégio Estadual, fundado pelo referido professor. Daí fui para a imprensa, tendo trabalhado, como repórter e redator, em A Tribuna e O Diário e, como colaborador, em A Gazeta e Vida Capichaba. Além de Guilherme Santos Neves, meu grande amigo, recebi incentivo também do desembargador Eurípedes Queiroz do Valle, então presidente da Academia de Letras, que muito nos auxiliou na Academia Capixaba dos Novos, onde fizemos nossos primeiros voos. Em 1947, em curso de férias na Faculdade Nacional de Filosofia, fui aluno de Jorge de Lima, o que muito me marcou.

4. Quais foram suas primeiras leituras e primeiras produções literárias?

Lia, primeiramente, a revista semanal Tico-Tico. Depois os jornais e revistas em quadrinhos Suplemento Juvenil, Globo Juvenil, Gibi e Guri. Mas principalmente Monteiro Lobato, cujas obras para crianças fui lendo à medida que eram publicadas, muitas delas doadas por meu primo David Pimenta, ao qual agradeço até hoje. Em 1942, um amigo comunista espanhol, Jesus Inocencio Garrido Del Rio, me emprestou Por quem os sinos dobram, de Hemingway, leitura que me impressionou vivamente. Estava eu com catorze anos. Na mesma época li também meu primeiro roman fleuve, Antony Adverse, de Hervey Allen.

C – O escritor e seu ofício

5. Quais os temas principais abordados em sua obra? Que função predominante atribui à sua literatura?

O Espírito Santo, sua terra e sua gente. Meu projeto sempre foi escrever uma série de romances capixabas, e o consegui, em parte. A poesia, no entanto, nada tem a ver com as raízes capixabas, é mais intimista.

6. Quando começa a escrever, o enredo já está definido ou se desenvolve e se altera à medida que vai escrevendo? Delineia os capítulos e planeja toda a estrutura antecipadamente?

Formulo o começo e o fim. O resto é um alinhavar noturno, transformado em texto pela manhã, capítulo por capítulo. Escrevo à mão, em rascunho, passando a limpo, também à mão, posteriormente.

7. Até que ponto seus personagens se baseiam em pessoas reais, inclusive em você mesmo? Como escolhe os nomes dos personagens?

Misturo personagens reais com ficção. Não entro nos romances, como personagem, mas sou a única personagem na obra poética. Os reais são tão modificados que é difícil reconhecê-los. Escolho à outrance os nomes dos personagens. Só Dona Mariana é que eu tirei de uma avó, que morava em Vila Velha e não conheci.

8. Do ponto de vista da técnica, quais os escritores que mais admira e de quem sofreu influência?

Os escritores que mais admiro são quatro Guilhermes: Santos Neves, Faulkner, Shakespeare e Kennedy. Creio que em Fuga de Canaã sofri influência de Faulkner, ele, centenário, que não saiba disto.

9. De que modo descreveria seu estilo?

Nenhum estilo. Estilo nulo. Não tenho uma “língua pessoal”. E mudo através dos tempos. São quase cinquenta anos de aprendizado, e continuo, ai de mim, aprendiz. Na prosa, seguindo as lições de Mestre Guilherme Santos Neves, procuro escrever corretamente, sem artifícios literários, de forma concisa, e de modo tal que todos os leitores medianamente preparados me entendam. Na poesia sinto algum hermetismo em meus poemas. Tem de ser assim, pois eles são fruto 90% de intuição. Não abro mão disto.

10. Faz uso de intertexto — analogias, referências, citações? Faz uso de diálogo interior? Faz uso da linguagem popular?

Sim, sim, sim.



11. Sente-se mais à vontade numa narrativa na primeira ou na terceira pessoa?

Na terceira pessoa.

12. Com que regularidade escreve? Reescreve muito seus textos, cortando, acrescentando, alterando?

Quase todos os dias. Corto muito, mas reescrevo pouco. Sou muito preguiçoso e me considero mais um faiscador de pedras que um ourives.

13. Qual sua relação, como escritor, com a língua portuguesa?

De carinho. Gosto de nossa língua, e sinto apenas que ela seja tão desprezada, urbi et orbe.

D – O leitor e a literatura



14. Faz concessões ao leitor em seus textos?

Na prosa sim. Na poesia quase nunca.



15. Que acha da função da crítica literária?

Só houve um crítico literário por aqui: Tulo Hostílio Montenegro. Como, na época, não se produziam livros capixabas, ele, em A Tribuna, época de Vargas, divulgava as principais obras nacionais e estrangeiras. O crítico deve ser imparcial, mas em meio restrito, como o nosso, a turma só deseja críticas favoráveis. Aceito bem a crítica negativa e procuro corrigir-me. Uma coisa curiosa: em livro de 1969, Crítica literária, de Carmelo Bonet, são citados, como críticos de Vitória, Geraldo Costa Alves, Luiz Guilherme Santos Neves e Renato Costa Pacheco. Eu, de mim, nunca passei de noticiarista literário, não só no “Pólo Norte… Pólo Sul” da Vida Capichaba, como em “Letras da Província” de O Diário e em A Gazeta. Agora há alguns críticos acadêmicos (José Augusto Carvalho, Luiz Busatto, Francisco Aurelio Ribeiro, Deny Gomes…), mas não exercem uma crítica militante, daquelas que, no dizer de Prudente de Moraes Netto, servem ao leitor pela compreensão e explicação.

16. Qual sua opinião sobre o futuro do romance, da poesia e do teatro?

Tem futuro. Ler é uma atividade insubstituível. Ver teatro é emocionante. Creio que haverá forte concorrência da televisão e do computador, mas um bom romance, um bom poema, uma boa peça de teatro sempre terão sua vez. Salvo se…

17. Que tem a dizer sobre os autores do Espírito Santo? É possível estabelecer uma identidade literária capixaba?

Temos excelentes escritores. Excluindo meu nome, ressalto os do extinto grupo Letra: José Augusto Carvalho, Luiz Busatto, Marcos Tavares, Miguel Marvilla, Oscar Gama Filho e Reinaldo Santos Neves. E mais Luiz Guilherme Santos Neves, meu companheiro em tantos livros sobre o Espírito Santo. Dos novos, a mim me parece que a obra literária mais sólida será a de Adilson Vilaça. Sim, há uma literatura brasileira, no Espírito Santo, como quer o professor Dr. Luiz Busatto. Necessário que haja mais divulgação. Nossas obras são mal distribuídas, lá fora. Doutrina do Engrossamento, Cantáridas, Crônica de Malemort (para só citar o povo mateense dos Santos Neves) seriam, cada qual em seu gênero, obras importantes em qualquer lugar do mundo.

18. O que teria a dizer aos escritores iniciantes?

Ao iniciante:

Se V. sentir em si a danada vocação do escritor, prepare-se adequadamente. Estude a língua, nos moldes mais aceitáveis, sem submissão absoluta aos cânones oficiais. Leia muito os bons autores, daqui e de fora. Escreva sempre, sem pressa de publicar. Depois saia à luta, porque editar, nesta terra, não é nada fácil. Boa sorte.

Vitória, 7 de outubro de 1996
Renato Pacheco.

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Renato Pacheco foi importante pesquisador da história e folclore capixabas, além de escritor, com vários livros publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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